Meu esporte favorito – Conto de Lorena Queiroz – @LorenaadvLorena

Conto de Lorena Queiroz

Quanto mais a vida batia, mais eu bebia. Acredito que para escapar da obviedade dos dias e matar alguns neurônios sem uso. Um dia, depois de um milhão de dias sem lembranças integras, o corpo arregou. Talvez porque o coração e o cérebro briguem e justamente quem paga o pato é o fígado, que pobre infeliz sem sorte.

Eu estava no corredor no consultório médico que tem cobertura de meu plano, praticava meu esporte favorito; a observação. Sim, músculos e suor nunca foram atrativos para mim. Sempre gostei de olhar para as pessoas e imaginar o que tem por trás de cada vida; um filho, um amor, uma fatalidade, um gato. Bem, sempre foram inúmeras opções.

Vi um obeso, provavelmente esperando para fazer um exame que dirá está fodido de colesterol, ou diabético e com o coração já implorando para parar de passar tanta gordura naquelas artérias. Porra, tomara que isso tenha sido tudo de tira-gosto! Perder a vida só por comida é um desperdício que Deus não pode permitir. Coitado, tomara que esse gordo tenha ganho metade dessa gordura enfiado em um bar.

Enfim chegou a minha vez, o Doutor de blusa gola polo e jaleco igualmente alvo como lavado por mãe, deve ser virgem esse filho da puta. Muito mais novo que eu, decerto. Ele me pede para entrar e eu sento com os exames nas mãos. Tenho a sensação que é meu inquisidor. Entrego os exames para ele, ele olha minunciosamente calado.

Começo a praticar meu esporte, imagino como será sua vida, deve ter uns quarenta anos, casado, pois logo vi o bambolê dourado no anelar do infeliz. Acho que foi um bom exemplo, daqueles que sempre desprezei; estudou, casou e comprou um cachorro, deve ser o orgulho dos pais, deve ser chato pra caralho. Nunca seria amigo dele, não tem substancia. Não consigo arrancar mais nada dali. Gente assim vive bem, mas vive pela metade.

Ele interrompe meus pensamentos com a sentença que me condenaria após a leitura dos exames. Eu não podia mais beber, não podia mais fumar. Aparentemente os pulmões tinham dado as mãos para o fígado e pulado juntos de um penhasco. O coração foi rir e caiu junto, esse fodido. Mas esse merece se foder, sempre aprontou comigo e, se hoje estamos assim, é muita pela insensatez desse filho da puta.

Saio de lá com todas as recomendações. Papeis para fazer mais exames, papeis para fazer mais consultas, papeis para comprar mais remédios, papeis que ditam os hábitos novos que preciso adquirir. Morrer é burocrático.

No dia seguinte comecei a saga de tentar fugir da foice de dona morte. Acordei cedo e fui me matricular na academia, foi horrível. Aquelas pessoas estando ali por vontade própria, que merda de valores essa gente cultiva? O instrutor odiosamente simpático, me manda para esteira alegando que tenho que me aquecer. Eu já odeio tudo e repenso a opção da morte. Eu não conseguia praticar meu esporte ali, todos pareciam iguais, gente com os mesmos objetivos.

Eu era o único velho com o bucho quebrado pelo álcool e pelo tempo. Ainda lembro da prostituta que adorava apoiar o copinho de cachaça na divisão entre meu estomago e o peito. Ela dizia que minha barriga inchada segurava o liquido perfeitamente. Isso que é uma moça de visão. Após uma hora e meia de tortura e monologo interno, sai daquele lugar e acendi um cigarro, não dá pra caminhar sem um cigarro, mesmo que seja até o inferno ele te faz companhia.

Meus dias seguiram assim; dieta que a nutricionista impôs, a vagabunda quer me matar de fome, essa sim tem muita praga nas costas, cadeiruda hipócrita; zero álcool e cigarro regrado. No decimo quinto dia de minha saga, estava entediado demais. Sai para caminhar domingo de manhã, eu nunca acordava cedo aos domingos. Domingo era o melhor dia pra se ter uma ressaca, pois o dia sempre foi chato e a ressaca era meu compromisso de domingo, minha missa. Calcei meus tênis recém comprados e custei pra achar uma meia limpa, sai pela orla da cidade, o berço que embala todas as almas que se perderam no dia anterior, ainda bebendo, gente bêbada, mulheres despenteadas com olhos borrados de maquiagem, lindos pandas etílicos.

Andei mais um pouco e, enfim, praticaria meu esporte com dedicação, ali sim tinha material com substancia a ser usado. Andei mais um pouco e vi um grupo, eram três homens e uma mulher. Ela era gorda, gigante, tinha um olhar caído e um rosto que denunciava que havia sido muito bonita. Atrasei os passos afim de escutar o que conversavam, mas os bêbados falam um dialeto que só acessamos quando estamos no mesmo grau de consciência.

Aqueles quatro com o isopor encardido me causavam muita curiosidade, era como se eu não pudesse sair de lá sem ter a certeza do que os movia a quererem a companhia um do outro até aquelas horas, ali tinha uma história. O rapaz de boné olhava docemente para a gorda, não acho que queria só comer o bacon, ela realmente tem algo que desperta o interesse dele. O outro rapaz só observava já muito sonolento, aguentou até as oito, guerreiro. O mais jovem faz convites à todas as moças que caminham com intuito saudável, todas entortam o nariz e ignoram àquela alma. Quanta história tem ali. Eu dou mais uma volta e paro em um mercadinho em frente ao trapiche, compro uma garrafa de vodca e volto para saber a história daquela gorda.

*Lorena Queiroz é advogada, amante de literatura, devoradora compulsiva de livros e crítica literária oficial deste site, além disso é escritora contista e cronista. E, ainda, de prima/irmã amada deste editor.

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