O porão da velha Marta – Conto de Lorena Queiroz – @LorenaadvLorena

Conto de Lorena Queiroz

Viúva, rabugenta e peculiarmente religiosa, era assim a velha Marta. Tudo mudou depois que o marido faleceu, ou melhor, se tornou o que era antes de nascer. Era assim que ela pensava nele e em sua morte, algo associado com uma das poucas coisas que lembrava da leitura de Schopenhauer.

Ao se tornar viúva, a nossa Marta não teve mais como se sustentar. Tinha uma única filha, uma ingrata que foi embora com o marido e nunca mais deu notícias. Mas quem nasceu sobrevivente nunca é engolido por naufrágio. Pensou em abrir um pequeno comércio, mas não tinha simpatia para lidar com os clientes. Pensou em ser prostituta, mas lhe faltava vocação e sobrava bexiga baixa.

Então, olhou para seu porão e pensou em abrir um bar e, com bêbado, ela sabia tratar. Viveu com um durante trinta e cinco anos, tinha plena consciência que dono de bar não precisa ser simpático se a cerveja estiver gelada e o tira-gosto com preço camarada e, como não lhe passava pela cabeça pagar impostos, seu preço seria um atrativo.

Assim nasceu o porão da velha Marta, escada de madeira velha, umidade demais e tubulação aparente. Aquelas escadas levavam até o submundo das almas perdidas, como se o próprio Hades tivesse abençoado o lugar em parceria com Dionísio. E se lá era o lado divertido do inferno, Cérbero andava entre aqueles que bebem, um cachorro caolho e de três patas que a velha Marta adotou após encontrar o pobre estropiado em sua porta.

Muitas pessoas desciam aquelas escadas; gente de todo jeito, com um fator em comum, a clandestinidade. E isso a velha Marta adorava. Era a mãe de todos os que foram rejeitados pela normalidade. A velha Marta conhecia os hábitos e as histórias de cada um, e os que iam chegando, a nova leva, como dizia nossa Marta, ela adivinhava algum traço de personalidade pela bebida que pediam; Campari; bicha velha. Martini; hum, puta. Gim; atrás de sexo. Marta também reconhecia vários de seus clientes assistindo o noticiário; o prefeito desportista que adorava a prostituta de cabelos vermelhos. O rapaz que sempre bebia whisky, sozinho no canto mais escuro do porão, e se matou enforcado dentro do próprio quarto. Entre muitos outros. A velha Marta era conselheira e ouvinte de muitos deles, ouvia cada empolgação, desgraça ou ilusão que lhe relatavam. Era impaciente, mas sua vasta experiência de vida lhe propiciara a dar conselhos; se eram bons? Questão de perspectiva. Sempre aconselhava os casados que a viuvez é melhor que a separação. Toda mágoa vai junto com eles para o fundo da terra, é libertador, dizia ela à uma. O que é a vida? É o simples agora, o imediato e nada vale mais a pena do que o agora, disse ela para o outro. E o que seria a morte? Um momento inevitável de solidão, pois você pode viver junto, mas vai morrer sozinho, disse para mais um.

E todos os dias ao nascer do sol, a velha Marta fechava o caixa, alimentava Cérbero e se despedia de cada uma daquelas almas que continuariam; algumas felizes, outras perdidas e muitas mutiladas, mas agora, expostas à luz do sol.

*Lorena Queiroz é advogada, amante de literatura, devoradora compulsiva de livros e crítica literária oficial deste site, além disso é escritora contista e cronista. E, ainda, de prima/irmã amada deste editor.

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