Sob o impacto do samba-enredo da Maracatu da Favela: “escola do povo, raiz da igualdade” – Por Yurgel Caldas – @CaldasYurgel

 

Por Yurgel Caldas

O samba-enredo da Maracatu da Favela, de tão fantástico que é, nem precisa ganhar o Carnaval de 2023. Será lembrado para sempre como um samba histórico que merecerá ser cantado em cada oportunidade que existir. Enquanto uns acenavam com um “pode ser” ou um “talvez” ao apelo janarista de cooptar comunidades negras para a política territorial de expansão da cidade de Macapá, apagando a história dessas populações, Gertrudes Saturnino Loureiro deu um sonoro “Não” a essa política, liderando sua comunidade para aquilo que seria a formação do bairro da Favela, atual Santa Rita, num duro processo de resistência e afirmação da africanidade que marca a ocupação do Amapá e, mais especificamente, de capital do Estado.

A letra do samba “Resistência é favelar” é de autoria de Carioquinha, Gulle, Sandro Macapá, Davi Silva, Eli Penteado e Cláudio Rogério. Nela, há uma unidade narrativa difícil de encontrar par nas demais letras dos enredos desse ano. O griô (indivíduo da África ocidental pertencente a uma casta de poetas, cantores e narradores, contador de histórias pela memória oral e em função de suas experiências) é quem narra todo esse processo histórico de luta e resistência, que retrata perfeitamente a ideia da letra. Como me disse um dia desses o professor e historiador Paulo Cambraia, acertadamente, essa letra tem mais de um refrão e também por isso “pega na avenida” e se torna fácil de ser incorporada no contexto do desfile. E assim foi feito! Senti essa eletricidade já no ensaio técnico na Ivaldo Veras e, no dia do desfile oficial, foi ali que o negócio pegou um fogo verde e rosa difícil de descrever, mas muito fácil de se queimar. Além disso, a história resgata realmente os movimentos de resistência liderados por Dona Gertrudes, uma mulher que botou sua voz para funcionar em respeito às tradições de seu povo. Em certo sentido, Gertrudes é essa griô que pede licença às entidades (“Agô, agô, favelando eu vou na avenida”) para contar essa história a qualquer custo: “Me dê licença que eu vou passar/ Pode o céu desabar, ninguém vai de conter”. Essa força da natureza é traduzida pelo samba, que nada mais é (e não é pouca coisa) do que uma ode à autoafirmação da cultura negra: “Punho cerrado eu vou/ Pisando forte entre becos e vielas”.

Já na avenida, o conjunto da escola de samba Maracatu da Favela acendeu de vez o pavio de sua voz de resistência e, literalmente, fez chover num desfile de orgulho das suas raízes, as nossas. Esse movimento já aparece com a voz da bisneta de Dona Gertrudes, a cantora Lorrane, que entoa no “esquenta” um ladrão de marabaixo como introdução do samba-enredo: “Tem que respeitar a linda trajetória delas!”. À frente do samba, impõe-se a performance do intérprete Carioquinha, que se livra dos grilhões de sua fantasia (“quebrando forças da opressão”) para interagir diretamente com o público em diversas oportunidades durante o desfile.

A bateria Surfista, impecável na condução percussiva do samba (na sua tradicional “cadência bonita”), desliza na avenida e traduz perfeitamente o desafio da letra: “Eu quero ver você resistir/ O surdo um tocando no seu coração”. Simplesmente, não dá! Vou finalizar rendendo homenagem à perfeição que é a rainha da Surfista: Nauva Alencar – que excelência na condução desse conjunto e que magnetismo! “É de arrepiar!/ Bate no peito: resistência é favelar”.

Sim, eu vi, senti e conto aqui: “Jamais vão nos calar/ Nossos tambores têm memória”

*Yurgel Caldas, que é professor de Literatura da Unifap e do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGLET) da mesma instituição.
**Fotos: Israel Cardoso Jr./GEA

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