Pimenta (Fernando Canto)

Olha aí, suman@, essa desculpa de esfomeado. Dizem que a nossa Diquinha não tinha um pau pra dar num gato, estava com uma fome daquelas. Por volta de uma da tarde sentiu o cheiro de peixe frito vindo do quintal do vizinho e não contou parada. Debruçou na cerca e largou o papo furado: – Ei, mano, me dá um pouquinho desse teu peixe, tá? É só pra aproveitar esta minha pimenta malagueta…

Fernando Canto 

De trem

Conto de Ronaldo Rodrigues

Numa panorâmica pelo quarto, vamos encontrar um cesto de lixo transbordando papéis amassados e copinhos de café. Sobre a mesa, uma velha máquina de escrever, uma caneta com tampa mordida e um cinzeiro com ponta de cigarro ainda acesa.

O homem nu, de gravata e chapéu, nada consegue escrever, apesar de sua insistência e do relógio na parede sempre avançando as horas e o lembrando do compromisso inadiável.

Deitada nua no sofá, a mulher dorme. Seu rosto denuncia um sonho bonito. Ela sorri e murmura algumas frases incompreensíveis.

O homem nu, de gravata e chapéu, veste a calça, o paletó, coloca os sapatos e acorda a mulher, mostrando o relógio na parede. É chegada a hora da partida. A mulher balança levemente as mãos, dissipando uns restos de sonho, e também se veste. Os dois saem. 

Na escuridão, no mais absoluto silêncio, o gato desce do sótão e senta-se diante da máquina de escrever.

***   ***   ***   ***   ***   ***

Homem e mulher chegam apressados à estação. Por pouco não perdem o embarque. O trem dispara velozmente por entre montanhas, vales e florestas. No próximo túnel, as trevas da noite engolirão o trem, que vai cair no abismo. É um trem exclusivo de suicidas.

Segundos antes de o trem se desmantelar na muralha do vazio, a mulher olha para o homem e pergunta se ele conseguiu escrever a carta de despedida:
Não consegui. Espero que o gato consiga…

Desconfortáveis encontros casuais


Encontro um velho conhecido. 

Ele: “Cara, você tá muito gordo!”. Eu, (em pensamento, digo eu sei caralho, vai tomar no cu!): Ah, cara, sabe comé, sem exercícios físicos, sem tempo pra muita coisa, muita cerveja e porcarias gordurosas (que amo). 

Sem nenhum assunto, fico em silêncio. 

Ele: virei médico e você? 

Eu: sou jornalista. 

Ele: ah, legal (com um ar de desdém que vi ao encontrar outros velhos conhecidos advogados, administradores, contadores, ou alguma outra profissão rentável). 

Aí um de nós subitamente diz que está atrasado e marca uma gelada qualquer dia com nossas respectivas esposas ou namoradas e vamos embora. Com certeza, passaremos mais 10 anos sem nos falarmos, graças a Deus. 

Elton Tavares

O primeiro poema do ano

Conto de Ronaldo Rodrigues

O tinteiro, a pena e o papel estavam lá, à minha frente, sobre a pequena escrivaninha, herança de meu avô. Eu estava tranquilo e os ruídos que chegavam da rua não me perturbavam. Eram os fogos recebendo o ano novo. Eu tinha marcado encontro com a solidão e estava ali no meu quarto, sozinho no mundo, com a firme intenção de escrever o primeiro poema do ano.

Eu procurava uma maneira de iniciar o desafio que me foi imposto pela vontade de extravasar os sentimentos por tanto tempo guardados no peito. Naquela madrugada de festa para o mundo, eu iria escrever um poema.

Eu nunca havia escrito um poema antes e aquela súbita ideia me pareceu absurda. Ela me atingiu no ônibus que vinha lotado de passageiros suados e cansados, assim como eu. A única diferença entre eu e os outros passageiros é que eles iriam tomar um belo banho e se preparar para a festa do ano-novo. Eu não. A minha intenção era me trancar no meu quarto de miséria e ficar só, irremediavelmente só.

A vontade de escrever um poema mudou um pouco o meu estado de espírito. O ônibus era trepidante e barulhento, mas o desejo de escrever um poema me fez flutuar ao som de uma linda sinfonia e nem notei se a viagem foi longa.

Tomei um banho demorado, curtindo as bolhas de sabão que dançavam à minha volta, e observei, pela primeira vez, os desenhos herméticos que as idas e vindas das formigas formavam no branco do azulejo.

Saí do banheiro e vesti a roupa mais simples. Fui ao minúsculo quintal e reguei a única planta que eu cultivava. Pela primeira vez, também, conversei com ela. Depois, alimentei os cães e gatos vadios que, à vezes, me visitavam. Eram as únicas visitas que eu recebia. Mudei a disposição dos poucos móveis do quarto e coloquei uma cortina na janela.

Dispensei computador e essas parafernálias eletrônicas. O meu primeiro poema seria escrito como se fazia antigamente, com tinteiro, pena e papel.

Lá fora os foguetes espocavam e as pessoas se cumprimentavam. E eu estava ali, em total solidão, com a firme determinação de escrever o primeiro poema do ano. O primeiro poema da minha vida.

– Temos Rei!

Conto de Ronaldo Rodrigues

No ponto seguinte embarcou o cego. Movia-se com tal desenvoltura que se poderia jurar não se tratar de um cego. Orientava-se com um tosco cajado e trazia na mão direita uma espécie de caneco de barro, um graal:

– Eu me chamo Samuel! Por favor, não tenham medo de mim! E ouçam-me!

Samuel falava de maneira extremamente solene, uma característica marcante, que ganhava maior autenticidade ao entrar em choque com sua pobre indumentária: uma suja túnica esfarrapada até as últimas fibras. A velha túnica e o graal eram seus únicos bens. Samuel prosseguia sua cantilena:

– Venho das páginas de um livro muito antigo. Estou aqui para sagrar o Rei!

Eu já sabia da existência de Samuel através de algumas pessoas minhas conhecidas que comentavam a respeito de um mendigo cego, visto todos os dias nos ônibus da cidade, à procura de um Rei:

– Este povo ingrato, ao qual tenho a missão de guiar, resolveu ignorar as palavras daquele que me enviou. Não querem mais o Rei semeador de jardins espirituais. O Rei utópico, o Rei onírico, não querem mais! Querem um Rei que possam tocar com as mãos e lhe beijar os pés! Querem um Rei para lhe pagar tributo e esperar sua proteção, sua misericórdia!

Agora eu constatava a presença messiânica de Samuel, ouvia suas palavras, que pareciam por demais lúcidas porque saídas da boca de um louco bêbado.

Num certo momento, Samuel ergueu o graal e um silêncio arrasador foi sentido dentro do ônibus, como uma presença física:

– Vejam todos! Dentro deste humilde caneco de barro eu trago o óleo perfumado que irá ungir o Rei, que está entre vocês, passageiros deste ônibus urbano, que percorre a imunda periferia desta metrópole maldita!

Samuel percorria o ônibus, procurando o Rei, olhando detidamente cada passageiro. Ninguém escapava daquele olhar opaco, parado nas órbitas, perdido no caos, mas que tinha uma iluminação diversa de qualquer outra luz.

Eis que o olhar de Samuel parou exatamente em minha direção. O meu olhar tentou fugir, por não se considerar digno de um olhar tão sábio. Nesse momento, Samuel ganhou grande vivacidade e falou alto, bem alto:

– Encontrei! Encontrei o que tanto procurava!

Fiquei atônito e isso se estampou em meu rosto e em todo o meu corpo. Senti que todos os olhares se fixaram em mim. Não só os olhares dos que viajavam no ônibus. Senti que era observado por todas as pessoas que existiam no mundo, mesmo as que já tinham ido e as que ainda não tinham chegado.

Samuel ergueu novamente o graal e derramou todo o seu conteúdo na minha cabeça. Um óleo que exalava o mais agradável odor que já pude sentir. A voz de Samuel assumiu proporções acústicas de uma gigantesca trombeta:
– Temos Rei! Temos Rei!

Imediatamente, o trânsito parou e todas as pessoas no ônibus se ajoelharam diante de mim. Fato esse seguido por todos os que se encontravam nos outros carros e também pelos pedestres que enchiam as ruas, pessoas que estavam nos edifícios, nos comércios, nas casas.

Seguindo essa corrente, percebi que já o bairro inteiro fervilhava em aclamações ao Rei. E não apenas o bairro em que estávamos, mas todos os bairros e toda a cidade, assim como todas as cidades. E não demorou uma fração de segundo para o país inteiro e o mundo todo se fazer ouvir, numa só voz:

– Termos Rei! Temos Rei! Temos Rei!

Quando já havia percebido que não se tratava de um sonho e investido de toda a responsabilidade e autoridade que aquele cargo me conferia, desci do ônibus com a temerária tarefa de governar aquela gente instável, desordenada e confusa.

Samuel, designado por sagrada decisão daquele que o enviou para me coroar, seria meu conselheiro supremo. Ele havia, no momento da revelação do meu destino, recuperado a visão.

Sentei no trono triunfalmente, aclamado pela infinita multidão de miseráveis, apenas uma parcela do povo que eu deveria conduzir daquele momento em diante, sem nunca mais poder olhá-lo novamente, pois no exato momento em que Samuel recuperava a sua visão eu perdia a minha. Para o resto da vida.

A noite dos peixes

Conto de Ronaldo Rodrigues

A Assembleia Extraordinária convocada pela Grande Ordem dos Peixes não foi atravancada por discursos prolixos ou questões de ordem burocrática. Terminou em poucos minutos, com os Peixes optando por uma firme tomada de decisão frente aos atos praticados pelos Pescadores.

Foi elaborado um manifesto em que os Peixes reclamavam da violação de um antigo pacto firmado pelos ancestrais de Peixes e Pescadores. O pacto celebrava a harmonia entre ambos os lados e determinava a proibição da pesca de filhotes pequenos e de fêmeas grávidas.

Em seu manifesto, os Peixes sugeriam vários caminhos para a conciliação, mas deixavam clara a intenção de invadir a aldeia, caso os Pescadores não fizessem valer os itens do pacto.

Na tarde daquele mesmo dia, o mar levou até a praia o envelope timbrado da Grande Ordem dos Peixes. O Chefe dos Pescadores, obrigado a interromper a sesta para ler o manifesto, ficou com o humor ainda mais azedo.

O manifesto foi lido entre um bocejo e outro e logo o Chefe dos Pescadores desatou a rir estrepitosamente. As gargalhadas se multiplicavam à medida que os outros Pescadores tomavam conhecimento do teor do manifesto.

Em meio à onda de zombaria, sem conter as gargalhadas, o Chefe dos Pescadores enfiou o manifesto no envelope, escreveu displicentemente que Peixes não escrevem manifestos, e o devolveu ao mar.

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No dia seguinte, os Pescadores voltaram a violar o pacto. Ao retornarem da pescaria, trouxeram em suas redes, entre os Peixes adultos, que era lícito pescar, uma grande quantidade de filhotes pequenos e fêmeas grávidas.

Os Peixes ficaram convencidos de que não adiantaria qualquer esforço para evitar o confronto. Reuniram-se rapidamente, formando um numeroso exército, e conceberam um plano de ataque para aquela noite. 

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Na aldeia, os Pescadores faziam uma grande festa, comemorando o sucesso da pescaria, e não perceberam um estranho rumor se elevando pouco a pouco. Os Pescadores só puderam ouvir quando o rumor se transformou num barulho ensurdecedor, que ultrapassou as ondas sonoras lançadas pelos alto-falantes que animavam a festa.

Os Peixes vieram navegando pelos ares e o atrito de seus corpos com o vento era o que produzia aquele barulho, anunciando um trágico desfecho.

Os Peixes continuaram sua marcha, investindo contra tudo e todos, derrubando portas, destroçando paredes, derrubando casas.

Enredados pela violenta tempestade de Peixes, os Pescadores corriam de um lado a outro da aldeia, na vã tentativa de defender suas famílias e propriedades.


Após alguns minutos de ataque, que aos Pescadores pareceram horas, os Peixes voltaram ao mar, deixando na aldeia uma trilha de sangue e destruição, onde se retorciam corpos agonizantes.

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Ainda hoje, decorridos muitos anos, se escuta na aldeia-fantasma o lamento de dor que os Pescadores deixavam escapar, tentando salvar seus filhos pequenos e suas fêmeas grávidas.

Foi Don Rei

Conto de Ronaldo Rodrigues, com pequena participação de Thiago Quintas

Foi Don Rei que me enfiou neste ringue. Me convenceu de que eu poderia ser boxeador. E agora estou aqui com estas luvas pesadíssimas diante de um cara de mais de dois metros, bufando, me olhando como deve olhar para a mosca no momento em que vai matá-la com uma palmada. Ele vai me estraçalhar com um sopro, vai me trucidar.

Olho pra Don Rei na primeira fila, com suas três esposas e o harém de amantes por trás. Don Rei ficou milionário com lutas de boxe. Ele que nunca subiu num ringue, nunca teve seus dentes arrancados, suas costelas quebradas. Seu único talento consistia em conferir e aplicar o dinheiro das lutas. Quando eu perguntava se algum dia eu sairia vencedor de alguma luta ele dizia que minha hora estava chegando. E eu ali, levando porrada dos caras mais brabos, há mais de cinco anos. Todo mundo sabia que o boxe tinha aquelas coisas, tipos como Don Rei arrumando as lutas, decidindo quem venceria, quem perderia e em que round, controlando apostas…

Don Rei sorriu lá de sua confortável cadeira estofada. Quando levei o primeiro soco meu nariz partiu para o lado esquerdo, indicando a direção de alguma saída, meu queixo quase abandonou a cara, meu olho inchou na hora, mas a tempo de ver os olhos de Don Rei brilhando, suas pupilas saltando em forma de cifrões fazendo aquele ruído de caixa registradora.

Perdi mais aquela luta e Don Rei embolsou a fortuna da bilheteria. Fez o costumeiro pagamento irrisório a todos os envolvidos na trama. Ele dominava a cena do boxe e era respeitado. Temido, melhor dizendo. Ninguém ousava questionar os valores que ele pagava, mas naquele dia eu reclamei:

Não me leve a mal, Don Rei, mas acho pouco o dinheiro que ganho pra ficar neste estado deplorável.

Don Rei olhou lá de cima de sua arrogância e falou soprando a fumaça de seu charuto:

Pouco? Como assim? Você nunca ganhou o que ganha aqui naquele seu trabalho de estivador. Eu pago muito mais pra você ficar sete minutos num ringue do que você ganhava o dia inteiro tendo que carregar aquelas caixas pesadas lá no cais do porto. Além do mais, esta é a última luta que você perde. A partir de agora serão só vitórias! E tudo aquilo que as vitórias trazem: grana, carros, mulheres, drogas mais sofisticadas que a sua cachaça de boteco. Agora vá que eu tenho que pensar na sua carreira, campeão!

Exultei com a notícia. Finalmente, minha hora estava chegando. Saí do luxuoso escritório de Don Rei e me dirigi à boca pra comprar crack. Eu usava aquilo ultimamente. Me enfiei no meu barraco, torrando as pedras e sonhando com minha brilhante carreira que começaria a deslanchar da próxima luta em diante. Imaginava os troféus numa grande sala numa das minhas casas. Imaginava pôsteres gigantescos em que eu aparecia olhando o adversário estendido na lona. Imaginava meu nome sendo aclamado pelos especialistas. Imaginava minha história incluída na história do boxe. Imaginava…

A polícia chegou arrombando a porta, acabou com minha imaginação e me deu o maior flagrante. Foi logo me batendo e me algemando. A quantidade de crack encontrada comigo era muito grande e fui preso por tráfico.

Na penitenciária, encontrei muitos dos meus antigos adversários, todos pugilistas candidatos a campeão que Don Rei foi descartando pelo caminho. Ele nos manda uns cigarros de vez em quando junto com alguns jornais especializados em boxe para que fiquemos informados dos novos campeões e derrotados fabricados em série.

Rabiscos

Conto de Ronaldo Rodrigues


Quando voltarmos a ser crianças voltaremos a desenhar daquele jeito que só criança é capaz? Aqui estou, aprendendo a desenhar para depois, quem sabe, aprender a falar e andar.

O lápis azul cai próximo aos meus pés. Vou buscá-lo e avisto minhas meias vermelhas e seus buracos. Sei que hoje é segunda-feira porque sempre uso meias vermelhas nas segundas-feiras. Com ou sem buracos.

No céu que nos cerca há muita fumaça, mas no desenho posso suprimi-la ou substituir por nuvens, simples nuvens.

O lápis azul cai novamente. Desisto de ir buscá-lo. Talvez tenha optado pelo chão. Tudo bem. Aqui somos todos livres. Fecho os olhos e busco no porta-lápis a cor que queira ser o céu. Abro os olhos e descubro o lápis vermelho em minha mão:
– Vermelho, quer ser o céu hoje?

Passo, então, a pintar o céu de vermelho. Pouco acima de onde pretendo desenhar a casa, deixo um espaço reservado ao sol. E antes de entrar na questão de que cor será o sol, vamos às cavernas?

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Sim, sim. As cavernas, é claro! Lá há uns trogloditas desenhando grandes bisões. Os troglôs (vamos chamá-los assim) ficam longe da assustadora cidade, onde moram e trabalham pessoas que usam máscaras.

No lugar onde se localizam as cavernas, o ar é puro e as nuvens são nuvens mesmo, não fumaça de chaminé. Mas os troglôs não querem, no momento, desenhar nuvens & casas & árvores & sol. Querem desenhar bisões, grandes o suficiente para o almoço de domingo. É sempre domingo nas cavernas?

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Quem quer ser o sol? Pergunto aos lápis. Eu sei o quanto é difícil ser sol. É preciso ser muito grande e muito quente. Olho em volta em busca de algo que possa ser o sol, já que os lápis preferem não se arriscar.

Há um homem lendo um pedaço de jornal. Digo-lhe que aquele papel amarelado pode ser o sol do meu desenho. Ele propõe uma troca: o papel amarelado por um palito queimado. Ele faz coleção de palitos queimados e acha que um dia construirá uma casa com eles.

Está resolvido: acendo um palito e ponho fogo no papel amarelado. Quando o papel está totalmente em chamas, colo-o no espaço destinado ao sol, apago o palito e o entrego ao homem.

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Na cidade onde moram e trabalham pessoas que usam máscaras, as crianças possuem avançados computadores gráficos. Quando elas resolvem desenhar árvores & sol & casas &  nuvens, há um bloqueio nos computadores. Eles vibram, produzindo estranhos ruídos, que parecem gargalhadas. Gargalhadas?

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O sol continua queimando. O fogo não apaga nunca e não se alastra para as outras áreas do desenho. Muito bem.

Agora, penso na casa. Quero pintá-la de uma cor indefinida que vá, aos pouquinhos, tomando cor de casa. Bom é que casa tem a cor que desejamos, até cor de plantação de trigo.

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Mas computadores não gargalham, pensam as crianças. Não existe tecla ou programa que faça computador gargalhar. Aqueles estranhos ruídos são sinais de que os computadores vão explodir. E explodem mesmo! Em meio a faíscas e estrondos, as tripas eletrônicas jorram por cima dos móveis. As explosões atingem o CC (Computador Central), que também vai pelos ares, provocando um pandemônio na cidade. As pessoas que usam máscaras correm apavoradas para o abrigo. A cidade está ameaçada.

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Falta pouco para que a casa de cor indefinida seja concluída. Passa ao meu lado aquele homem que trocou o papel amarelado pelo palito queimado. Desta vez, vem trazendo flores e pergunta qual a razão de tudo isso? Antes que eu tente responder, ele vai embora. Quando dobra a esquina, a casa já está totalmente pintada.

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Momentos antes da explosão da cidade, as crianças conseguem fugir, orientadas por um homem que vende flores. Conseguem chegar sãs e salvas às cavernas. Os troglôs as recebem com muita amabilidade e convidam para o almoço de domingo. Prato principal: um grande e suculento bisão.

Com os carvões que ficaram das fogueiras, os troglôs e as crianças desenham nas paredes das cavernas casas & sol & árvores & nuvens &…

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Qual será a cor definitiva da casa? Sugiro que seja a mistura das cores das flores que o homem levava consigo. Os lápis sugerem que a cor das nuvens seja da cor dos seus cabelos brancos & cinzentos & liláses & verdes &…Todos concordamos e vamos ao trabalho.

Kaos?

Conto de Ronaldo Rodrigues


Sei que se movia numa região pantanosa.

Entre a muralha do castelo da realidade e seu coração, havia uma ponte levadiça há séculos emperrada.

Setenta anos se passaram sem notícias dele.

A cidade não dormia.

Ele tinha levado não só o sonho, mas o sono de toda a gente.

E somente aos domingos, embaixo da árvore da dúvida, era permitido falar nisso.

Sua família amealhou posses.

Seus irmãos enriquecidos ostentavam poses.

E sua amada chorava entre a espada cega da verdade e a colcha de retalhos de tristeza que tecia na beira do cais, desde que ele sumiu no mundo, submundo, imundo, mundano.
Sua casa foi comida pela hera.

Era após era.

Após hora.

* * *          * * *          * * *


Quando ele retornou, numa quarta-feira de cinzas, comandando a nau do esquecimento, sua barba o escondeu tão bem que nem seu cachorro Madrugada, grande devorador de sábados, o reconheceu.


E seu irmão gêmeo jurou nunca ter visto aquele rosto.

Quando ele pousou o pé descalço sangrando gotas de azul e pisou o território selvagem de sua infância, a sombra da torre da igreja, muito antiga e já desprovida de sinos, soou do meio-dia às seis da tarde.

O pássaro do dia, que há muito não voava pelo firmamento da imaginação, abriu suas asas e fez o silêncio despertar as nuvens, que partiram céleres levando uma notícia muito boa para um país muito longe.

* * *          * * *          * * *
No outono, veio a revelação.

Quando sua barba caiu por completo, seu melhor amigo de infância, que se tornara próspero comerciante, lhe cobrou aquela dívida de jogo, motivo de sua fuga.

Então, a cidade inteira o reconheceu.

O cercou junto ao poço da solidão e passou a devorá-lo como antigamente.

Só as árvores o reverenciaram, tangendo no deserto da noite um rebanho de estrelas cadentes.

Knock-out (ou o amigo do Carneirinho era um lobo)

Conto de Ronaldo Rodrigues

O Boxeador Implacável, detentor de vários títulos, estava na mesa ao lado, arrotando arrogância, destemor, valentia e arroto mesmo. Era conhecido nos meios pugilísticos e nos bares de beira de cais como Golias. Não o comediante brasileiro, mas o guerreiro gigante filisteu.

Meu amigo Carneirinho estava sentado na minha mesa. Havia trazido um amigo seu que até aquele momento só tinha feito três coisas: beber, fumar e cuspir. Era baixinho e magrinho e, em meio ao barulho e à fumaça, se tornava quase imperceptível. O que me chamou a atenção foi um velho guarda-chuva que o amigo do Carneirinho não largava nem quando ia ao banheiro:

– Ele anda com esse guarda-chuva para se precaver da polícia – me explicou o Carneirinho. – Ele diz que alguém que anda de guarda-chuva está acima de qualquer suspeita, porque parece pacato aos olhos dos outros.

Ouvi a explicação e pedi outras. Por que ele precisava tomar cuidado com a polícia? Por que ele não queria levantar suspeita? Qual era o motivo de tudo isso?

Aí o amigo do Carneirinho se transformou completamente. Pulou lá do cantinho dele e me encarou, bufando e gritando:

– Não tem motivo nenhum, cara! Tá pensando o quê? Que eu sou ladrão, contrabandista, estelionatário? Que fico por aí tocaiando velhinhas pra roubar a aposentadoria delas?

Pedi desculpas, vendo que ele tinha ficado realmente ofendido com as perguntas. Achei exagerada a reação do amigo do Carneirinho, que o acalmou e explicou de novo:

– Sabe como é, né? Ele não tem motivo nenhum pra temer a polícia, mas a polícia não precisa de motivo pra botar alguém em cana. Ela arranja um ou um milhão de motivos, certo?

Concordei, achando tudo meio paranoico. Enquanto isso, o Boxeador Implacável soltou mais um arroto, seguido de um desaforo ao público. Só que desta vez ele não ficou sem resposta. Aproveitando o resto da ira despertada por mim, o amigo do Carneirinho foi até a mesa do campeão e aplicou uma guarda-chuvada no montanhoso cocuruto, fazendo o gigante beijar a lona. 

Carneirinho, cambaleando bêbado, contou até dez e, vendo que o Golias não recobrava a consciência, ergueu o braço do amigo-baixinho-magrinho-que-bebia-fumava-cuspia-e-não-largava-o-guarda-chuva e o sagrou vencedor daquele insólito combate.

O amigo do Carneirinho foi carregado em triunfo. Os bêbados do bar festejaram a vitória noite adentro, com grande estardalhaço. Até chegar a polícia e levar todo mundo em cana, com exceção do amigo do Carneirinho, que saiu assoviando, tranquilo, com seu guarda-chuva debaixo do braço.

“Os patos”, de Rui Barbosa – por Zeca Baleiro


Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:

“- Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à qüinquagésima potência que o vulgo denomina nada.”

E o ladrão, confuso, diz:

“- Dotô, eu levo ou deixo os pato?

Zeca Baleiro, faz essa mesma citação em sua música “Vô Imbolá”, mas num contexto diferente que pode-se aplicar muito bem ao nosso dia-a-dia, principalmente aos bucéfalos anácronos:

“- Como é por ignorância transito, mas se fosse unicamente para menoscabar de minha alta prosopopéia, dar-te-ia um soco no alto da sinagoga que por-te-ia mais raso do que solo pátrio!”

O jornalista Juvenal (conto)


Juvenal chegou entusiasmado no primeiro dia de trabalho.

Foi recebido pelo dono do jornal com louvor e rapapés.

Aqui está sua sala, doutor Juvenal, a secretária disse, estofando a cadeira.

Era o novo diretor de redação.

Em seis meses de muito trabalho, virou bicho.

No pescoção, era um herói.

Não sobrava pedra sobre pedra.

Nem garrafas de café.

A esposa mal o via em casa tanto era seu empenho.

Tomou chifre, claro.

Mas, tudo bem.

Tudo pela empresa.

Ao fim do semestre, muitas manchetes depois, veio o resultado: aumento de 500% nas vendas.

Trouxeram um bolo, refrigerantes, comeram e beberam ali na cozinha da redação entre uma pauta e outra.

A promoção veio ligeira.

Virou editor executivo e passou a trabalhar, ao invés de 7 horas, oito horas.

Chegava cedo, porque era o rito do principal caderno do periódico.

Lia todos os concorrentes, checava e disparava e-mails, ligava para os repórteres, debatia os assuntos do dia.

De tarde, recebia todo o material, selecionava o filé e levava ao sucesso no antigo cargo.

Decidiam juntos e ele era escalado para editar todas as páginas da fatia mais prestigiada daquela gazeta.

Fazia tudo com um sorriso cintilante no rosto e voltava para casa dez, onze, doze horas depois.

A mulher já estava no terceiro amante, um repórter relapso do mesmo jornal.

Um ano depois foi chamado no RH.

Sem cerimônia lhe informaram a nova promoção.

Seria agora apenas editor e olhe lá, trabalhando 10 horas oficialmente sem intervalo e com o salário reduzido a dois terços do anterior.

Deu pulinhos de alegria.

Em um ano e meio de muito suor e já chegara naquela posição.

Recebia as páginas mais ingratas e sempre na última hora.

Ao final de tudo, havia mais trabalho. Sempre.

Era o reserva para ajudar no rescaldo dos demais setores. Da política ao esporte, da geral à economia.

Com ele não tinha tempo ruim.

Deixou o caderno mais nobre e passou a circular pelos demais como um cão sem dono, editando de tudo, agora sem posto fixo.

Ao final de uma jornada de 14 horas diárias, sem folga semanal, ele voltava de olho arregalado para casa.

Contente.

Sempre contente.

Quatro anos e meio depois, novo chamado.

A velha do RH havia morrido e a substituta era uma moça loira, bem vestida.

Mais um avanço.

Chegara finalmente ao cargo de repórter!

Viva! Viva!

O acordo eram 14 horas diárias, um terço do salário do salário anterior sem folga na semana.

Saiu do departamento e já caiu no mundo da reportagem.

Cinco pautas no primeiro dia.

Depois o ritmo melhorou e ele chegou a escrever até 15 por dia.

Sua meta era chegar a vinte e oito.

Duas por hora não era para qualquer um.

Até conseguiu, porém teve uma convulsão no final e foi levado ás pressas à emergência.

Cinco dias de atestado.

Teve os dias descontados no salário.

Claro que agradeceu.

Chegou ao caderno de polícia ao final de dez anos de trabalho.

Foi quando reduziram os vencimentos a apenas dez por cento do ganho inicial.

Ele comemorou com um pão careca e um copo d’água numa padaria no meio da ronda.

Já velho, as energias lhe faltando, encostaram Juvenal no caderno de cultura para assumir a agenda de eventos e fazer as pautas da casa, de quando em vez, que, na verdade, era toda hora.

O ritmo não poderia diminuir.

Nada menos do que dez por dia.

Dessa vez o acordo veio em memorando: dormir na redação, cinco centavos por matéria, uma folga monitorada semanal por mês e comida somente no restaurante da empresa.

Ele vibrou, entre uma tosse e um chiado no peito.

Calculou os trocados e pensou que se só tomasse apenas café e fumasse daria pro gasto.

Continuou trabalhando de sol a sol e dormia debaixo da mesa de seu velho computador ou no chão do banheiro, que era mais friozinho.

Um belo dia, uma segunda morna, trouxeram a vassoura, o pano de chão e o espanador.

Era o ápice.

Ele lagrimou de felicidade no grande dia de sua vida.

Chegou aos píncaros da glória, o último estágio que poderia atingir em sua vida profissional.

Foi designado por um estagiário a limpar a sala do mais recente chefão, como primeira tarefa do novo posto.

Era o primeiro dia também do novo capo.

Quando o homem chegou, engravatado e bem penteado, Juvenal estofou a cadeira, deu um sorriso franco de quem está prestes a se aposentar e não ganhar mais um vintém e disse, com o mesmo entusiasmo de sempre:

-Boa sorte, doutor!

CEA, Rivotril e Game of Thrones: uma mistura perigosa.


A dota d’água aconteceu quando faltou luz (energia elétrica, é claro) durante o último episódio da última temporada de Game of Thrones. Nesse momento Fabí tomou manga com leite e Rivotril. Com essa mistura perigosa ela acabou incorporando o espírito da Rhaenyra Targaryen e saiu a procura dos seus três dragões. 

Pela falta de iluminação pública da CEA, Fabí confundiu os três homens envolvidos por ela na trama com seus três dragões e com eles iniciou sua vingança. Seus planos eram sair de Macapá, como vítima é claro, mandou seus três Dragões levarem os pertences da casa do médico simulando um roubo. 

Descoberto, um dos Dragões, o Zilau, disse de cara que não roubou ninguém que na escuridão, provocado pela CEA, havia sido apenas convidado por Fabí para levar as coisas da casa do médico que, nesse momento, estava escolhendo quem tentar salvar na emergência do Hospital Geral, onde também, além de tudo, faltava energia. 

Segundo a defesa, Fabí pretendia com a simulação do roubo, morar em Belém (PA), para não mais perder nenhum mais nenhum episódio de Game of Thrones, ou seja, agiu em legítima defesa.

Contribuição do meu amigo Josean Ricardo, professor e barateiro dos bons

Dois minutos apenas (conto de Ronaldo Rodrigues)

Estou em meu quarto, o lugar em que passei a maior parte da minha vida. Na mesa à minha frente, numa caixinha de música, uma bailarina repete suaves movimentos mecânicos.

O quarto fica no segundo andar da casa. No térreo, desenrola-se uma grande festa. É o casamento de meu irmão mais velho.

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Meu irmão é mais velho por um pequeno espaço de tempo. Dois minutos apenas. Sempre mais rápido que eu, essa foi sua primeira vitória das muitas que se seguiram. A vitória de maior impacto acontece neste exato momento, nos compartimentos do térreo e nos jardins, por onde os convidados se espalham.

A festa deve estar efervescendo. Meu irmão é considerado, com total justiça, o portador da alegria. Certamente, está sorrindo para todos e abraçando aquela que será sua para sempre. Ela deve ostentar o seu melhor sorriso, já pensando em atender aos pedidos que fazem os convidados.

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Os dois minutos que me separam de meu irmão são um abismo intransponível. Sua vida sempre foi intensa, rodeada por muita gente, pela turma do colégio e da nossa rua, pelo círculo familiar, no qual, com seu temperamento jovial, ocupava o centro das atenções. Enquanto eu, sombrio e esquivo, passei a vida confinado neste quarto, mergulhado em mim mesmo, longe de todos e em total silêncio, assistindo na distância a simpatia de meu irmão, escondido para não ser ofuscado pelo brilho de seu carisma.

Quando meu irmão me revelou sua decisão de casar, chegou mais radiante do que nunca e logo percebi que vinha anunciar mais uma vitória. Falou de sua noiva, linda, serena, de inteligência invulgar, tão bem-humorada quanto ele e que tinha uma paixão extremada pela dança.

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Neste momento, imagino, a festa atinge seu ápice. A feliz bailarina se apronta para atender aos insistentes pedidos de seus convidados. Irá dançar como só ela é capaz. Com a mesma graça que me prendeu a atenção quando a vi pela primeira vez, exatamente dois minutos depois que meu irmão a viu.

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Dou corda na caixinha de música, coloco algumas balas no revólver e o aponto para o ouvido direito. Fico olhando a caixinha de música soprando vida na bailarina até que a corda acabe.

Ronaldo Rodrigues