O olhar de quem vive no quilombo do Curiaú há mais de 60 anos acompanhando o cotidiano de uma vila tradicional e cheia de histórias, virou livro de memória e relatos de uma época, de autoria de Sebastião Menezes, o Seu Sabá Curió, um quilombola que é o responsável por manter os moradores bem informados há quase 13 anos, com a publicação do Jornal do Quilombo. Agricultor, poeta, repórter, editor, pai de família, ele tem 63 anos, e montado em sua bicicleta, percorre Macapá divulgando seu trabalho, conversando e fazendo observações que viram notícias e tema para seus momentos de palestrante.
Curiaú: Suas Mudanças e Seus Desafios é o quatro livro de autoria de Seu Sabá, todos, ricas fontes de informações e impressões deste homem, que desafia padrões e encanta com suas palavras e sabedoria sobre pessoas, vida, estudo e razões para viver. Estudou até a 5ª série por falta de oportunidades, tem três filhos, graças ao incentivo dos pais, com formação acadêmica, um médico, uma formada em Recursos Humanos, e o terceiro está formando em medicina.
Os moradores do Curiaú sabem bem de suas características, como a mania de contar, numericamente e em palavras, o que acontece ao seu redor, da quantidade de tijolos de sua casa, ao furto de uma galinha da vizinhança. Tudo vira contabilidade ou texto. A paixão pela escrita e a prestigiada memória são marcas de seu Sabá, que para fazer seus relatos, vai da crônica à poesia e matérias jornalísticas.
Um jornal para o quilombo
O Jornal do Quilombo, que nasceu da insatisfação de seu pai com o roubo de sua canoa, e que Seu Sabá denunciou em uma folha de papel impressa, está chegando em sua 150º edição. Um meio de comunicação local, com denúncias, anúncios, elogios e depoimentos de moradores, registros históricos de um local que apesar da intervenção da modernidade, e ainda mantém as tradições religiosas e culturais.
O jornal descreve a realidade e identidade dos quilombolas com simplicidade e ao mesmo tempo requinte, do mesmo jeito que Seu Sabá conversa. É como se estivesse falando pessoalmente. A publicação tem também uma importância social, ninguém quer aparecer por fazer algo errado, mas sim por motivo de orgulho. Seu Sabá conta com a ajuda de parceiros para digitar e imprimir em papel A4, e faz a distribuição em sua bicicleta, sem custo para o leitor, que recebe em casa o jornal.
Gente falando de gente
No lançamento do livro, o autor chegou com seu porte e a elegância de Mandela, um terno de combinação com a camisa, leve e colorido como seu Sabá, bege e verde, tudo muito bem passados, chapéu de tecido, gravata escura e sapatos brancos, o sorriso de homem simples do campo e palavras de um sábio nascido do povo.
“Sei mesmo é trabalhar com a terra, das palavras sou artesão. Escrever é uma necessidade. Preciso escrever porque se eu só falar as pessoas esquecem, e gente tem que entender gente”, disse o autor, revelando que a tradição da transmissão de saberes de forma oral precisou ser adaptada para a escrita, por necessidade.
Assim Seu Sabá foi tecendo seu discurso como quem ponteia um bordado, com precisão nas palavras e delicadeza para ensinar suas lições. Dizendo sempre que gente tem que cuidar de gente, e ensinando que a formação acadêmica não pode ser somente pra ganhar dinheiro, e sim para fazer a diferença na vida das outras pessoas.
Curiaú: Suas Mudanças e Seus Desafios tem as mãos de outros quilombolas. A co-autora é Creuza Silva, também poeta, e o ilustrador é Rosinaldo Miranda, que já deixou sua assinatura em outras publicações e em paredes e locais públicos do Curiaú, sempre com a temática afro. O livro contém relatos, biografias e poesia, e para sua publicação, contou com o apoio de professores universitários e acadêmicos de Letras.
No lançamento do livro, uma plateia formada por moradores, familiares, professores universitários, acadêmicos, promotor de justiça, servidores públicos e alguns dos Guardiões do Curiaú, moradores mais antigos, que foram prestigiar a entrega de mais um capítulo da história do quilombo, contada de dentro pra fora. Relatos emocionantes das lutas enfrentadas, do respeito com os mais velhos, da valorização dos mestres e do acender dessa memória em formato impresso, eternizando as histórias contadas pelos antigos, registradas por Seu Sabá e que agora, são compartilhadas com todos.
O livro está a venda na Papelaria Raízes, no bairro Laguinho, ou com o próprio autor, no Quilombo do Curiaú.
Mariléia Maciel
Assessoria de comunicação