Crônica de Ronaldo Rodrigues
Este senhor senta-se à mesa do café exatamente às 7h18 para um frugal desjejum. Sai às 7h20 e vai conferindo as pedras pretas e brancas do calçamento. Sua rua termina na vista pro mar, um pedaço de muro e uma trilha de terra batida que vai dar na praia. Seus pés recebem a areia com a mesma felicidade fofa com que a areia recebe seus pés. Este senhor sou eu mesmo e me reconheço nele sempre que abaixa a cabeça para fazer espelho da água e olhar seu reflexo.
Não me reconheço nele quando passa a mão na cabeça de um cão que caminha tranquilo. Não tenho amizade com cachorros, gatos, cangurus… Admiro as hienas e os elefantes, mas apenas nos documentários que passam no canal da minha madrugada. Hienas e elefantes vivem em sociedades matriarcais e isso é bom. Quando/se eu voltar, na pele de outra pessoa, tentarei ter mais afeição por animais. E seu eu vier na forma de um animal, que seja uma jubarte com sua eterna cauda mergulhando no mar.
Este senhor está se despedindo da vida (ou se despindo da vida?) ou vice-versa. Mas isso não se dará hoje ou mesmo este ano. Talvez não ocorra nenhuma ruptura nos próximos 30 anos. Quem sabe ele vai festejar sua trajetória pra muito além do tempo de seu tempo? Quem sabe expressará sua frustração por não ter feito aquela viagem maluca para os confins do Himalaia, por não ter tido a ousadia suficiente para invadir a igreja e interromper aquela cerimônia em que a mulher que amava se casava com outro homem?
Neste senhor, que o corvo, empoleirado no ombro do espantalho, disse que sou eu, está minha determinação de permanecer vivo pelo tempo que me for dado por quem maneja a ampulheta. O mesmo tempo que foi dado ao portão do quintal, à rede que ainda balança na varanda, ao peixe que comi ontem e me mantém vivo hoje. E a essa árvore, que sou eu, orvalhada nos galhos e fincada na raiz desse porto de chegada/saída que se chama… Como se chama?! Ah, sim! Diz que é a vida…
3 Comentários para "Balanço de fim de ano – Crônica de Ronaldo Rodrigues"
A vida segue em rios caudalosos o seu caminho a procurar o mar.
O mar segue por seus sete caminhos
inclusive o mar morto
bom saber que o mar não tem beira
e nosso planeta é mais um imenso terrário
onde cabem os homens, bichos, rochas e plantas
e homens velhos empalhados
onde os corvos pousam para fumar
Um texto profundamente bonito que filosofa com a existência sem a pujança do ódio ao fim dela.
Aplaudo enquanto vida me resta!
Lindo texto. Parabéns.