O velho Francisco – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Arte de Ronaldo Rony

Crônica de Ronaldo Rodrigues

– Pro senhor ver como são as coisas, vizinho. É vivendo que a gente vai aprendendo. E nunca chega o tempo em que a gente já sabe tudo, né mesmo?

Veja só senhor: ontem eu era um recruta, tinha acabado de completar 18 anos e já tava servindo à pátria. Hoje tô aqui, veterano, aposentado, cheio de cicatriz de guerra, querendo porque querendo entrar em outras guerras, mas cadê disposição?

Eu tenho vontade, mas os músculos não acatam mais as ordens da cabeça. As pernas também. A cabeça diz “Vai!” e a perna quando que obedece? Mas pensa o senhor que é só o corpo que nega fogo? A cabeça também dá umas derrapadas que vou lhe contar. Hoje de manhã eu saí do quarto e esqueci se ia pra sala ou pra cozinha. Resolvi ir pra cozinha. Quando cheguei lá, me convenci: era pra lá mesmo que eu queria ir desde o começo. Menos mal. Agora só tinha que resolver uma coisa: o que era que eu queria fazer na cozinha?

Já até me proibiram de ficar zanzando pela casa. Agora me proíbem de andar na minha própria casa, a casa que eu construí, veja o senhor. Ninguém tem respeito mais. Os filhos já não tinham quando estavam crescendo. Cada um querendo fazer o que bem entendia. Conselho eu nunca fui de dar. Confio mesmo é no exemplo. Mas a maioria dos filhos não quis saber dos bons exemplos que eu dei. Cada um foi por si mesmo. Uns se deram bem, outros nem tanto.

Mas estão todos aí, se reunindo no Natal pra me encher de chateação e presente que já não me adiantam de nada. Deixei eles viverem a vida deles. Foi melhor assim, sabe, vizinho? No fim das contas, todo mundo se arranjou, são pessoas de posição na sociedade, são pessoas respeitadas. Os filhos deles, meus netos, é que não têm respeito nenhum. Nem por mim nem por nada. Não sei aonde isso vai parar. Mas eu acho que todo mundo na idade desses moleques é assim mesmo. Eu devo ter sido assim também. Mas quando! Naquele tempo, o senhor sabe disso, a gente pegava era pancada se faltasse com o respeito com os pais ou com os mais velhos. Hoje o velho é a gente e ninguém respeita mais. Inventaram até esse termo idiota de “melhor idade” pra tentarem tornar menos cruel o desprezo pelos mais velhos.

Mas é isso mesmo, vizinho. Como dizem os mais novos, a gente tem é que se tocar e deixar de onda. É, vizinho. A gente tem que agradecer as migalhas de atenção. Vizinho, vizinho? O senhor tá cochilando, vizinho? Ah, bolas! Nem a gente mesmo se dá atenção! Durma aí que eu vou embora! A babá que arrumaram pra mim já vem me buscar! Adeus!

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