O tempo como lugar de abandono, ressentimento e honra em “A revoada” – Por @juliomiragaia

Por Júlio Araújo (quem também é o Júlio Miragaia)

…tive a certeza de que o segredo de sua labiríntica solidão havia sido revelado pela tensa pulsação da noite”. (G.G.M.)

Antes de Cem anos de solidão, Macondo já estava edificada no imaginário de Gabriel García Márquez. Em seu romance de estreia, A revoada (1955), é possível ver em outra perspectiva a paisagem bucólica da cidade, a companhia bananeira e até mesmo o coronel Aureliano Buendía, que nessa história são elementos que “integram o cenário” e dão musculatura ao enredo.

Contado por três integrantes de uma mesma família, o coronel, a filha e o neto, A revoada (“Hojarasca” no original e em algumas edições no Brasil “O enterro do diabo”) aborda a morte de um estranho e solitário médico e seus hábitos, e a rejeição dos moradores de Macondo em dar a esse personagem um enterro digno.

Houve um estopim. Há na relação entre o protagonista e a cidade um ressentimento pela negação do homem em exercer sua profissão em momentos cruciais. Por esse motivo, o médico era um homem odiado e viva recluso em uma casa velha, onde passou os últimos dias.

A única pessoa que luta para garantir um funeral e um enterro a ele é o coronel, que lhe devia um favor. Apesar de não querer ir contra a população, o coronel (que não tem o nome revelado) quer cumprir o prometido e assim fazer “o que é o certo”.

Em sua forma, a obra traz o García Márquez com toda a carga poética de sua escrita. Em uma aspa da 15ª edição do livro publicado no Brasil (1999, Editora Record, 144 páginas), há a seguinte declaração do autor:

“Quando escrevi A revoada já tinha a convicção de que todo bom romance devia ser uma transposição poética da realidade”.

E é essencialmente essa a caminhada que o leitor trilhará ao acompanhar os fatos que antecederam o falecimento do excêntrico médico: a de uma história que flui em direção a um rio de prosa que ao mesmo tempo transborda e ilumina o contado em uma poesia arrebatadora, reflexiva e ao mesmo tempo sem perder a direção para onde o curso da trama é empurrado.

Do ponto de vista do protagonista, vemos ao longo do texto o que faz a comunidade alimentar o ódio pelo médico, o qual sequer sabiam o nome ao longo de cinco anos de estadia, e também momentos em que ele flerta com virtudes como a dignidade, a sensibilidade e uma luta interna do “homem-presente” com o “homem-passado”. Vemos aí o tempo como arena desse humano embate.

“Há já algum tempo havia suprimido a refeição da tarde e, a princípio, teve-se a impressão na casa de que voltava cansado e ia diretamente para a rede, dormir até o dia seguinte. Mas não demorou muito para que percebesse que algo de extraordinário acontecia em suas noites. Ouvi-o mover-se no quarto com uma atormentada e enlouquecida insistência, como se nessas noites recebesse a visita do fantasma do homem que ele fora até então, e ambos, o homem passado e o homem presente, estivessem empenhados numa surda batalha na qual o passado defendia sua raivosa solidão, seu invulnerável aprumo, seus personalismos intransigentes; e o presente, sua terrível e imutável vontade de libertar-se do próprio homem anterior. Via-o dar voltas no quarto até de madrugada, até quando sua própria fadiga esgotava a força do adversário invisível”.

A busca pelo que já não está em si, do falecido protagonista, aparece em outros momentos:

“Praticamente estava vivendo uma tardia e estéril adolescência e esmerava-se no vestir como um adolescente, a roupa alisada todas as noites com o canto das mãos a frio, mas sem ser suficientemente jovem para ter um amigo a quem pudesse transmitir suas ilusões ou seus desencantos”.

Apesar de não haver em A revoada a hegemonia do chamado “realismo mágico”, a descrição poética de cenários, como a natureza, dá lugar a uma visão “encantada” da vida e do lugar narrado:

“A única coisa que parecia viver em meio àquele imenso forno era o surdo reverbero dos grilos excitados pela sede da natureza, e a minúscula, insignificante e no entanto desmedida atividade do alecrim e do nardo, ardendo no centro da hora deserta”.

A revoada é uma leitura essencial de um jovem Gabo, de um universo que irá se desenvolver formado por tempos, solidões, chuvas, ruas vazias, dias empoeirados, casas velhas e abandonadas, guerras e funerais.

“ – Tudo isso passará quando nos acostumarmos à hojarasca.”

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