…Cenário – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Luzes sombreadas. E pôr mais sombras quase aladas. Barulho de mar. Cheiro forte e azedo. Estou lendo a terceira página do texto.

O Cenário.

O Cenário é um salão cercado do barulho de mar. De poucas janelas. Apenas uma porta que range quando sopra a brisa. É uma brisa que desesperadamente quer sair. Agora o texto.

Um anjo o primeiro a chegar. Está molhado. Despe o sobretudo. Tira o chapéu. Senta-se entre duas mulheres. A da direita faz um jogo de sombras com as mãos, aproveitando a luz do lampião dependurado no fim da sala. Criando figuras de aves, pequenos lagartos, marrons de olhos verdes. A mulher sentada à sua esquerda puxa os cílios e deposita-os sobre um pouco de umidade saída de uma garrafa de Vodka gelada. Com eles constrói uma bússola cujo norte magnético é a porta por onde entram os anjos.

Eu estou de pé sob um abajur lilás repleto do desenho de peixinhos que gira aleatoriamente sem sair do lugar. Mas o cheiro de mar e o pitiú dos peixes inundam o salão. Alguém falou em dançar. Pedem que eu cante. Tímida e achando-me mal vestida dentro de um vestido desbotado, e um par de sandálias surradas, e sujas de terra, que mal esconde as unhas roídas por mim e pelo tempo. Hesito!

Agora já são oito os anjos. Começam a bater palmas num ritmo que me lembra os cânticos das mulheres do Marabaixo de Macapá, do Sirimbo do Pará, do Batuque das ilhas Bailique e Cametá… Coisas de garras, dentes e presas sedentas de sangue e sal. Não parecem anjos, parecem Demos. Eu coberta de trapos, fedida de suor, suja de óleo, de frituras e cheia do cheiro de sabão e detergentes, sinto-me desejada e feliz.

Eu era um mapa de mãos e beijos, dos bêbados daquele cais até aquele momento. Mas ali não estavam eles com seus delírios e vômitos, e espasmos de gozos incompletos. Estavam os anjos sentados em círculos nas cadeiras amareladas, batendo as mãos e olhando-me como os índios olham um totem sagrado. Não em busca de fé. Em busca do pecado.

Dancei em círculos, em retas e oblíquas. Redescobri as paralelas já traçadas em Abril de 1968. Paralelas entrelaçadas sob o impacto dos estudantes em Paris, e a falsa moral que provocou a detenção por maus costumes de um marujo que brevemente me disse amar, e que depois se deixou matar de fome e sede. Não muito longe daqui, no fim da rua Treze de Maio, atrás do Mercado Ver o Peso, outro amigo que queria que aqui estivesse passou a vida, atormentado, de dia pelo dia, à noite pelos ingleses com beijos e Oks. U’a manhã estrangulou-se não sem antes se depilar toda. Deixou de herança o par de sandálias que eu uso agora.

Um pouco depois, eu anoiteci várias vezes, ainda sob o impacto de sua morte, sob as mãos finas de unhas bem tratadas dos ingleses quando vieram me ver ali, pela primeira vez. Deflorei os ouvidos. Depois deflorei o umbigo. Por último deflorei o passado, e o presente, e o futuro. Agora com cinquenta e oito anos. Já não tenho nada a oferecer. A boca lívida. Os olhos esmaecidos e turvos. A pele eternamente cheia de um cheiro de peixe podre e as tatuagens do tempo criando manchas e sinais.

Por isso dancei e danço. Dancei até que um por um, os anjos, após abusando de mim, repetidas vezes, foram saindo. O que garimparam em mim com suas línguas mornas e seus cheiros de jasmins. Não sei. O abajur deixou de rodar em torno de si mesmo, matando os peixes afogados. As duas mulheres deixaram de brincar com suas sombras na parede e com seus cílios sobre a mesa. Beijaram-se e saíram, uma arqueada, puxando da perna, a outra anã, equilibrando-se sobre um grande salto alto. Caminharam então, cada uma para o seu lado.

Eu parei de dançar e fui até a parede, de onde arranquei a folhinha do calendário e com ela fiz um aviãozinho que atirei a esmo. Chegava um novo dia. E com ele a solidão. Estava novamente sozinha. Os cotovelos sobre a mesa. Com ela fiz um aviãozinho e atirei ao chão sobre os meus pés. Meus pés estremeceram de frio dentro da poça de água criada pela garrafa de Vodka agora também vazia como eu. Saí dali e pus fogo no salão. Ia matar-me queimada, mas lembrei dos anjos. Corri gritando por socorro desesperada, nua e descalça em direção ao cais.

CONCLUSÃO DE ROTEIRO: Estabelecer semelhanças entre o sal e o sol. Iluminar a lua e adoçar o amargo. Maquiar bem a anã e a mulher alta, arqueada. Passar a ferro as asas dos anjos (os da primeira fila). Deixar como está os demais. Obs.: Datilografar em espaço dois. Não. Espaço um. Vamos valorizar no texto a solidão. E por fim. Não pôr THE END. Pôr FIM.

  • Uma jornada, dentro do mesmo cenário, o belo da poesia desagua como James Joyce, abrindo um leque de belezas. Se recria na aparência da personagem solitária. Se faz na imaginação do leitor um mundo fino, rarefeito, onde se aclimam os líricos e florescem outras mil vezes a imagem.

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