A Pedra – Conto de Leão Zagury

Pedra do Guindaste – Arquivo de Floriano Lima.

Conto de Leão Zagury

A Pedra sempre me atraiu. Parecia enorme. Mas eu era uma criança e tudo me parecia grande demais. Andei perguntando como tinha surgido ali, tão sozinha, a cerca de trezentos metros da margem do rio Amazonas e a uns poucos do Trapiche Eliezer Levy. Ninguém soube me dizer. Pelo contrário, as únicas palavras que ouvi foram de advertência.

– Não chega por lá.

– A pedra é encantada.

– A noite os fantasmas cuidam da Pedra, e ninguém pode ficar olhando.

Uma moradora do Igarapé das Mulheres – um dos bairros mais antigos da cidade, onde ficavam isoladas as prostitutas – que encontrei, por acaso, perto do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, me afirmou que na Pedra existia uma cobra grande:

– Enorme mesmo. Ninguém sabe dizer quantos metros de tão grande que é, eu já vi.

Emocionada e parecendo ter medo de suns próprias palavras, afirmou:

– Quando o rio está na cheia a cobra sai para beber, de maneira que a água nunca consegue cobrir a Pedra. Se alguém remover a Pedra, a cidade vai ser inundada.

Tudo isso apenas aumentava minha curiosidade. Certa noite de lua cheia, acordei com calafrios. Todos dormiam. Silêncio. Senti medo. Um tremor estranho subiu pelas minhas pernas e um frio inexplicável tomou conta do meu corpo. Impulsionado, sei lá pelo que, talvez pela curiosidade infantil, desci da rede, tirei o camisolão que a Mindinha me obrigava a usar para dormir, e vesti o calção de sempre, que todos diziam já estar duro de sujeira, tantas vezes eu o usava. Me esgueirei por baixo da rede do meu irmão. Com muito cuidado, abri a porta do quarto e escapei para a saleta que se comunicava com a cozinha. Não senti o frio que esperava. Muito pelo contrário. Abri cautelosamente a porta que dava para o quintal e recebi na face uma lufada do vento que soprava do Amazonas. O ar suave percorreu meu corpo franzino e aumentou meus arrepios e meu medo. Em Macapá, depois de certa hora, a única luz que restava era a da lua.

Olhei para o céu. O satélite brilhava contribuindo para me amedrontar. Eu e meu calção saímos furtivamente, atravessando o quintal. O cacarejar das galinhas me assustou mais com a possibilidade de um escarcéu. Pulei o muro que separava o quintal da rua. Não foi muito fácil.

Precisei escalar algumas caixas que, empilhadas, facilitaram minha escapada furtiva. Caí do outro lado e senti uma leve dor na perna esquerda. Me aprumei e conferi. Não sofrera nada grave. Levantei e caminhei alguns passos na calcada até pisar na rua coberta com piçarra. Meus pés acusaram o pequeno sofrimento que as pedrinhas me infligiam. Machucavam meus pés.

Valentemente continuei. Eu queria ver a Pedra a luz da lua. Por que? Não sei.

Atravessei a rua e caminhei até a casa do meu amigo Cabeçudo. Portas e janelas fechadas. Bem que ele poderia acordar e me acompanhar na aventura, se não tivesse medo da Pedra.

– Não. Ele tem medo da pedra… – pensei comigo mesmo. À medida que caminhava em direção ao Macapá Hotel e da mureta, que fragilmente o defendia da maré alta do Rio Amazonas, uma sensação desagradável tomava conta de mim. Eu tinha receio. Não sabia de que, mas tinha. E muito. Me sentia ameaçado. A sensação estranha me deixou em estado de alerta e crescia a medida em que andava. Ao mesmo tempo, o medo aumentava minha curiosidade. A mesma bisbilhotice não me permitia recuar. O barulho suave que meus pés produziam, quando se chocavam à piçarra, marcava minhas passadas e ajudava a diminuir o medo porque prendia minha atenção. Logo percebi que além do meu ruído, outro mais forte, e arrastado surgira logo atrás. E aumentava. E se aproximava. Apertei o passo, mas o medo fazia com que minhas pernas ficassem presas e diminuía minha velocidade.

Foto: Renato Ferreira

– Será uma alma do outro mundo? Seriam os fantasmas que cuidavam da Pedra?

Com esforço consegui apressar o passo.

A essa altura o barulho na piçarra já estava próximo. O medo me impedia de olhar para trás. Enquanto tentava saber o que estava acontecendo, ouvi uma voz cavernosa.

– O que tu estás fazendo aqui, a estas horas da noite?

Aí sim. Consegui saber quem era. Para meu desespero era o seu Congó. Um homem negro e forte que já tinha sido escravo e fugira para o quilombo do Curiaú. Ganhava a vida fazendo biscates. Muitas vezes era contratado para assustar as crianças que faziam malcriação.

Diziam que comia crianças. E eu acreditava. Nessas ocasiões, com as mãos, revirava as pálpebras, expondo o vermelho da mucosa, conseguindo um aspecto assustador que sempre

me aterrorizava desde os primeiros anos de vida.

– Não tenha medo. Não vou lhe fazer mal.

Não teve jeito. O medo se tornou pavor.

– Tenho que fingir, se não ele vai me comer – pensei.

Blefando segurança, respondi que não tinha medo. Andamos lado a lado. Eu magrinho, sem camisa, encolhido pelo temor. Ele um homem enorme com tórax avantajado, braços longos e mãos grandes. Suas passadas arrastadas produziam um sibilar que parecia de cobra se arrastando na piçarra. Carregava um paneiro pendurado através de uma cinta que cruzava o tórax. Na mão uma vara de pescar. Usava camisa branca surrada, aberta no peito, feita de sacos de aniagem doados aos pobres pela dona da única mercearia da cidade, minha avó.

-Vou pescar – disse sorrindo.

Nunca lhe tinha visto os dentes. Tão brancos que faiscaram à luz da lua. Caminhamos calados. A dupla mais improvável na hora mais incerta. Com lágrimas insistindo em molhar meus olhos os esfreguei com força para disfarçar.

Aos poucos nos aproximamos da mureta em frente ao Macapá Hotel. Eu fascinado pelo homem, pela lua, pela Pedra e pelo medo. Não conseguia mover minhas pernas para correr, como era meu íntimo desejo. A essa altura eu não sentia medo, sentia pavor. Tremia antecipadamente, imaginando o que aquele homem poderia me fazer. Mental e gradativamente fui me reestruturando e resignado permaneci ao lado do seu Congó. Afinal, nós dois estávamos à procura de alguma coisa. Ele de peixes, e eu da Pedra. Eu, do piar. Ele, da comida. Eu, do sonho.

Ele, da realidade.

-Vem cá menino, vamos nos sentar aqui – disse ele, me puxando pela mão e me indicando um lugar na mureta.

A maré estava alta e as ondas, apesar de fortes, batiam na parede com suavidade.

Pareciam querer ouvir a história que o velho ia me contar.

– Maré cheia — falou.

Olhei para a Pedra. Estava linda. A luz da lua ressaltava suas curvas. Semelhantes às de uma mulher. O velho olhou para mim. E só aí vi que seus olhos eram cândidos e suaves, como o olhar de um puro. O luar destacava sua barba branca.

– Tu conheces a história da Pedra, meu filho?

– Não senhor- respondi.

– Vou te contar.

Acariciando minha cabeça, com mãos calosas e fala arrevesada, me contou que muito antigamente, mesmo antes de ter vindo para aquelas bandas, vivia ali uma tribo que se chamava Tucujú. Acrescentou que esse nome vinha da árvore do tucumã que tem frutas deliciosas e servem para fazer mingau ou vinho.

-Foram os primeiros a morar por aqui. Muito antes de se bandearem para o lado dos franceses e partirem para a Guiana – afirmou. Pudera, eram mais bem tratados por eles do que pelos portugueses! Dizem que muitos foram para o reino da França e nunca mais voltaram.

– Todos os dias um guerreiro saía de madrugada em busca de alimentos. Solitário,

caminhava pela praia para flechar algum peixe. Na tribo, uma linda mulher se encantou pelo guerreiro. Atendia por nome de Iara. Quando o guerreiro saía na calada da noite e a lua passeava pintando tudo de prata e o vento refrescava a terra, Iara, com seus cabelos longos, negros e lisos, levava à beira da praia seu perfume quente, rescendendo a pau rosa, para observar o homem. Resolvera seduzi-lo. Pensava, sorrateira, que tinha meios suficientes para fazê-lo esquecer de si e amá-la. Não se comparava às outras índias que competiam pelo amor do guerreiro. Fingiu que não o desejava usando um meio sorriso. O olhar furtivo e o corpo bonito acabaram por cativá-lo. O amor foi intenso e aprovado pela lua que os espiava na madrugada.

A namorada passou a acompanhar o guerreiro todos os dias e aguardava seu retorno até o sol se pôr, atrás da Lagoa dos índios. Voltavam juntos, enlaçados, à maloca. Em um dia especial, depois de fazer amor na praia na madrugada, o guerreiro partiu em sua busca diária. A amada ficou à espera, no local de sempre.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca

– Logo ali, onde fica a Pedra – disse seu Congó.

Eu me encolhi com o frio do vento, e ele me aproximou do seu corpo para me proteger.

– Pois é, o sol se levantou e se pôs, o tempo passou e o guerreiro não retornou. A indiazinha continuou a esperar. Chorando muito, como fizera todos os dias, Iara esperou, até que morreu de tristeza.

– Sabe, menino, a lua se compadeceu da mulher e chorou com ela. As lágrimas da lua

caíram justamente no mesmo lugar que estava a indiazinha e misturou as suas às dela. Das lágrimas e do corpo da moça nasceu a Pedra.

Seu Congó, vendo que eu chorava, acariciou, mais uma vez, minha cabeça com suas mãos calosas e aconselhou.

– Vá para casa, menino.

*Contribuição de Fernando Canto. 

**Texto que recebeu Menção Honrosa no Concurso Literário da Academia Madureirense de Letras (AML), em 2022, na modalidade Conto.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *