Poema de agora: Memorial do fruto migratório – @juliomiragaia

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Memorial do fruto migratório

De tudo me abriguei no poço.
Afoguei assim, convicto e diáfano,
Meu tímido cadáver num tempo úmido
De desdouro e solidão.

Escolhi o esquecimento.
O pouco, o sono, o torto.
Um anjo intragável de interrogações
Intangíveis e pretéritos perdidos.

(Peito louco
De quedas e desmesuras.
Pequenos autocídios
mal alimentados)

Inacabo nesse porto
Vertebrado em coração,
Condensado de parênteses e pedras,
Relicário e reticência.

De tudo me exilei na pausa.
Parto ficando,
Intervalo de meus ossos
Nas sombras dos orvalhos:
O que não anda, nem descansa.

Anda nos meus poros
De demônio deprimido
O que devasta e o que constrói,
O que navega e o que se voa,
O que se beija e o que se basta.

De tudo, escolhi o fundo.
O fim, o si e a ré.

Escolhi a chuva,
Escolhi o chumbo,
Ir sem bússola ou búzio.

Escolhi o poço.
O cadáver,
O tempo rouco,
A queda, o pouco.

O torto, a pausa,
O basta e o porto.

E em poço é que me fui de ponte.
De carne-tronco, degustei do eco:
Matéria prima do que se foi.
O que conjura na palafita,
Passo-chuvoso do sol futuro
De alento morno.

Da ponte, escolhi o fundo
Do mundo que virá:
Alvorada de rubras cordas
A fulgurar tábuas e frutos.

Cidades a derribar,
Seguir para migrar.
Sorrir, sofrer: amar.
Durar, entrelinhar.

Júlio Miragáia

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