Xeque-mate (conto de Ronaldo Rodrigues)

Com um potente soco na mesa ele decreta o final da partida. Sua gargalhada glacial ecoa pelas paredes musgosas do labirinto. Ele grita, com sarcasmo:
Xeque-mate! Você perdeu mais uma vez!

Fui vencido nas oito partidas que disputamos. Minha falta de habilidade deve ser paga com a vida. É o que leio em suas pupilas gigantescas, em seus olhos de touro enfurecido.

Perder significa o fim. Sua lei, imposta a todos os que são atirados ao labirinto, consiste no seguinte: quem o vencer será poupado. E quem perder será impiedosamente devorado.

Levanta-se e me fala pela última vez, do alto de seus dois metros e meio de estatura e arrogância, mastigando as lesmas que costuma comer durante as partidas:

– Pode ir embora! Ainda não é um adversário! Não ameaçou uma só vez, não fez um movimento consciente de defesa, não ofereceu resistência alguma! Não houve jogo, logo eu não venci e você não perdeu! Você não passa de um verme, um covarde, um tolo! E por isso está perdoado!

Não há notícia que ele tenha sido condescendente com algum adversário em toda a sua vida. Ele esboça um sorriso superior e indica a direção que devo tomar para encontrar a saída do labirinto. Depois, dá as costas e desaparece pelos intrincados corredores, levando seu tabuleiro de marfim em busca de adversários à altura.

Ainda perplexo, saio do labirinto. Sou aclamado como um herói. Afinal, eu sou a única pessoa a sair do labirinto em todos esses anos. E graças aos meus dotes de péssimo enxadrista.

Por ser um verme, um covarde, um tolo, escapei de ser devorado pelo Minotauro.

Ronaldo Rodrigues

Codinome Bette Davis – (conto de Ronaldo Rodrigues)


Ela tem os olhos de Bette Davis.

Ela tem os óleos de Bette Davis.

Los ojos de Bette Davis.

The eyes e uis de Bette, the best.

Bette Davis é assim:

– Milhares de olhos olhares de sinuosas serpentes insinuantes em suas performances e nuas nuances que se multiplicam e se aplicam picantes.

– Várias e velozes e veludosas vozes, suaves aves naves, com suas asas que abraçam brasas.

– Faces-fases, multifacetados disfarces de um ultra-travesti que faz do falo algo que fala, como galos gargalos gargalhando na goela.

– São músculos másculos maiúsculos fêminos singuplurais, deslumbrando a penumbra do nosso decadente quarto crescente, indecente, incandescente, transcendente.

– São cabelos de medusa confusa que me usa, roçando rolando do crânio subcutâneo, cruzando ares & bares como alados cavalos lunares, plumares, por mares nunca por Dante navegados.

– Com suas garras e cigarras, retalha e metralha a mortalha do cortiço e a cortiça dos cigarros a todo instante deflagrados.

– Ela é a mulher de minha dúvida, dádiva de minha vida, dividida, endividada, individual, dualizada.

– De seu submundo, ela me subjuga, subsuga, subsuja.

– A boca desse bardo conturbado sibila a sílaba, a palavra lavrada, desferida contra o alvo aberto descoberto da ferida. E goza o gozo azul-lilás da rosa.

Sim. Ela tem os olhos de Bette Davis. Mas desconfio que seu verdadeiro nome seja Bates. Norman Bates.

Ronaldo Rodrigues
* Texto inspirado na música de Bette Davis Eyes, cantada pela Kim Carnes. 

Pequenas historias do Dia-dia: diálogo


Creusa era uma mulher a moda antiga, casou cedo a labuta sempre presente.
Não curtiu nada de sua vida, antes que pudesse respirar veio o primeiro filho: Oswaldo.

Criança normal, brincalhona, inteligente um tanto quanto sapeca, como é normal em sua idade.

A relação entre Creusa e Oswaldo se fortaleceu muito quando Benedito o marido fugiu com a malabarista do circo.

Creusa não se abalou nem um pouco, seguiu em frente, trabalhou muito. Tinha pouco mais era o melhor.

Um dia ao chegar em casa um pouco mais cedo, estafada tinha terminado mais uma faxina, era a quarta naquele dia, se deparou com uma cena que nunca esperou ver:

Paulinho, molecote, recém chegado na vila, dezoito anos encontrava-se nu com o corpo em cima das costas de Sabrina.

-O que esta acontecendo aqui? Indagou uma assustada Creusa.
-Calma mãe, não é nada disso que a senhora esta pensando. Explicou “Sabrina”.
-Calma Dona Creusa, disse um quase sem voz Paulinho.
-A vida é assim mesmo, mãe quando menos esperamos temos surpresas. Disse Sabrina.
-Mas como? Pergunta Creusa
-Nos olhamos e nos gostamos, há muito tempo queremos nos encontrar. Argumentou Sabrina
-É mamãe fique feliz.
-Mas Oswaldo não te criei assim.
-Oswaldo????? Entrou em duvida Paulinho.
– Sabrina você é Homem?
-Até dois meses atrás eu era. Responde um Oswaldo/Sabrina com um termino sorriso cínico.

POBRE CREUSA, DE TANTO TRABALHAR, NÃO REPAROU O QUE ACONTECIA NA PRÓPRIA CASA.

Marcelo Guido

Sorte (conto de Ronaldo Rodrigues)


– O próximo!

Um senhor de 52 anos, de aparência bastante humilde, adentra o imponente escritório.

– Muito bem, seu… seu Gastão. É isso?
– Isso mesmo…
– Pois bem, seu Gastão! Vamos direto ao assunto! Em televisão, tempo é dinheiro! Concorda?
– Conc…
– Informo que o senhor é o próximo sorteado do programa Uma Noite, Uma Fortuna, nosso campeão de audiência.
– Puxa vida!
– O senhor sabe que a cada programa sorteamos um milhão de reais para um ganhador. Desse dinheiro, o senhor terá direito a 100 mil, o que, convenhamos, é uma bolada pra quem está desempregado há oito meses.
– Claro…
– O restante do dinheiro ficará com a emissora para garantir a continuação do programa. 

O senhor compreende que um prêmio desses, a cada programa, são três por semana, quebraria o caixa.

– Compreen…
– Então? O senhor aceita?
– Bem… É uma coisa que me pegou assim, de surpresa…
– Isso mesmo, seu Gastão! O senhor é bom, hein? No momento em que for contemplado, o senhor deverá ostentar essa mesma cara de bobo que está fazendo agora! Tem que parecer surpreso! Admirado! Estupefato!
– Certo… Cara de bobo é uma coisa que sei fazer muito bem… Acho que só me resta aceitar.
– Ótimo! Assim é que se fala! Assine aqui! E agora o senhor será encaminhado a uma sessão de fotografia.
– Muito obri…
– O próximo!
Após uma noite inteira de insônia e um dia de debate com sua consciência, seu Gastão chega ao estúdio onde o programa será transmitido ao vivo, em horário nobre. No auditório repleto de candidatos, seu Gastão assiste às piadinhas do apresentador, enquanto as atrações musicais se sucedem. Por fim, o programa chega ao ápice, com o apresentador abusando do suspense.

– E o grande sortudo de Uma Noite, Uma Fortuna, o mais novo milionário do Brasil, é o número…
O apresentador olha para o auditório em silêncio e, depois de medir sua capacidade de causar impacto, prossegue:

– É o número cinco… oito… meia… um!
Comoção no auditório. Irrompem gritos, assovios, aplausos. Câmeras e holofotes percorrem a plateia e encontram seu Gastão mostrando tristemente o cartão premiado. Tristemente?

Seu Gastão encara uma das várias câmeras espalhadas pelo estúdio e dispara:

– Eu quero falar uma coisa muito séria! Este programa é uma faaaaar…

Blackout. Pânico no auditório. Em meio ao caos, seu Gastão sente o piso ceder sob seus pés e a cadeira cair junto com ele num abismo sem fim. Imediatamente, surge outra cadeira no mesmo lugar, com um sósia perfeito de seu Gastão.

As luzes voltam a iluminar o estúdio. As câmeras flagram o novo seu Gastão brandindo alegremente o cartão premiado. O apresentador não perde tempo:

– O que era que o felizardo desta noite dizia mesmo?
– Este programa é uma faaaaaartura de felicidade! Uma dádiva dos céus! Uma oportunidade única que o destino me reservou!
– Aplausos! Aplausos! E não percam o próximo programa Uma Noite, Uma Fortuna. Até lá e obrigado pela atenção!

Ronaldo Rodrigues

A Máquina x Eu (conto de Ronaldo Rodrigues)


Estamos num ringue de boxe, segundos antes do Combate do Século, como dizem os jornais.

Fora do ringue, ocupando todas as cadeiras do estádio, a turba enlouquecida grita o nome dEla. Aquela torcida gigantesca e apaixonada é toda para Ela.

Ela, a Máquina, é um potente computador de última geração, de avançada fabricação japonesa.

Tem história, curriculum vitae, tradição oriental, árvore genealógica, pedigree e mapa astral. E está desde tempos imemoriais programada para me destruir.

Eu não tenho absolutamente nada, além do medo hereditário que me aprisiona ao estado de animal humano diante da sentença de morte: o embate fatal, inevitável.

A Máquina irá me estraçalhar no primeiro round. E a turba enlouquecida, ávida por sangue, no último estágio de histeria coletiva, terminará o massacre. Pisará meu corpo desfalecido, chutará minha cabeça esfacelada.

Estou sufocando, suando, tentando a todo custo continuar respirando! Quero gritar! Me levantar! Correr! Me libertar! E não consigo! Não consigo! Não…

Nããããããããããããããããããããããããããooooooooooooooooooo!

Acordo atarantado e a Máquina, ao meu lado na cama, me acalma com todo tipo de carinho. Somos casados há oito anos e sempre sonho que um dia seremos adversários mortais.

Ronaldo Rodrigues

Poema de agora: O senador que virou Deus

Certo dia um senador
cansado de andar pelo senado de pires na mão
decidiu recorrer aos índios,
Aos quais nem precisaria pedir
a grana já estava na mão.
E pensou… Pra quê avião? Pra quê injeção? Se índio nem vota na eleição.
E tome picada de cobra,
infecção e amputação a comissão já estava na eleição.
Decidindo sobre a vida e a morte
o senador se fez Deus.
E hoje nos confins do Amapá
os que temiam Tupã hoje temem a Gilvã.

*Recebi este escrito do meu amigo Josean Ricardo em 2011 e repostei a crítica hoje por conta do Dia do Índio. 

Se arrependimento matasse… (conto de Ronaldo Rodrigues)

– Você vem sempre aqui?
Cantada velha, mas ela esta a fim de ser apanhada em qualquer cantada.
– Sim. Eu sempre venho aqui na esperança de ouvir uma cantada original. Mas essa serve. Vamos para sua casa?
Ele recua. Não está acostumado com essa facilidade. A cantada é sempre a mesma, a única que ele tem, mas nunca funciona. É apenas um protocolo que cumpre nos bares. Ele precisa disso para comprovar sua ideia de que todo homem bêbado precisa de uma mulher para findar a noite.
– Vamos ou não para sua casa? Ou prefere um motel? É casado?
Ele recua mais ainda. Está quase arrependido de ter iniciado a conversa. Além do mais, nem está tão bêbado assim.
– Vai responder ou não? Se não está a fim, diga logo. Não quero voltar pra casa hoje sem ter transado.
Ele não recua mais porque já tinha recuado muito.
– Vamos conversar mais um pouco.
– Sei. Você é das antigas. Mas não quero intimidades. Pra que conversar se amanhã ninguém se lembrará de nada mesmo? Aliás, é melhor assim, sem criar laços.
Ele permanece mais um tempo calado, depois fala, sem muita convicção:
– Tudo bem. Vamos a um motel aqui perto.
– Ótimo.

Chegam ao motel e ela logo fica nua. Deita-se na cama, enquanto ele vai ao banheiro. Quando volta, ela dispara:
– Ainda está de roupa? Você é muito vagaroso.
– É que eu não estou acostumado com essa… essa… 
– Essa o quê?
– Sei lá! Você tem razão. Sou mesmo das antigas. Preciso de um estímulo maior.
– Vou dar o estímulo que você precisa.
Liga as palavras aos gestos. Levanta-se e o joga na cama. Arranca sua camisa, abre o cinto, puxa a calça, tira a cueca e se joga em cima dele, que fica imóvel e não consegue corresponder às carícias cada vez mais quentes. Ela busca todo o seu arsenal de jogos eróticos, até que, finalmente, consegue que o corpo dele tenha uma reação.

Depois de alguns minutos, os dois fumam, quando batem na porta. Ela permanece calma, enquanto ele pula da cama:
– Quem será?
– Só abrindo a porta pra saber.
– Você tem alguma coisa a ver com isso? Qual é o plano? Me assaltar?
Ela vai até a porta, falando entre um sorriso sem graça:
– Que onda…

Ela abre a porta e atende à funcionária do motel, que lhe entrega um bilhete e se retira.
– É só um bilhete. E é pra você.
– Um bilhete? Pra mim? Aqui? Quem poderia saber que estou aqui? E quem mandaria um bilhete pra mim?
– Só vai saber se ler o bilhete.
– Eu vou ler, mas essa história está muito esquisita. Aposto que você tem alguma coisa a ver com isso!
– Deixa de paranoia e lê logo a merda desse bilhete!
Ele abre o bilhete e o lê várias vezes, em silêncio. Ela perde a paciência e arranca o bilhete de sua mão.
– “Cuidado! Você está em perigo!”. O que significa isso?
– E eu sei? Você deve saber! Tenho certeza de que está metida nisso!
– Escuta aqui, cara! Você já não é bem grandinho pra inventar essas histórias? Pra quê que eu ia armar pra cima de ti? A gente se encontrou por acaso na merda daquele bar. Se arrependimento matasse…
Ela não termina a frase. A funcionária do motel abre a porta novamente e dispara três tiros. Ela, com um resto de vida, ainda têm tempo para perguntar:
– O… que é… isso?
Ele, agora abraçado à funcionária do motel, sorri entre baforadas de cigarro:
– O bilhete não é pra mim. É pra você. É o tal do arrependimento. Como você pode ver, arrependimento mata…

Ronaldo Rodrigues

Piquenique (conto de Ronaldo Rodrigues)


Chapeuzinho Lilás e Lobo Blau estavam nus, passeando pelo bosque. Suas roupas ficaram próximas ao lago, onde haviam passado a manhã inteira, em doces brincadeiras de mergulho, se procurando com ansiedade e se encontrando com sofreguidão.

Escolheram um lugar bastante aprazível, entre árvores cúmplices de vários amores.

Estenderam a toalha que Chapeuzinho Lilás trouxera da casa da avó. Estavam completamente despreocupados com a possibilidade de ser vistos. Tinham resolvido que naquele dia assumiriam seu amor proibido e ficariam juntos para sempre, de maneira que ninguém pudesse interferir.

Com movimentos lentos, ritualísticos, Chapeuzinho Lilás abriu a cesta e retirou uma garrafa de mel. E passou a lambuzar os corpos dos dois amantes, entre beijos e ridos de êxtase.

O Lobo Blau abriu outra garrafa e despejou em volta uma colônia de formigas vermelhas, que passaram a trafegar pela toalha, com finalidade estratégica.

Depois, Chapeuzinho Lilás e Lobo Blau se abraçaram, se beijaram, gemeram e gozaram em meio ao mel e às formigas que começavam a devorá-los.

Ronaldo Rodrigues

O DIA DA TRAVESSIA

Por Ronaldo Rodrigues

O canal se estendia à minha frente. Toda manhã, ao abrir a janela, lá estava ele, num permanente desafio.

Do outro lado do canal ficava a fonte da juventude, bem ao lado do castelo da mulher com mais de 300 anos que, segundo diziam, todo dia bebia da fonte e assim mantinha seus traços de 16 anos. Muitos homens tentavam atravessar o canal para vê-la. A maioria retornava depois de poucas braçadas. A correnteza era muito violenta. Muitos morreram na travessia. Todos os homens da cidade tentavam. E estava chegando a minha vez.

Sempre que se entrava na adolescência era o momento de se tentar a travessia. Antes disso, a vida se resumia em treinar. Meu cachorro Madrugada me acompanhava nos treinamentos e quando me senti preparado para realizar o feito, Madrugada se mostrou muito interessado em ir comigo:

– Você não precisa ir. Deixe que eu trago um pouco da água da fonte da juventude pra você. E à mulher do castelo eu digo que você mandou saudações.

Madrugada não entrou em acordo e, no dia da travessia, lá estava ele ao meu lado, recebendo os cumprimentos e as recomendações de toda a população.

Mergulhamos no canal e percorremos uma grande distância até Madrugada se afastar. Ele tomou a dianteira e eu o perdi de vista. Eu já estava exausto quando cheguei ao outro lado. Andei pela praia, em direção à fonte da juventude e a encontrei seca. Fui ao castelo e percebi que ele era de areia e se desmanchava com o sopro da minha respiração. 

Saí procurando Madrugada e a menina de 300 anos. Só os vi quando olhei para o outro lado do canal, de onde eu havia saído. Lá estavam os dois passeando pela tarde, acenando para mim. Ao retribuir o aceno foi que reparei em minhas mãos se tornando flácidas, a pele e a carne se desmanchando igual ao castelo de areia, igual ao sonho de encontrar a juventude, igual a este conto e a tantas coisas que chegam ao fim.

Microcontos de Ronaldo Rodrigues (parte I)


BUROCRACIA É O FIM

– Vim falar com Deus.
– Tem hora marcada?

MUDARAM AS ESTAÇÕES
No outono, no inverno,
minha prima Vera vira verão.

BLÁ-BLÁ-BLÁ
Quando faltar assunto, fique em silêncio.

CUIDADO – FRÁGIL
Quebrei meus olhos nas plumas do caminho.

BALA PERDIDA NÃO EXISTE
Todo coração tem endereço fixo.

MATOU A SAUDADE
Deu um tiro no peito.

GANGORRA
– Olha como eu toco no chão!
– Olha como eu toco no céu!

BASEADO BLUES
Fumaça colorida no ar de Barcelona.

FOLHA DE PAPEL A ME DESAFIAR
Te risco.
Me arrisco.

NO PAÍS DO CARNAVAL
Na quarta-feira, deparou com as cinzas do pierrô.

PÁSSARO NA GAIOLA
Só a ilusão conseguiu fugir.

ME DEIXASTE!
Me vingo te amando mais.

EM BRANCAS NUVENS
Lá vai a vida assim
sem saber se foi bom ou ruim.

MUDARAM AS ESTAÇÕES
A flor e a folha mudaram de ramo.

Ronaldo Rodrigues