Poema de agora: A Reciclagem – Ori Fonseca

A RECICLAGEM

Que bom! Desceste à tal Mansão dos Mortos,
Onde tua língua azeda e ossos tortos
Se juntarão à terra finalmente.
Tu não terás um sono sossegado,
Revirarás de um lado pra outro lado
Antes de acomodar-te eternamente.

Isso porque na câmara de horrores,
Inda terás teus múltiplos tremores,
Espasmos naturais de teu sumiço.
E chegam teus convivas pro festim,
Com fome insana que jamais tem fim,
Deixando em teu lugar só rebuliço.

Tua boca inchada não dirá palavra,
As letras que escaparam de tua lavra
Não poderão te socorrer — és mudo.
Terás perdido a farsa da eloquência
E deixarás, com estranha paciência,
Que se torne em nada o que te foi tudo.

O caçador de outrora agora é caça,
Ofertas sem vergonha tua carcaça
Ao deleite de seres subterrâneos.
E logo ostentarás no horror de um fosso
Cada vértebra, artelho, cada osso
Comungando com diferentes crânios.

A cova de teus olhos será oca,
No lugar do lugar que já foi boca,
Haverá só um sorriso cretino.
No peito onde batia um coração,
Só a lama da decomposição
Fervilhará com frêmito assassino.

Reduzido a minúscula matéria,
Passados anos, nem mesmo a bactéria
Que te fez ceia far-te-á lembrança.
Agora, nada do humano que tu eras
Pode ser sentido nas primaveras
Nem na tempestade, nem na bonança.

Teus filhos te acompanham no destino,
Determinado no âmago uterino,
O mesmo desenhado pra teus pais,
De caçar vida e ser caça da morte,
Até que o corpo débil não suporte
O menor peso, que será demais.

Agora, és só poeira em suspensão,
Nem mesmo enches uma palma de mão,
És irrisório e imenso ao mesmo tempo.
Podes estar nos olhos da menina,
Na garra feroz da ave de rapina,
No grão de pólen que viaja ao vento.

Então, sem seres tu jamais de novo,
És gema interminável de algum ovo
A eclodir em revida interminável.
E, sim, morrerás milhões de outras vezes
Todo santo dia em todos os meses
Que a vida te clamar inexorável.

Teus amados choraram tua partida,
Mentiram te lembrar por toda a vida
E juraram te amar, também mentindo.
Dor e felicidade a morte encerra:
Se deixaste tristeza sobre a terra,
Debaixo dela, és tu muito bem-vindo!

Ori Fonseca

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