O TRAÍDO DO BAR DA MARIAH – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Estava anoitecendo e eu acabara de tomar solitariamente uma cerveja supergelada no bar da Mariah. Ao me despedir levantei a mão para um grupo de jovens empresários e profissionais liberais burguesinhos, que ora prescrutavam as redes sociais, ora discutiam e gesticulavam. Eram contumazes fregueses de fins de semana reunidos para beber em uma grande mesa de plástico, uma junção de três outras. Na passagem para pegar meu carro ouvi um deles dizer:

– O poeta já vai dormir. Saudou-me com reverência.
Em seguida, um rapaz de barriga proeminente, barba aparada e cabelos da moda, mas extremamente bêbado, rosnou como um hipopótamo, babando pela boca adiposa.

– Esse poeta deve ser é corno. E gargalhava e tossia uma tosse seca, quase se afogando.

Seus amigos o censuraram imediatamente:

– Eh, rapaz, para com isso. Tu nem conheces o cara…
Fiz ouvido de mercador e em vez de chegar ao carro voltei para comprar algo esquecido. Tomei mais uma cerveja, paguei a conta, deixei passar um tempo, passei na mesa deles e disse, olhando bem a cara do ofensor, um sujeito que realmente eu não conhecia.

– Ei, bicho, nunca te vi. Por que que tu me ofendes, seu filho de uma puta?
Falei alto para que todos ouvissem. Ficou um silêncio de arrepiar os pelos. Os olhos verdes do bêbado cresceram sob o baque inesperado da minha reação.

– Eu ouvi o que falaste, mas vou te dizer uma coisa: é melhor ser um poeta sozinho e corno do que um idiota como você, seu porco fascista, que pelo jeito já deve ter tido essa experiência, porque tens cara de pederasta depravado, seu porteiro de puteiro.

Todos me olharam estupefatos. O cavalo do rio então… Mandava raios roxos de raiva em minha direção. Eu aproveitei o momento da surpresa e continuei:

– Eu não sei se sou ou não porque todo mundo é livre pra trair e pra fazer o que quiser, mas se eu sou eu vou saber. E prossegui: – Eu acho que tua diversão em ofender as pessoas deve ser um reflexo do teu recalque como um chifrudo que tu – eu disse apontando para a cara dele – que tu és, com certeza.

E completei, pra acabar logo a frescura:

– Não tô nem aí pra processo. Foda-se o politicamente correto. Tu não me conheces, sua baleia dopada.

O impacto da minha fala ligeira e contundente ficou no ar e nos olhos do pesado insultador. Ele babava, e quando pegou o lenço no bolso traseiro da calça, para limpar a baba e os líquidos que escorriam do nariz e dos olhos, fiquei tenso, pois pensei que fosse uma arma. Os caras que eu conhecia nessa mesa me aplaudiram fazendo pilhérias dele. O porco se tocou e quis se levantar, rebarbado, mas foi amparado para não cair.

– Senta aí, porra. Tu tás porre.
– Viu o que dá, ficar ofendendo as pessoas de graça?
– Te aquieta que ninguém compra uma briga dessas.
– Vai pra tua casa, caralho que tu tás bêbado, seu otário.

Para a minha surpresa o cara se acalmou e começou a chorar. Depois se levantou cambaleante, como se estivesse iluminado de uma necessidade de falar, e disse, se voltando para um companheiro a seu lado:

– Minha mulher está me traindo contigo, seu filho da puta. Tás pensando que eu não sei? Eu descobri e ela confessou. Vê aqui esse vídeo de vocês dois se beijando. Eu que filmei. Tu és um amigo falso. Não sei como é que ainda pago cerveja pra ti, porra.

O porcão chorava e apontava o dedo para o amigo impiedosamente. O acusado o abraçou e redarguiu que era tudo mentira, que era fake news, mas o traído não acreditava. E mesmo chorando e puto da vida falava a todos:

– Esse porra é o meu melhor amigo desde a infância. Eu amo ele. Mas ele me traiu com a minha mulher que me traiu com ele.

Enquanto os dois se perdiam perdão chorando abraçados, esfregando testa com testa em cima da mesa e seus amigos pagavam a despesa, eu pensei: “isso vai dar merda. É melhor tirar o time de campo”. Fui saindo à francesa na direção do carro, mas me viram. Ao ligar a ignição ouvi o porcão gritar meio choramingando ainda:

– Desculpa aí, tio. O corno aqui sou eu. E você está certo. Eu sou um idiota mesmo. E voltou a desatar no choro a mostrar o vídeo para os componentes da mesa.
Pelo retrovisor vi seus amigos rindo e acenado a mão para mim. O mesmo cara que me conhecia gritou:

– O poeta já vai dormir o sono dos justos.

_ooo_

Ainda era cedo quando cheguei em casa pensando no que se sucedera no bar da Mariah, inclusive nas possibilidades de reação e caminhos que teria, no sofrimento que passaria e nas inúmeras desculpas e culpas recíprocas, se eu traísse ou viesse a ser traído pela minha amada mulher. Ela era muito bonita e bem mais jovem do que eu. Tínhamos uma relação de confiança e respeito, mesmo assim imaginava que a segurança de cada um acaba quando o diabo nos lambe o rosto com sua língua preta em tempo e lugar não imaginado. Vinha abrupto na minha frente o desenho bíblico da serpente ofertando a fruta proibida à Eva no paraíso. Em seguida o anjo portador da espada de fogo os expulsava para a realidade da vida, nus, sob intempéries, sob tormentas.

Eu lembrei do amigo Lúcio, um professor de filosofia falecido recentemente de Covid-19, que dizia: “Minha alma é como a sociedade de Hobbes, a que perverteu o homem. Eu era puro e fui corrompido quando amei pela primeira vez na adolescência ao encontrar a mulher da minha vida. O gênero humano se corrompe reciprocamente, por isso cada um é o lobo de si mesmo. Então eu amei e me perverti, amei e me corrompi sempre, mas nunca fui radical com as mulheres que amei, tanto que as deixei que se amassem e se corrompessem, afinal eram lobas que se devoravam a si mesmas. Isso também é poesia, meu poeta”, ele afirmava às gargalhadas. Dizia ainda que “todos nós somos corrompidos pela sociedade e pelas circunstâncias, que passam pela janela dos desajustados e até pela fantasia do amor, meu irmão. Por isso eu te digo: Hobbes tinha razão, Rousseau tinha razão, Locke tinha razão. Todos esses filhos da puta contratualistas tinham razão. Eles mudaram o rumo interpretativo da humanidade para provar que ainda somos e seremos uns filhos da puta por muito tempo”. E gargalhava como só ele sabia fazer.

Fiquei refletindo sobre os acontecimentos que já testemunhei em bares, dos que vivi como protagonista em brigas e confusões e sobre como eles nutrem de matéria-prima a construção de textos poéticos ou não, afinal as coisas da vida são feitas de realidades, mas também de sonhos e pesadelos, de poder, amor, sedução e traição. E de fatos que penetram a mente do poeta e são manipulados pela imaginação. Parece até que deixam o inconsciente prenhe de material do qual precisamos fazer dowload para gerar a literatura que nasce da memória, do que vimos e do que nunca vimos.

Claro que fiquei surpreso com a minha reação no bar da Mariah. Logo eu que abandonei essa vida de confuzeiro e brigão. Logo eu que me havia descoberto um poeta e publiquei dois livros. Porém, pensei no outro eu, aquele que já havia brigado em todo lugar. Saía para a porrada em silêncio, sempre esperando o ataque dos desafiadores, chamando-os com gestos e punhos cerrados, prontos para enfiá-los nos focinhos deles. Juro que me surpreendi comigo mesmo. Hoje, lá na Mariah, talvez eu estivesse usando a mesma técnica ameaçadora e inútil dos meus antigos contentores, gritando ofensas, e utilizando-as em minha defesa porque já estava ficando velho e não aguentaria mais uma briga de bar. Porra, o tempo passa e não dá para ganhar mais no grito. Ora, até a voz fica baixinha. Afinal, não foram as palavras do bêbado que me ofenderam, mas a forma gratuita como foram colocadas. Daí veio uma espécie de ferimento, um fulgor inesperado que me atingiu o brio e a dignidade da minha querida esposa.

Eu queimava os neurônios lembrando do esforço que fiz para acabar com meus preconceitos de um certo tempo para cá. “Caralho!”, eu dizia. Como é difícil se libertar dessas coisas arraigadas. Isso está no íntimo de toda a minha geração, um monte de palavras amarradas nos escaninhos da alma, prontas a serem libertadas quando os fatos da vida nos surpreendem e nos obrigam inconscientemente a vociferar palavras desagradáveis contra o mundo e até mesmo a ofender com humor, pois queira ou não, nunca estaremos preparados para nos policiar sempre, desde a infância. É difícil se reeducar sob um arcabouço de preconceitos ao qual estamos abrigados. Tudo é volatizado até nas brincadeiras e conceitos que trazemos sobre pessoas diferentes de nós.

_ooo_

Naquela noite de sábado minha mulher tinha um compromisso com sua velha turma da faculdade e me esperava sorrindo, igual o cachorro do Roberto Carlos – assim pensei com o meu humor cruel e viscoso, inerente ao meu modo de ser, infelizmente. Ela estava tão contente com os cabelos pintados e penteados… As unhas postiças enormes e coloridas. Parecia uma adolescente se mostrando para o namoradinho.

– Amor, ainda bem que você já chegou. Estou esperando a minha brodona Katiúscia me ligar pra gente ir na festa de aniversário da nossa formatura. Todos vão estar lá. Cuide das crianças, tá?

Ainda pensei em perguntar: “Todos? Inclusive aquele seu primeiro namorado, o tal de Ted Garanhão?”. Só pensei. E resolvi engolir o meu ciúme.
Abri a geladeira, peguei uma heineken long neck e a enfiei na boca de um gole só. Ela desceu as escadas linda e sensual, perfumada e feliz. E eu puto ali me lembrando do porco pirado que tinha me ofendido. Ela ensaiou uns passos de forró universitário e umas gingadas de samba e funk, só pra me deixar mais enciumado ainda. Mas nem pode perceber como eu estava, pois sua excitação para a festa era maior que qualquer preocupação. Me deu um beijo no rosto, “pra não manchar a boca de batom” e falou:

– Me dá a chave do carro, moreco. Não sei que horas volto. Vou pegar a minha amiga.
E saiu rebolando como eu nunca mais tinha visto. E justo ia logo junto com a sua amiga solteira, também conhecida no bairro como “A Fera da Noite”.
Tomei todas as cervejas da geladeira. Terminei de ler um livro do Bukowiski. Liguei a TV para assistir a um filme bom, entretanto os temas que escolhia aleatoriamente eram sempre sobre traição, vingança, essas porras… Eu pensava nela, em mim e até no gordo traído do bar da Mariah. Meio atormentado, eu dizia reclamando sem necessidade: “caralho”, “caralho”. Até que bati uma bronha para ela e adormeci.

De manhã ela me acordou no sofá. Estava desgrenhada e meio porrote ainda. E muito invocada. Ordenou:

– Vai fazer o café, caralho! E faz umas tapiocas do jeito que eu faço pras crianças que eu vou dormir até tarde. Não me chama.
Entrou no quarto e se jogou na cama de roupa e tudo. Roncando e babando. Balbuciava: “égua da festa escrota”, “égua da festa escrota”. “Essa Katiúscia é foda, mesmo”.

Eu, com os Fernandos Bedran e Canto, sempre rindo dos “otaros”, no Bar da Maria

Enquanto eu fazia o café o sol rompia lá fora num clima quente que só o do inferno, onde mora a língua preta do diabo. Passei a mão na careca suada, lembrei de novo do traído do bar da Mariah com uma respiração de alívio, para depois rir aparentemente à toa, enquanto as crianças chegavam à mesa da cozinha esfregando os olhos remelentos e bocejando horrores. Nem liguei para o pára-choque do carro enviesado na garagem, todo batido. Eu ria igual nas redes sociais – onde ninguém sabe se as coisas são verdadeiras mesmo. KKKKKK! E dizia me rasgando de rir: “fowda-se!” “fowda-se!”, e repetia, para o espanto das crianças que sempre me viam muito sério. KKKKK! Elas riam comigo: -KKKKK! KKKKK! Kkkkk! KkKkK!

  • Hehehehe !!!
    Não é mole…não….mas o Conto é fidedigno a situações
    muitas semelhantes, só que a astúcia do escritor a transpôs para o papel…de uma maneira própria…
    Aplausos.

  • Pois é, Luiz. Já me perguntaram se foi real. Kkkkk. Ficção pura. O gatilho inspirativo foi em outro lugar, em outro tempo e com personagens fictícias. Cabe ao autor, como fala o narrador, buscar a matéria prima no boteco. Hehehe!
    Abraços, meu irmão.

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