Quem ouvir verá: o visível e o invisível em Timbres e Temperos – Por Yurgel Caldas – @CaldasYurgel

Por Yurgel Caldas

Timbres e Temperos é mais um desses recentes primores musicais que nos faz orgulhar pelo fato de sermos o “povo daqui”, condição apontada na canção “Jeito Tucuju” (Val Milhomem/Joaozinho Gomes) como um farol para quem deseja pensar sobre identidades locais e regionais. O lançamento é uma coletânea de canções surgidas nos últimos anos onde se destaca a parceria cada vez mais natural entre a letra de Joãozinho Gomes e a música de Enrico Di Miceli – que é vestido maviosa e maravilhosamente pelo canto de Patrícia Bastos.

Com produção musical e arranjos de Dante Ozzetti, as canções do disco, em sua maioria, apontam para a matriz cultural africana como dínamo que faz mover o mundo e, por vezes, deixa em suspenso seu movimento só para nos fazer ver desfilar seus Orixás. Mas só vai ver esses deuses quem sentir – por meio da música ancestral dos tambores – dançar e entoar os cânticos de chamamento de entidades com a Tia Chiquinha (nossa dama sempre chique) nesse grande terreiro que se torna o mundo inteiro quando toca o tambor.

Aliás, é com “A Chiquinha é chique” (Enrico Di Miceli/Joaozinho Gomes) que se confirma a imagem poderosa da mulher como o centro inequívoco da narrativa, seja ela lírica ou histórica. É assim com “Dançando com Oxum” (Enrico Di Miceli/Joaozinho Gomes), que apresenta uma contranarrativa em resposta à lenda do boto, a qual concentra o poder de sedução no homem. Na mesma linha, “Mandala a Mandela” (Enrico Di Miceli/Cleverson Baía/Joaozinho Gomes) apresenta uma mulher que, ao dançar marabaixo, desenha a simbologia cíclica da mandala e, de quebra, humilha os homens que admiram essa dança sedutora.

Mas é no “Encontro dos tambores” (Enrico Di Miceli/Leandro Dias/Joaozinho Gomes) que esse terreiro ganha o mundo com o toque ritmado e solene dos atabaques numa orquestração singular para a evocação dos Orixás. Única sonoridade capaz de conduzir o Axé no terreiro, o toque dos tambores, que se realiza numa congregação especial entre o “rum”, o “rumpi” e o “le” – sons percussivos graves, médios e agudos, respectivamente – resume nossa condição de ser e estar no mundo. Um mundo sagrado, que faz sagrado o couro e a madeira. Assim que, no fim dessa canção, é Ogum quem baixa para apreciar esse toque. Orixá das batalhas e dos metais, filho de Yemanjá e irmão mais velho de Exu e Oxóssi, Ogum se agrada do encontro promovido por tambores a ele consagrados.

Se o toque do tambor, o canto afinado e a dança ritualística são formas de ascensão espiritual, a experiência sensorial provocada pela audição de Timbres e Temperos pode levar a gente a levitar. Essa música que faz “dobrar os couros” em tons de homenagem a uma visita ilustre a um terreiro é a mesma que pode ser “a senha de um portal secreto” ou “o enigma do ser num livro aberto”, como diz a letra de “Maniva” (Enrico Di Miceli/Joaozinho Gomes).

Entre o visível e o invisível, mais vale o sentir. Sentir vibrar e vibrar ao sentir – quer seja o corpo todo, quer sejam as papilas gustativas atiçadas na “Filosofia fula” (Enrico Di Miceli/Joaozinho Gomes), canção que encerra o disco e nos encaminha para outros recomeços como no mexer da panela ao preparar o amalá – comida-ritual dos Orixás. Saravá, Nena Silva e Trio Manari!

*Yurgel Caldas, que é professor de Literatura da Unifap e do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGLET) da mesma instituição.

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