O que eu diria se pudesse te encontrar depois de 3 meses… (por Mariléia Maciel)

Dona Maria e Elis, mãe e neta de Mariléia Maciel.

Se foram 90 dias, e não passo sequer uma hora sem pensar na senhora com muita saudade no coração. Sei que estás bem agora, sem dores, sem as amarras da cama da UTI, na qual ficou presa exatos 55 dias, no processo de libertação para a nova vida, mas as lembranças de nossa rotina são imensas, e às vezes não tenho como conter a emoção. Todos os dias abro seu quarto como gostas, para o sol entrar. Agora que começamos a mexer em seu guarda-roupa, por necessidade de organizar a casa para receber a família. Ele continuava como a senhora deixou na última vez que a abriu, com seu barla, roupas, azeite de andiroba, e objetos que gostavas, mas te prometo que assim que eu puder vou arrumar, doar o que for servir para outras pessoas, e guardar o que for me trazer belas lembranças. Mas não quero com isso te prender aqui, porque agora és estrela, e esta condição não te permite mais ficar entre nós fisicamente.

Continuo a acordar de madrugada, mesmo não precisando mais, porque aprendi a gostar de ver o dia começar assim. És muito presente, e parece que a qualquer momento vais sair do banho pra começar a se arrumar na frente do espelho. É recente em minha memória sua teimosia pra tomar os remédios, o demorado café da manhã, e o passeio devagar na calçada, pra aquecer os ossos. Me faz falta o almoço meio-dia com a mesa cheia de comida e de gente, o café da tarde, e os cânticos da missa das 18h na televisão. Na hora de jantar, sempre uma indecisão, entre o café ou mingau, sopa, churrasco ou pizza, todas as vontades feitas antes de acabar dia e se preparar para dormir. O murmúrio da reza também me faz falta, e toda noite continuo com ela, pedindo por nós todos.

Em todo esse cotidiano tem sempre seus passos tão lentos e arrastados, sem barulho, mas que eu aprendi a sentir por força da necessidade, porque as noites eram longas e as idas ao banheiro comum, e dava medo pensar na senhora caída por sono e falta de apoio. Nestes anos que passamos cuidando uma da outra aprendi a não ter pressa, e puxei o freio de mão pra ver a vida com seus olhos, e a andar sem desespero. Aprendi o valor da bênção, e o “Deus te abençoe, minha filha” faz muita falta aos meus ouvidos. Aprendi a ser uma mãe mais madura com a senhora, que nunca conheceu sua mãe para pedir bênção e proteção, mas que nunca nos furtou destes cuidados.

Foram cinco anos em que me dediquei de coração à senhora, desde que papai partiu, e precisávamos nos unir mais para cuidar melhor, porque ficou longe do seu grande amor, e saudade dói no corpo, eu sei. Cresci muito espiritualmente, e valeram internamente mais que o mesmo tempo em uma faculdade, porque aprendi com cada dificuldade que passei para aprender a te entender. Só eu sei da grande alegria que era vê-la bem, sem dor nem tonteira. Não me arrependo de nada mãe, nem das oportunidades pessoais e profissionais que larguei, porque sempre apareceram pessoas que me abriram as portas para que eu pudesse trabalhar e ao mesmo tempo ficar com a senhora, nossa família pra me amparar, amigos que entendiam meu horário, e nunca deixaram de se esforçar para estar comigo, mesmo que por poucas horas. Não me arrependo das festas e passeios em que não estive, porque o que aprendi me valeram para esta e outras vidas, como a dar valor em uma noite bem dormida, no amanhecer caminhando, lendo ou produzindo textos, e em um fim de tarde olhando as maresias e o rio, sentada em uma cadeira.

Compreendo as últimas semanas em sua companhia como lições importantes para amadurecer a alma, dar valor em pequenos gestos, e em pessoas que nunca vi na vida, mas que foram essenciais. Nunca achei que subir as escadas do hospital poderia ser um treino emocional, porque para mim, escadas sempre foram uma via de acesso para um piso, mas quando se aproximava a hora da visita eu começava a pensar no que eu poderia ouvir na entrada da UTI dos enfermeiros e psicólogos ou dos médicos, se ia lhe encontrar dormindo ou acordada, consciente ou em delírio, no ventilador ou no bipap, com ou sem diálise e noradrenalina. Eram momentos de sofrimento, mas em cada degrau da escada eu buscava forças e me concentrava em sua saúde, e me controlava para chegar perto da senhora sem demonstrar o que estava sentindo por trás daquela máscara. Naqueles dias aprendi a acompanhar o tempo da natureza olhando o jardim com flores e coqueiro, as mudanças do sol durante o dia. Via as plantas viverem presas na raiz, e comparava à senhora, porque viver não depende de estar livre ou preso, a senhora estava viva, mas presa em uma cama, assim como as plantas nos vasos. Aprendi a valorizar cada profissional que cuidava da senhora, pessoas que nunca tínhamos visto antes, mas pela proximidade, passaram a fazer parte da nossa vida, e vi que o amor ao próximo não depende de anos de convivência, e sim de amor no coração. Foram dias de sentimentos confusos, fortalecimento da fé, e certeza que a vida não termina quando fechamos os olhos e os órgãos param de funcionar.

Tenho certeza que a senhora e papai estão bem, e saibam que a maior lição disso tudo foi a gratidão, a persistência, a fé, o perdão e o amor. Falamos nisso todos os dias, mas nem todos têm a oportunidade de exercer na prática estes sentimentos, e eu tive com vocês dois. Apesar da simplicidade, não é tão fácil assim praticar. Meu coração é só saudade, mas procuro substituir a tristeza pela gratidão por tudo o que fizeram por nós, pelo meu crescimento, por meus filhos, por me ensinarem o caminho certo, mesmo quando me esquivei deles, e tive a oportunidade de retornar novamente.

Vocês continuam a nos olhar, eu sei e sinto. Nosso compromisso continua até o dia em vamos nos reencontrar. A morte não é ruim, o que nos acaba é a saudade, mas me abençoem todos os dias, pra que eu tenha sempre forças para seguir, nunca desistir e ajudar quem deve ser ajudado. Assim que meu coração sinalizar vou começar a mudança, porque ainda é cedo para pensar nessas coisas, talvez amanhã, na próxima semana ou mês. Não tenho pressa.

Bênção, um beijo no coração, e que o próximo ano seja de muita paz e luz para todos nós.

Mariléia Maciel – Jornalista

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