Poema de agora: Carta – Adélia Prado (Vídeo e voz de Áquila Almeida)

Carta

Jonathan,
por sua causa
começam a acontecer coisas comigo.
Ando cheia de medo.
Quero me mudar daqui.
Enfarei dos parentes, do meu cargo na paróquia
e cismei de arrumar os cabelos como certas cantoras.
Não tenho mais paciência com assuntos de morreu, quem casou,
caí no ciclo esquisito de quando te conheci.
Fico sem comer por dias, meu sono é quase nenhum,
ensaiando diálogos pra quando nos encontrarmos
naquele lugar distante dos olhos da Marcionília
que perguntou com maldade se vi passarinho verde.
Me diga a que horas pensa em mim,
pra eu acertar meu relógio pela hora de Madagascar,
onde você se aguenta sem me mandar um postal.
A não ser o Soledade e minha querida irmã
ninguém mais sabe de nós.
Só a eles conto meu desvario.
Bem podia você telefonar, escrever, telegrafar,
mandar um sinal de vida.
Há o perigo de eu ficar doente.
Me surpreendi grunhindo, beijando meu próprio braço.
Estou louca mesmo. De saudade. Tudo por sua causa.
Me escreve. Ou inventa um jeito – eu sei mil –
de me mandar um recado.
Da janela do quarto onde não durmo
fico olhando Alfa e Beta – que na minha imaginação
representam nós dois.
Você me acha infantil, Jonathan?
Pediram insistentemente para eu saudar o Embaixador.
Respondi não. Com todas as letras, não.
Só pra me divertir expliquei
que aguardo nesta mesma data visita da Manchúria,
professor ilustre vem saber
por que encho tantos cadernos com este código espelhado:
OMAETUE NAHTANOJ.
Torço para estourar uma guerra
e você se ver obrigado a emigrar para Arvoredos.
Me inspecionaram. Devo ter falado muito alto.
Beijo sua unha amarela e seus olhos que finge distraídos
só para aumentar minha paixão.
Sei disso e ainda assim ela aumenta.
Alfa querido, ciao.
Sua sempre, Beta.

(Carta, Adélia Prado, “A Faca no Peito” – Vídeo e voz de Áquila Almeida)

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