Estique o olhar – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Há 24 anos eu chegava a Macapá, exatamente num primeiro de setembro de 1997. Esta crônica tem a ver com isso e com ela festejo a minha vinda para cá, o que me deu, entre tantas coisas legais, a oportunidade de avistar o maior do mundo (como me refiro carinhosamente ao rio Amazonas). Desde aquele dia, não deixo de contemplar esse rio, que é uma gigantesca síntese do meu amor por este lugar. A crônica tem também a ver com um papo que tive com a minha mana Socorro numa recente viagem que fiz a Belém. Com vocês, a crônica.

Estique o olhar pelo rio até que ele bata no horizonte. Cuidado para não abalroar alguma embarcação pelo caminho. Há saudade de luares refletida na calma do rio. Há promessas de palmeiras crescendo ao largo. Cada vez que as gaivotas passam, as tempestades se abrem, se alvoroçam e se acalmam no sorriso das sereias.

Estique o olhar até pegar carona nos papagaios soltos pelo céu azul, nas linhas que não têm cerol, o que é mais bacana. Flagre as folhas bailando ao vento até que a infância seja devolvida numa tarde assim, de sol e lembranças, sem sombra de rancor.

Estique o olhar de manhã, deixe que a brisa invada as janelas dos poros e se tatue em brasa na pele da nossa já conhecida madrugada, que ficou para trás e ainda virá. Saiba que está a caminho da morada da luz aquele que foi anunciado há milhares de séculos, quando havia a possibilidade de primaveras. Ele vem afirmar que a aurora benfazeja é, mais do que possível, inevitável.

Estique o olhar até atingir, sem pressa, as emanações que se elevam do asfalto e se espalham pelo céu, pintando de nuvens a paisagem, que se derrama em chuva, a doce chuva que embala o sono e invade os sonhos desde quando eu menino, esticado na rede no fundo do quintal, imaginava a vida que haveria bem pra lá do portão.

Esticar o olhar. Um exercício que deveria ser estimulado pelas autoridades científicas, receitado pela medicina e ensinado nas academias (literárias e de ginástica). Poderia até virar lei. Lei não, que ninguém respeita. Mas faça isso: aproveite o rio Amazonas (o maior do mundo) e deixe seu olhar se alargar, se alongar, chegar até as ilhas, passar das ilhas, passar da linha do horizonte e ir além, além, sempre além.

Faz bem pra vista e pra vida. Experimente.

  • Olá, meu parceiro de música. Parabéns pelo texto. Um texto que vai além da proposição da crônica. As imagens poéticas nele contidas te fazem sair do tempo cronológico para o metafísico. Nele, as imagens brincam num jogo poético, cujas reminiscências te fazem ser criança/adulto, adulto/criança.

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