Noite sem trasladação – Por @juliomiragaia

Por Júlio Araújo (quem também é o Júlio Miragaia)

“Andando eles, ouvi o tatalar das suas asas, como o rugido de muitas águas, como a voz do Onipotente; ouvi o estrondo tumultuoso, como o tropel de um exército. Parando eles, baixavam as asas.” (Ezequiel. 1:24)

I

Sempre achei irônico o fato de o Cine Ópera ficar praticamente ao lado da Basílica de Nazaré. O único cinema pornô de Belém, por muito tempo, tão perto do principal símbolo religioso da cidade. Antes, ao lado do Ópera, funcionava o Cine Nazaré, sala de cinema comprada anos atrás pela Igreja Universal do Reino de Deus e tempos depois pela Lojas Americanas. Hoje, resta nessa quadra do bairro de Nazaré uma carga simbólica: entre a fé, a promiscuidade, a miséria dos mendigos e a padaria da esquina.

Há também uma série de hippies pela calçada, um ponto de táxi na esquina com a Generalíssimo Deodoro e uma loja ao lado do Ópera chamada “Mandarin”, a qual nunca prestei atenção no que se vende lá. A paisagem não se completa, claro, sem as vendas de tacacá, maniçoba e demais comidas típicas. Um pequeno elemento de regionalidade que se funde à urbanidade e também à multidão na parada de ônibus em frente ao Centro Arquitetônica de Nazaré. Uma massa de pessoas de todos os tipos e alheios uns aos outros. Compartilhando do sol quente, do vento tímido e da espera pelos ônibus lotados que passam nos fins de tarde.

II

Era um fim de tarde de sábado, pós uma chuva não tão forte, em outubro. O céu se abria à direita, no sentido de quem estava indo na contramão da Nazaré. Pensei, quando vi a primeira vez, se tratar de um protesto a multidão na rua e a gritaria. Rapidamente percebi que não era isso. Um objeto luminoso, prateado, que emitia o som de motor velho, pousou no meio da rua, o que levou todos a correr desesperadamente em direção inversa ao caminho que eu fazia. Alguns poucos curiosos permaneciam. Viaturas da polícia chegavam e cercavam rapidamente o local enquanto era possível ver os mendigos, os hippies, as vendedoras de tacacá e todas as outras pessoas saindo em desespero. De dentro da Lojas Americanas, da padaria, do Cine Ópera, do Mandarin, da Igreja, de todos os lugares.

O objeto emanou um feixe de luz que atingiu e paralisou um grupo de pessoas e as levou ao chão. Foram cerca de 3 horas em que tudo durou. Caminhões do exército chegaram ao local para também cercar a área e impedir que os curiosos, que filmavam e transmitiam nas reses sociais, se aproximassem. Eu fiquei ali, parado, em frente ao Mc Donalds, na 14. Pude ver as vítimas dos ataques no chão, com machucados nos braços e no pescoço. Eram umas 20 pessoas entre homens, mulheres, crianças e idosos.

IV

Com a mesma rapidez que pousou, surgindo entre as nuvens que restavam da chuva, o objeto começou a girar e a se revestir gradativamente de uma luz branca intensa. Subiu aos céus e desapareceu em alta velocidade. Equipes médicas em ambulâncias chegavam para socorrer as dezenas de feridos pelo misterioso objeto. A cidade estava em histeria coletiva, com o fato viralizado na internet.

V

Era noite de sábado, pré-Círio de Nazaré. A multidão que vai todos os anos à trasladação, há mais de um século, não saiu.

Algumas pessoas que estavam na orla da cidade, Portal da Amazônia, Estação das Docas e até na orla da Icoaraci informaram que viram pelos céus um conjunto de luzes coloridas que se movia para todos os lados, em grande velocidade, e que desaparecia para depois voltar a surgir.

Relatos também foram gravados em bairros como Sacramenta, Pedreira e Pratinha de pequenos globos brancos de luz percorrendo calmamente as regiões, invadindo casas e disparando feixes de luz contra pessoas.

Todos os jornais no Brasil e no mundo falavam com destaque sobre o assunto, mais comentado no Twitter e Facebook. Suicídios foram registrados e transmitidos. Pessoas se jogavam na frente de carros, ônibus, atiravam-se de prédios. Muitos saíam de Belém de carro ou lotando o aeroporto e a rodoviária.

Não eram poucos os que diziam se tratar de Nossa Senhora de Nazaré. Outros que eram seres do espaço. Nunca se soube ao certo o que ocorreu naquele dia.

VI

O Círio ocorreu no domingo, apesar do número visivelmente menor de participantes e do clima de medo.

Dias depois, o estado de calamidade decretado pela prefeitura foi suspenso e, aos poucos, a cidade foi voltando ao normal.

VII

Os fatos ocorridos naquele dia foram sendo esquecidos e todos foram voltando a sair às ruas, e a frequentar regiões como a da Basílica de Nazaré, onde tudo começou.

Um sentimento de espera fez alicerce nos dias, semanas, meses e anos inteiros dos que viveram o evento.

No dia a dia, o assunto era ignorado, como se nada tivesse acontecido, apesar da sobrevivência silenciosa de algum tipo de medo. E de uma melancólica incompreensão sobre o que passou e, inexplicavelmente, permaneceu.

  • Um texto adulto determinado incluso que flui como se o fato estivesse sendo narrado por algum Spiker da Rádio Marajoara…logo ali…ali…
    Muitooo bom!

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