Caixa Amarela – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Joca guardava alguma coisa atrás da porta, dentro de uma caixa amarela, do tamanho de um punho fechado.

Guardava quando vinha a tarde, e soava o sino da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, que fica lá no fim da rua próxima a Praça.

Muitas vezes o som do sino era abafado pelo barulho das andorinhas, que em bandos passavam rasantes por cima da vala.

Foto: Elton Tavares

Joca sentia o cheiro do som do sino. Ia até o quintal e cavava a esmo, e encontrava a caixa, e com ela debaixo do braço esquerdo ia com rapidez pô-la atrás da porta. Atrás da porta do quarto de Alípio. Seria para protegê-las do luar das luas de Marte?

Esta porta ficava proibida de ser aberta até que quase amanhecesse o dia seguinte, quando Joca pegava a caixa amarela, e ia enterrar no quintal. Alípio entrava e saia no quarto pelo vão, entre a porta e a parede.

O dia em que Joca foi pescar era um dia frio de Julho, o dia dezenove de Julho, o dia em que o sol sai em Câncer, e avança até a oitava casa astral, em Leão. Neste dia, ficamos sozinho, eu e o cão. Um vira-lata muito esperto de apelido Pulg Dog, um ônibus de pulgas. Um cão peludo, alegre, vivaz, perseguidor de gafanhotos, baratas e ratos, pela beira da vala, em frente a casa.

A vala, que sempre enchia com as grandes águas, agora estava cheia.

O cão perseguindo uma barata entrou atrás da porta do quarto de Alípio.

Eu sentado na sala estudando, ouvi o barulho do som do sino, e um arco-íris se estendeu no corredor até sumir no ralo.

Mais à noite o cão passou várias vezes uivando e voando pela frente da casa dentro do arco-íris, sempre quando o sino tocava.

Os patos selvagens vindos do Alasca sobrevoavam a casa amando-se em grande algazarra. As cegonhas oriundas da Patagônia pousavam na mangueira ao lado, com suas pernas longas e depiladas. Doce era aroma dos arengues desovando na vala. Talvez alguns deles lembrassem de Daniel Boone, Davy Crockett.

Foto: Elton Tavares

Às vezes, o arco-íris parecia muito gelado, outras vezes apenas um espectro projetado nas retinas.

Eu sentado na sala observava tudo. Doutro lado da folhinha do Calendário ficava o futuro, que eu só alcançaria, se caminhasse descalço com os pés encharcados de chá.

E caminhar, é um sonho, que guardo quando acordo. Por isso coloquei um espelho, para o lado de fora da janela, para que os reflexos das estrelas do hemisfério Sul, iluminassem a vala.

E sinalizassem a casa. Para o Joca, e para o cão.

Joca chegou da pesca com os olhos vermelhos, a boca seca e dorso cortado a chicote. Maltratos do feitor de escravos, que centenas de anos ele guardava. Via-se que havia chorado.

Ninguém lhe contou nada, nem do cão, nem da caixa.

Dormiu tremendo de febre. De manhã foi ao quintal e se enterrou.

A tarde, o sino ficou calado. O cão mora comigo em um retrato desbotado, atrás do Calendário que não tem mais dias para contar.

*Do Livro “Defronte a boca da noite ficam os dias de Ontem”.

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