Poema de agora: AGOSTOS – Ori Fonseca

Ilustração: óleo sobre tela de Jacob Brostrup

AGOSTOS

Agora é tudo sombra nos meus olhos,
Aquela vida que eu pedi a Deus
Foi-se diluindo pelos anos,
A esperança até que me foi farta,
Mas o destino, negligente,
Deixou-me a ver navios.
Os sonhos que sonhei estão mofados,
A carta de promessas que escrevi
Perdeu as letras.
Encontro meus amigos em poemas velhos;
Minhas amadas, nos obituários;
O ano começou ontem de noite,
Pisquei de sono, e já sou agosto.
Reviro lugares na lembrança turva,
E me vejo verde numa cidade chamada Belém
— Seria esse o nome? —,
Moro em casas sem paredes,
Ando por ruas de água,
Visto roupas de plástico
E sinto o cheiro onipresente de nuvem.
Meus pais são moços envelhecidos,
Eu sou um velho remoçado e estranho,
Mulheres de minha vida
São etéreas e pálidas.
O que aconteceu com o vale do Tapajós?
Que almas flutuam em suas águas?
Que metais pavimentam seu leito?
Quantos amores foram levados pela correnteza?
Quanto de mim se afogou lá?
Agora é tudo sombra nos meus sonhos,
A vida se confunde com delírio,
Eu quero me justificar por o que sonhei.
E minto aos “homens, meus irmãos na Terra”,
Até que o sonho se fantasie de realidade,
E a verdade pareça ilusão.
Enquanto isso, uma existência se passou,
A roupa de plástico deu lugar a um manto sem cheiro,
As mangueiras de uma cidade chamada Belém (?)
Deixa despencar mercúrio no fundo do Tapajós,
Meus amigos começam a ser riscados do retrato,
Minhas amadas são etéreas novamente,
As nuvens têm gosto de sal,
Meus olhos se sustentam na muleta frágil do olfato,
E agosto me bate à porta
Para dizer que setembro não tem todo o tempo do mundo.

Mas eu não quero ouvir!

Ori Fonseca

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