Uma breve análise geográfica da obra “O passeio de Dendiara”

Capa da obra “O passeio de Dendiara”

Por Gutemberg de Vilhena Silva

Há poucos dias tive o prazer em receber da amiga de longa data Ana Beltrame seu primeiro livro: “O passeio de Dendiara” (Tema Editorial, 2020) . Ana é diplomata de carreira, tendo servido em vários países no mundo. Um de seus postos mais recentes foi o de cônsul-geral em Caiena, na Guiana Francesa, de 2008 a 2013. Ao longo de seus anos de trabalho em plena floresta amazônica, foi possível a ela ter contato com grandes temas que permeiam os estudos amazônicos e, certamente, a atividade garimpeira foi um que deixou marcas nas suas mais profundas memórias

A procura por metais preciosos, em especial do ouro, é um dos temas socioeconômicos e geopolíticos mais antigos e duradouros na e sobre a região amazônica. Outros temas como a preocupação com a degradação ambiental, os problemas sanitários e as ilegalidades generalizadas que nos garimpos ocorrem, como a prostituição infantil e o tráfico de seres humanos por exemplo, são questões que perfilam na literatura especializada há apenas algumas décadas, fruto de empenhos individuais e coletivos na luta por um mundo seguro, com justiça social e ambientalmente adequado.

“O passeio de Dendiara”, obra de ficção baseada em fatos reais, narra problemas enfrentados por uma criança brasileira de 10 anos que migrou para a Guiana Francesa e lá viveu breve, mas intensamente, as agruras relacionadas a garimpos. Dendiara, nome fictício claro, tornou-se prostituta, contraiu diversas doenças, engravidou – mesmo muito jovem – e engrossou as estatísticas da prostituição infantil. A nosso ver, contudo, a obra tem uma envergadura maior: é um relato sobre a dura vida clandestina de brasileiros nos garimpos (imensa maioria ilegais) da Guiana Francesa. Não é meu papel aqui contar de ponta a ponta o percurso de Dendiara narrado por Ana. Eu quero me dedicar – como fiz no texto anterior que publiquei aqui no Blog DeRocha sobre o livro “Então, foi assim?” (https://www.blogderocha.com.br/geografia-e-musica-os-bastidores-da-criacao-musical-brasileira-amapaenses-por-gutemberg-de-vilhena-silva/), a alguns aspectos geográficos do livro. Identifiquei na obra de Ana Beltrame ao menos dois temas transversais de grande interesse geográfico: o ambiental e o da conectividade de fixos e de fluxos.

O tema ambiental

Desde os anos 1970 a preocupação com o uso racional do meio ambiente tomou conta de parte da agenda das nações, embora somente nos anos 1990 em diante este tema tenha se tornado sólido nas discussões e fóruns internacionais. A Amazônia certamente não é o pulmão do mundo, mas é certo também que ela cumpre um papel central na regulação do clima, fruto de sua rica biodiversidade – uma das maiores e mais importantes do mundo. Ana Beltrame mostra com perspicácia o “viver” na Amazônia. A autora, sem perder de vista o fio condutor da obra, aproveita partes de seu livro para descrever o meio ambiente da região, seu clima, as características de seu relevo, solo, as formas como os rios serpenteiam a floresta e a importância das comunidades indígenas como ‘guardiões’ da floresta. Ana Beltrame ainda descreve com bastante clareza os efeitos nocivos da ação antrópica nos garimpos e aqui destacamos dois: o desmatamento e o uso do mercúrio.

Ilustração: Ronaldo Rony

Os garimpeiros limpam a área que será explorada com o uso de motosserras, cortando o que veem pela frente, depois entra em cena a retroescavadeira para arrancar o que não foi possível retirar na etapa anterior. Em seguida usam-se bombas hidráulicas para injetar água e mercúrio, sob pressão, diretamente no solo. O mercúrio aglutina o ouro, gerando pepitas maiores. Com isso, destaca Ana Beltrame, ele se torna um insumo tão vital para o garimpeiro quanto o combustível que abastece as máquinas. Quando se separa o mercúrio do ouro, na última fase, aquecendo-o acima de trezentos e cinquenta e cinco graus Celsius, ponto em que evapora, o gás é lançado à atmosfera sem qualquer tratamento e, quando se esfria, na própria corrutela, nome dado à moradia dos garimpeiros, contamina todo ambiente inclusive pequenos moluscos no fundo dos rios e, a partir deles, toda a cadeia alimentar, até chegar nos seres humanos, sejam eles garimpeiros ou não.

O tema da conectividade de fixos e de fluxos.

A Conectividade entre fixos (lugares concretos) e fluxos (a informação) é um dos fundamentos elementares da geografia. Pessoas se deslocam e com elas a informação circula ou, em razão da tecnologia, também se propaga por meio das ondas sonoras dos rádios, objeto este fundamental para o funcionamento dos garimpos da Guiana Francesa. É por meio deles que os garimpeiros sabem o que está ocorrendo “no mundo”, com informações repassados pelos controladores dos equipamentos em Oiapoque, e é também como estes se atualizam sobre o que ocorre nos garimpos.

“O passeio de Dendiara” mostra uma hierarquia de relações territorialmente localizadas, mas espacialmente pulverizada no mundo, desde a extração até a venda do ouro nos mercados internacionais, passando por diversas pessoas ou empresas que compõem essa ‘trama’ de conectividades de fixos e de fluxos. Eis algumas partes das conexões: O Putanic, um barco-puteiro que faz pit stop de garimpo em garimpo, é parte dessa engrenagem. Os catraieiros que – quando atuam para levar equipamentos, pessoas e/ou mantimentos nos difíceis rios da Guiana Francesa, chamam-se pilotos, são outra parte daquele universo. Os operadores das rádios comunitárias dos garimpos e aqueles que recebem e transmitem as informações em Oiapoque, também são partes de destaque. Todos eles, que de alguma maneira interagem, são “figuras” importantes na conectividade estabelecida entre a extração e a venda do ouro, seja para o atravessador, seja para outra pessoa ou empresa que consiga “legalizar” aquele metal precioso. Após ser “legalizado”, entram em cena outras tantas ‘tramas’ e agentes que amplificam a conectividade de fixos e de fluxos daquela atividade.

A leitura do livro de Ana Beltrame obviamente não se limita a destacar apenas estes dois temas que tratei, pois percorre vários outros aspectos sensíveis da atividade garimpeira que foram se entremeando na obra por meio de inúmeras narrativas sobre o cotidiano da jovem Dendiara. A autora, em seu primeiro livro – digno de virar documentário ou um longa-metragem, já mostra toda sua sagacidade com a escrita e com a forma fácil, hábil e clara ao tratar de variados assuntos importantes no transcorrer de seu livro.

*Gutemberg é professor Doutor na Universidade Federal do Amapá onde atua na Graduação e na Pós Graduação, além de desenvolver pesquisas sobre a região das Guianas.

  • Muito obrigada pela oportunidade de mostrar meu livro! O tempo que passei na região, quando conheci muitos amapaenses, é inesquecível. A culinária do Amapá também … bela terra, pessoas amigas. Abraço a todos

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