Na escuridão – Conto de Rafael Costta

Foto: Reprodução/TV Anhanguera

Conto de Rafael Costta

Duas da madrugada. Edson voltava pra casa depois de uma bebedeira com os amigos. Morava em uma área de ressaca, uma casa de madeira em uma ponte, amontoada junto a tantas outras, numa “baixada” igual a tantas outras. A ladeira até chegar à ponte de madeira era um pouco íngreme, desceu da bicicleta para evitar de cair, os freios não estavam bons. Estava bêbado, mas ainda tinha lá um pouco de lucidez.

A rua estava escura, todas as ruas estavam. A parca iluminação noturna vinha das velas dentro das casas – que se podia ver pelas frestas entre as tábuas – e, bem mais raro, alguma residência que adquiriu um gerador, identificável a centenas de metros devido a zoada que fazia. A cidade estava há dias sem energia elétrica e sem uma notícia sequer de uma solução rápida.

Edson estava desempregado, ganhava trocados fazendo bicos, mas não tinha conseguido nada recentemente. Com os dias estranhos que se passavam o que restava era matar o tempo bebendo com os amigos, que encabeçavam com uma ou duas ou três garrafas de vodka – dessas de dez reais – e pelas tantas horas depois , tomavam o que tivesse à mão, cachaça, catuaba e qualquer “buchudinha” que desse pra mantê-los alcoolizados. Não dava para beber cerveja, os poucos comércios que tinham cerveja gelada pra vender estavam praticando preços “de garimpo”.

Saiu de casa às cinco da tarde, prometendo à esposa voltar às nove. Ao perguntar para um dos amigos da roda e saber que eram onze da noite, e prevendo o esporro que ia levar da patroa, resolveu esperar até a madrugada, quando ela não teria disposição para brigar e adiaria a bronca pro dia seguinte. E assim fez.

Empurrava a bicicleta na ponte com cuidado, de modo a não chamar a atenção dos cães da vizinhança e evitar os ressonantes latidos. Um dos cachorros se aproximou dele, mas, percebendo que era o vira-lata caramelo da Dona Odete, fez-lhe um afago rápido, no qual o cão sossegou.

Já tinha avançado bastante naquela ponte em que as madeiras pareciam distribuídas como num jogo de amarelinha. Uma tábua, dois espaços vazios, duas tábuas, um espaço vazio, e seguia-se a errática distribuição. Faltando uns cinquenta metros para chegar em sua casa, algo segura seu calcanhar, algo molhado e viscoso, algo saído daquele lago de água suja de dejetos humanos, lixo e outras tantas substâncias díspares que nem seria possível enumerar com exatidão. Um leve puxão foi mais que suficiente para Edson se desequilibrar. Caiu batendo a costela na borda da ponte, soltando um “Oh” abafado, perdendo o fôlego e em seguida foi, ainda com a boca aberta, de encontro ao lago, no qual sentiu aquela substância visguenta agora abraçá-lo por inteiro.

Cinco e meia da manhã, o primeiro vizinho sai de casa para trabalhar e vê a lastimável cena. A notícia corre rápido, a tristeza é generalizada, a família entra em desespero. A esposa grita lamuriosamente, perguntando aos céus o porquê e espraguejando os amigos de bebedeira do finado. O filho de três anos, agora órfão de pai, sem entendimento do ocorrido, ainda brinca com sua bolinha de leite – agora já meio ovalada –  verde com detalhes pretos. Não se falará disso na Rádio ou na TV, só se fala da falta de energia, e quase ninguém consegue ouvir ou ver as notícias também.

Edson não foi a primeira vítima daquilo, seja lá o que fosse “aquilo”. Também não seria a última. De tempos em tempos, em lugares e situações que não aparentavam ter relação alguma, vidas sucumbiram por conta disso. Em meio a vida sofrida e todas as mazelas e intempéries na saga diária do povo amapaense, tudo passava despercebido. Mas a verdade é que há muitas coisas estranhas acontecendo por aqui…

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