Hoje – Crônica porreta de Fernando Canto

Hoje eu larguei a bengala de lado. Depois da queda não quero adquirir o vício do apoio para que ele vire permanente.

Assim como o jogador pendura as chuteiras, eu vou guardar a bengala para o esforço necessário da velhice se um dia dela vier a precisar.

Hoje eu larguei o meu terceiro pé, mais que um enigma esfíngico. Largo meu entendimento seguro pelas estradas que ando, sob o desespero mortal de um ser monstruoso que se jogou do precipício quando eu me dispus a enfrentar meu destino e, vejam, o meu passado, viajando por águas de diversas cores e volumes, de sabores e profundezas.

Larguei, sim, um objeto de angústia e lassidão e o pendurei num cabide atrás da porta, como um cigano que tem teto e não se vale mais das noites estreladas para sonhar e amar.

A bengala deixará de me apoiar para que eu, já calcinado pelo tempo, ache no fulcro da terra e no calor da vida a solidariedade e o amor pulsante da humanidade. Assim, esse instrumento que nasceu da madeira torneada, e que me deu segurança no caminho também me tornou digno de olhar para trás.

Com isso deixarei diluir em mim antigos sentimentos calcificados no coração e anzolarei em gestos bruscos, de ruptura, os mais diversos símbolos que a própria academia não conseguiu interpretar no empirismo de seus laboratórios e dos seus paradigmas positivistas.

É um objeto muito útil a bengala. Sua curva da extremidade recebe a mão para sustentar o apoio do andar do pé deficiente pelos caminhos sinuosos e empedrados da cidade.

Ah, um olhar seguro não cabe mais nos olhos. Até a baixa luminosidade do anoitecer e o intenso brilho do nascer do sol remetem ao uso extremo do objeto que deixei de lado.

Mas hoje eu aposentei minha bengala. Dela não mais quero dependência ou vício. Por onde andei com ela cavei no chão pequenos buracos nos quais semeei sementes de perdão, após cansadas viagens.

Depois, por cima desses rios de minha terra, eu a inverti definitivamente em minha vida para transformá-la em âncora.

*Crônica de 2017, após o amigo Fernando Canto se recuperar de um acidente e finalmente parar de usar sua bengala.

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