Poema de agora: LOUCA LUCIDEZ – Patricia Cattani

LOUCA LUCIDEZ

Que eu perca a infância, perca o cascão da ferida, lambida,
Perca a brincadeira de roda e a boneca mais querida
Que eu perca o dia já perdido na preguiça
e a madrugada mergulhada na pesquisa.

Que eu perca a janta enrolado na manta
e a longa espera da minha esfomeada pança.
Que eu perca a fome, perca o nome
o talher e o sobrenome

Que eu perca a carteira na cabeceira
perca meu mísero vintém
perca tudo que me convém
perca a expressão de horror, de pavor, torpor
perca a novela e até a hora do “Jô”

Que eu perca a hora, minuto, segundo e terceiro
também o quarto, a cozinha e o banheiro
Que eu perca o alvo, a mira
a régua, a métrica e a rima

Que eu perca o debate, a réplica e a tréplica
perca o vício e a verdade concreta
Que eu perca sua cueca samba-canção- da-américa
perca o passo, compasso da música, da dança,
Que eu perca a salsa, a valsa, o bolero e o baião
Baião de dois, arroz e feijão

Que eu perca a linha, a linha do tempo, a linha da vida impressa na mão
perca a linha da pauta, a aspas e o travessão
Que eu perca o trema, a vírgula, o sujeito e o predicado
perca a oração… a Oração de Santo Olegário

Que eu perca a viagem, a passagem, a bagagem
perca o riso raso, o sorriso largo, e o olhar profundo
Que eu me perca dançando quadrilha no meio do mundo.

Que eu perca o passo, passado, futuro e presente
perca a risada, e o sorriso amarelo contente
Que eu perca a largada já por mim antecipada na topada do percurso
perca a juventude, zelando por meu rebento, como um urso

Que eu perca a carona na ida e na volta,
perca a engrenagem, e a chave de roda,
perca o sapato, e a rabiola
perca minha parafuseta da rebimboca

Que eu perca a visão, audição, que eu perca a ilusão
perca o pudor, a roupa, a voz e a vergonha
Que eu perca o rumo, o prumo e me torne pamonha

perca a vaidade e a idade

Que eu perca a ingenuidade, a malandragem
perca a seriedade e a mediocridade
Que eu perca a coragem do acordar do dia que já não mais existia
perca a vida já inserida na morte tão sentida.

Porém, contudo, entretanto, aliás, todavia…
que nunca me falte… por mais complexa que seja a vida
que nunca me falte
digo mais uma vez
Que nunca me falte…
a minha mais perfeita e LOUCA LUCIDEZ

Patricia Cattani

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *