Alguns parágrafos para o eterno – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Eu vejo a luz, mas não sei se é a do fim do túnel. Desconfio, inclusive, de que não há túnel algum.

Abro a janela num ato mecânico. Por que pulam, lá fora, os ponteiros dos relógios? Três dias atrás faltava dois anos para nunca mais. A sombra da torneira lacrimeja momentos de solidão. E por que isso me veio à mente?

Toda vez que tentei seguir a fila, alguém me indicou o caminho contrário. Aí eu vim, vendo muitos rostos passando por mim. Creio que todos os rostos que passaram por mim pela vida inteira. As pessoas, donas dos rostos, ignoraram o meu rosto, meu jeito de ser, minha mente. Mas é assim mesmo: ignorantes ignoram. É o que sobrou para eles.

Sempre fui assim, todo errado, mas, num mundo errado, até que nem destoo tanto da paisagem em volta. Às vezes, percebo o engano, mas insisto nele, para ser sociável, para ser aceito, para fazer alguma coisa.

É de manhã no vale da minha existência. Os pássaros, vindos da noite de ontem, demoram a reconhecer os ninhos e vão depositando as claves de sol em qualquer lugar, até que encontrem os filhotes, ávidos por esse alimento.

Pesadelos me vêm de madrugada. Se eu dormisse numa tumba, dentro de uma cripta, no porão de um castelo medieval, acharia esses pesadelos até naturais. Mas dormindo aqui, debaixo do viaduto, com o sol da meia-noite me batendo na cara, eles são bem estranhos. Ainda bem que também sou estranho.

Sim, existem amanheceres e disposição para abrir os olhos. E eu vou fazer/refazer essa rotina até que ela se torne saudade. Até que se torne eternidade. Até que o lamento se torne canção. Até que o cansaço se torne ânimo. Até que eu pare de vez e comece de novo. E de novo. E de novo…

 

  • Um belo texto. Construído com frases que ficam ecoando. “É de manhã no vale da minha existência” é capaz de refletir muita coisa…Um texto cuja prosa poética parece querer grudar na epiderme. Seu escrito evocou em mim solidão e melancolia. Certamente uma bela prova. Parabéns.

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