Excelentíssima companhia (crônica de Ronaldo Rodrigues)


Li uma crônica de Luis Fernando Veríssimo em que ele confessa (como se crime ou pecado) que fica jogando paciência sempre que se coloca diante do computador para trabalhar. É como se fosse um alongamento cerebral. Como o cérebro precisa trabalhar, a paciência ajuda a relaxar os miolos, como os jogadores de futebol, ou qualquer outro esporte, que fazem aquecimento antes de entrar em campo/quadra. Mas ele só confessou porque se sentiu redimido ao saber que Chico Buarque também é dado à prática da paciência antes de começar a trabalhar.

É a glória! Pensei em voz alta (e não me referia à Glória, minha vizinha gostosa do oitavo andar). Acabava de descobrir que não estou sozinho nesse jogo. Pelo contrário, estou em excelentíssima companhia. Dois expoentes da arte nacional (e por que não dizer também da timidez nacional?) cultivam o mesmo hábito que eu.

E o Veríssimo escreve também que não chega a ser um grande praticante de jogos eletrônicos. Escolheu a paciência por ser mais fácil. Igualzinho a mim. Já escrevi aqui neste espaço sobre minha pouca-quase-nenhuma habilidade com os jogos virtuais. É bom saber que os grandes também têm suas pendengas com a tecnologia.

Agora, posso jogar minha paciência sem traumas, sabendo que faço parte de um seleto grupo (que deve aumentar, já que muitos se sentirão encorajados a confessar também) que joga paciência antes, durante e depois de cada lance em suas crônicas, contos, poemas, roteiros…

Espero que esses caras me estimulem a fazer como eles, que ficam distraindo o cérebro antes da partida principal e quando entram em campo é pra arrebentar.

Ronaldo Rodrigues

No meu tempo…(crônica de Ronaldo Rodrigues)


Bem lá no fundo da minha infância, sempre achava estranho quando ouvia meu pai dizer:

No meu tempo não era assim. No meu tempo era assado.

Aí eu pensava (sim, senhores! Eu já pensava naquela época!): como assim no meu tempo? (quero dizer: no tempo dele). Se o sujeito está vivo, então o tempo que está rolando é o tempo dele.

Achava que aquilo era papo de velho. Achava bobagem. Acreditava que mesmo quando muitos janeiros passarem sobre minha carcaça, sempre estarei no meu tempo, porque o meu tempo é este tempo, o tempo que vivo.

Aí o tempo passou e me confere agora 47 anos vividos sobre este chão, sob este sol. Não sei se bem vividos ou mal vividos, só sei que idos. Percebi que comecei a envelhecer no exato momento em que fiz soar meu primeiro choro sobre a face da terra. Percebi que meu pai tinha razão. Afinal, este tempo, em que já cumpri mais da metade da minha existência (a não ser que eu seja, como muitos pensam, uma tartaruga e ainda tenha os meus 200 anos para viver) já me escapa entre os dedos. As areias da ampulheta já me sufocam, os papos que rolam já não têm nada a ver comigo, não aplacam minha ânsia de saber mais. Já me enchem o saco as coisas aprendidas, as discussões sobre a imortalidade da alma, o tempo perdidos em discussões sobre a relação, as gozações nascidas no seio da turma. Vejam como estou velho. Já não se diz mais turma, agora é galera. As minhas gírias já são de outro tempo.

Eis outro exemplo: escrevo no computador, mas, de vez em quando, bate uma saudade danada da máquina de escrever. Aquela máquina em que escrevi meus poemas adolescentes. Uma adolescência de outro tempo, agora sei. A máquina de escrever que nunca aprendi a digitar. A digitar não, a datilografar. O meu diploma de datilografia na parede acusa meu tempo fora do tempo.

E essa vontade e velocidade toda para se comunicar. Redes sociais, amizades virtuais. Sei muito bem que estou ficando chato com esse papo, meu caríssimo leitor. Deve ser a velhice. Sou um homem imprensando entre dois séculos, compreenda isso. Não pertenço à tecnologia, à blogosfera. Não sei escrever como os internautas. Faço questão de pontos, vírgulas, clareza. Minha insistência nesse campo do computadorismo exacerbado deste tempo deve-se ao leve desespero de me manter no tempo. Sou um dinossauro deitado na rede escutando discos de vinil, fato ainda não explicado pela ciência.

Mas nem tudo é ruim, claro. Sinto em mim e em alguns dos meus companheiros de um remoto tempo que meus valores carcomidos pelo tempo não estão fora de moda, jamais estarão fora do tempo. Ainda penso em respeito ao próximo, coisa que as pessoas deste tempo estão perdendo, ao mesmo tempo em que disparam, nos facebooks da vida, frases de confiança no ser humano. Pois bem!

Meu pai tinha razão quando dizia que seu tempo era outro. Foi preciso que o tempo passasse para compreender a importância dessas e de muitas outras coisas que ouvi sem dar a devida importância. Tempo de fazer as pazes com Deus, convidá-lo para uma cerveja, bater um bom papo ou ficar no mais beatífico silêncio.

Agora me despeço e vou cultivar as flores banais da minha existência, que parecem tão artificiais neste tempo de odores artificiais. Além do mais, já passou do tempo de terminar esta crônica.

Ronaldo Rodrigues

Se arrependimento matasse… (conto de Ronaldo Rodrigues)

– Você vem sempre aqui?
Cantada velha, mas ela esta a fim de ser apanhada em qualquer cantada.
– Sim. Eu sempre venho aqui na esperança de ouvir uma cantada original. Mas essa serve. Vamos para sua casa?
Ele recua. Não está acostumado com essa facilidade. A cantada é sempre a mesma, a única que ele tem, mas nunca funciona. É apenas um protocolo que cumpre nos bares. Ele precisa disso para comprovar sua ideia de que todo homem bêbado precisa de uma mulher para findar a noite.
– Vamos ou não para sua casa? Ou prefere um motel? É casado?
Ele recua mais ainda. Está quase arrependido de ter iniciado a conversa. Além do mais, nem está tão bêbado assim.
– Vai responder ou não? Se não está a fim, diga logo. Não quero voltar pra casa hoje sem ter transado.
Ele não recua mais porque já tinha recuado muito.
– Vamos conversar mais um pouco.
– Sei. Você é das antigas. Mas não quero intimidades. Pra que conversar se amanhã ninguém se lembrará de nada mesmo? Aliás, é melhor assim, sem criar laços.
Ele permanece mais um tempo calado, depois fala, sem muita convicção:
– Tudo bem. Vamos a um motel aqui perto.
– Ótimo.

Chegam ao motel e ela logo fica nua. Deita-se na cama, enquanto ele vai ao banheiro. Quando volta, ela dispara:
– Ainda está de roupa? Você é muito vagaroso.
– É que eu não estou acostumado com essa… essa… 
– Essa o quê?
– Sei lá! Você tem razão. Sou mesmo das antigas. Preciso de um estímulo maior.
– Vou dar o estímulo que você precisa.
Liga as palavras aos gestos. Levanta-se e o joga na cama. Arranca sua camisa, abre o cinto, puxa a calça, tira a cueca e se joga em cima dele, que fica imóvel e não consegue corresponder às carícias cada vez mais quentes. Ela busca todo o seu arsenal de jogos eróticos, até que, finalmente, consegue que o corpo dele tenha uma reação.

Depois de alguns minutos, os dois fumam, quando batem na porta. Ela permanece calma, enquanto ele pula da cama:
– Quem será?
– Só abrindo a porta pra saber.
– Você tem alguma coisa a ver com isso? Qual é o plano? Me assaltar?
Ela vai até a porta, falando entre um sorriso sem graça:
– Que onda…

Ela abre a porta e atende à funcionária do motel, que lhe entrega um bilhete e se retira.
– É só um bilhete. E é pra você.
– Um bilhete? Pra mim? Aqui? Quem poderia saber que estou aqui? E quem mandaria um bilhete pra mim?
– Só vai saber se ler o bilhete.
– Eu vou ler, mas essa história está muito esquisita. Aposto que você tem alguma coisa a ver com isso!
– Deixa de paranoia e lê logo a merda desse bilhete!
Ele abre o bilhete e o lê várias vezes, em silêncio. Ela perde a paciência e arranca o bilhete de sua mão.
– “Cuidado! Você está em perigo!”. O que significa isso?
– E eu sei? Você deve saber! Tenho certeza de que está metida nisso!
– Escuta aqui, cara! Você já não é bem grandinho pra inventar essas histórias? Pra quê que eu ia armar pra cima de ti? A gente se encontrou por acaso na merda daquele bar. Se arrependimento matasse…
Ela não termina a frase. A funcionária do motel abre a porta novamente e dispara três tiros. Ela, com um resto de vida, ainda têm tempo para perguntar:
– O… que é… isso?
Ele, agora abraçado à funcionária do motel, sorri entre baforadas de cigarro:
– O bilhete não é pra mim. É pra você. É o tal do arrependimento. Como você pode ver, arrependimento mata…

Ronaldo Rodrigues

Piquenique (conto de Ronaldo Rodrigues)


Chapeuzinho Lilás e Lobo Blau estavam nus, passeando pelo bosque. Suas roupas ficaram próximas ao lago, onde haviam passado a manhã inteira, em doces brincadeiras de mergulho, se procurando com ansiedade e se encontrando com sofreguidão.

Escolheram um lugar bastante aprazível, entre árvores cúmplices de vários amores.

Estenderam a toalha que Chapeuzinho Lilás trouxera da casa da avó. Estavam completamente despreocupados com a possibilidade de ser vistos. Tinham resolvido que naquele dia assumiriam seu amor proibido e ficariam juntos para sempre, de maneira que ninguém pudesse interferir.

Com movimentos lentos, ritualísticos, Chapeuzinho Lilás abriu a cesta e retirou uma garrafa de mel. E passou a lambuzar os corpos dos dois amantes, entre beijos e ridos de êxtase.

O Lobo Blau abriu outra garrafa e despejou em volta uma colônia de formigas vermelhas, que passaram a trafegar pela toalha, com finalidade estratégica.

Depois, Chapeuzinho Lilás e Lobo Blau se abraçaram, se beijaram, gemeram e gozaram em meio ao mel e às formigas que começavam a devorá-los.

Ronaldo Rodrigues

& como se fosse um gato no muro (por Ronaldo Rodrigues)


& eu olho indiferente & todos passam & eu tranquilo & eles passam apressados & todos vão em fila para o sepulcro & para a vida & eu olho para tudo isso & eles pisam nos pés dos outros & de si mesmos & eu olho todos despreocupados com a ameaça de um boeing cair sobre suas cabeças & que exploda uma bomba & eu olho para todos como se não visse nada & eles nem me olham devem estar preocupados com o custo de vida & com a bolsa de NY & ansiosos para o último capítulo da novela das 8 & para a partida de futebol & para a final do Big Brother & para o filme de bangue-bangue & uns leem jornais & cospem no chão & eu olho para isso preguiçosamente & estico o corpo sem medo de dilúvios & olho para o sinal & uns mendigos estão por aí & também hippies & punks & argonautas & bucaneiros & faquires & o que restou deles & tudo o mais que se possa imaginar & eu olho despreocupado para tudo & para nada & não sei quem inventou o guarda-chuva apesar de achar uma grande invenção & mil coisas passam por meus olhos inclusive discos voadores & eu olho para tudo sem filtro nem para-raios e bocejo looooooooooooooooooonnnnnnnnnnnnnnnnngamente.

Ronaldo Rodrigues

Caixa preta (para ler durante o voo – crônica de Ronaldo Rodrigues)


Atenção, senhores passageiros!

Pedimos que não se assustem se, por acaso, olharem à esquerda. As turbinas foram, momentaneamente, desligadas.

Pedimos que não entrem em pânico ao olhar à direita. As turbinas desse lado também foram desligadas. Apenas por alguns momentos.

Tudo não passa de mera operação de contenção de combustível.

Aquele fogo saindo em grandes labaredas não significa perigo algum. É considerado um incêndio de pequenas proporções dentro das especificações da indústria aérea mundial.

De modo algum se assustem com a fumaça, que é comum nessas ocasiões.

Não se apavorem ao notar alguns paraquedistas saltando do avião. Trata-se de nossa dedicada tripulação que resolveu antecipar suas merecidas férias.

No momento, só eu, o copiloto automático, está no comando desta aeronave. 

Estamos sobrevoando o oceano.

O tempo é bom e a visibilidade melhor ainda.

Para finalizar, algumas perguntas:

– Alguém entre vocês tem alguma noção de pilotagem?

– Há quanto tempo vocês não testam seus nervos e sua capacidade de superar desafios?

– Há quanto tempo vocês se entregam ao tédio de uma vida segura, esquecendo o prazer de viver perigosamente?

Obrigado pela compreensão e aproveitem o resto da viagem. 

Isto é uma gravação…

Isto é uma gravação…

Isto é uma gravação…

Ronaldo Rodrigues

Crônica de uma morte anunciada (Por Ronaldo Rodrigues)


As condições de segurança da maioria das casas noturnas são precárias e isso não é novidade.

Agora vão discutir o assunto,que será esquecido com o passar do tempo até que nova tragédia aconteça.

O que também não é novidade.E assim vai rolando essa história sem que as (ir)responsabilidades sejam apuradas, sem que haja punição,sem que se dê uma resposta a familiares e amigos das vítimas.

Vamos fingir que ninguém sabe que a culpa não é da cobiça dos empresários que só pensam no lucro imediato sem se preocupar com a segurança de seus clientes.

Vamos fingir que a culpa não é das autoridades que deveriam fiscalizar esses lugares.

Vamos fingir que está tudo bem.

Ronaldo Rodrigues

Boca de lata (crônica de Ronaldo Rodrigues)

Ronaldo Rodrigues

Como no samba do Paulinho da Viola, “Tinha eu 14 anos de idade...”. Pois bem. Tinha eu 14 anos de idade e estudava no colégio Lauro Sodré, em Belém do Pará. Na minha sala, estudava um colega japonês. O que tenho a falar desse colega japonês é que ele era chamado de Boca de Lata. Era o bullying, sem esse nome, praticado sem a vigilância politicamente correta de hoje. Já era chato naquela época. Quem sofreu/sofre bullying sabe. Quem praticou/pratica, nem tanto.

Prosseguindo. O japonês (não vou citar o nome aqui porque seria meio chato e o Maurício Ishihara jamais me perdoaria, mesmo passados tantos anos) tinha o apelido de Boca de Lata por um motivo que hoje seria totalmente descabido: ele usava aparelho nos dentes. E tinha vergonha daquele sorriso envolvido por um monte de grampos. Pouquíssimas pessoas tinham aparelho nos dentes naquela época, só quem era abastado. O japonês era abastado (e um pouco abestado, mas deixa pra lá. Ao contrário das meninas, aos 14 anos os meninos são muito abestados). Naquele tempo, só quem tinha algum defeito dentário muito sério – e família com grana – usava aparelho. O sarro dos colegas era certo.

Como os tempos e os comportamentos mudam! Hoje em dia, aparelho dentário é a coisa mais comum. O incomum é ver algum adolescente sem aparelho. Alguns ficam até deslocados na turma e arranjam uma maneira de exibir um sorriso enlatado, mesmo que tenham a arcada perfeita e todos os dentes no lugar certo. E não são apenas os adolescentes.

Será que o meu colega japonês, personagem desta crônica e da minha vida colegial (fica frio que não vou entregar o teu nome, Maurício!), desconfiou que seria precursor dessa moda que virou mais um símbolo de ostentação, como o carro, o celular e uma porção de coisas que foram criadas para ter utilidade?

E para terminar a crônica, um filme que a turma ficava imaginando: o Maurício (ih! Falei o nome do cara!) namorando a menina mais chata da escola, odiada por ele e por todo o universo estudantil. Na cena que a gente criava para os dois, a menina beijava apaixonadamente o Maurício e ficava com a boca engatada na boca de lata do japonês.

Desculpa, aí, Maurício, mas aquela menina merecia e essa era a única vingança legal que a gente conseguia imaginar.

Nota do autor: o primeiro nome do japonês é Maurício mesmo, mas o segundo nome (Ishihara) é fictício, já que não lembro do nome verdadeiro. O final, a história do filme, também é de mentirinha. Eu precisava terminar esta crônica com um toque de humor, né?

Balanço de fim de ano (por Ronaldo Rodrigues)

Ronaldo Rodrigues

Balancei como os países que sofrem terremoto, maremoto, tsunami. Mas continuo firme, às vezes bêbado, às vezes equilibrista.

Se cheguei ao fim do ano é porque o ano foi legal comigo. Também não dei muito trabalho. Só aos bombeiros, por causa do incêndio que causei com minha mania de dormir fumando.

Fui ausência marcante nos grandes shows. Nos de Madonna e Paul McCartney, não estive na primeira fila. O show do Stevie Wonder não vi. Nem ele.

Também estive fora das Olimpíadas. Lá em casa, na galeria dos troféus, uma medalha de barro brilha em seu estado opaco, me colocando no podium da minha olímpica nulidade. 

Como o mar não estava pra peixe, deixei a barba crescer pra colocar a barba de molho. É uma piada infame, mas a estas alturas até que cola. Na verdade, deixei a barba crescer para infundir respeito. Pela tiração de onda que enfrento todo dia, parece que não deu muito certo. Talvez eu aceite o papel de Cristo na próxima semana santa. Afinal de contas, as porradas já estou levando há muito tempo.

Ponto positivo do ano que agora finda: provocado pelo amigo Elton Tavares, piloto deste superacessado blog, voltei a escrever crônicas. Obrigado pelo gás e pelo espaço, Elton. Espero que, com minha colaboração, teu blog não passe de acessado a processado (rsrsrsr).

O Capitão Açaí deixou a preguiça de lado e foi à luta, lá à maneira dele. Em 2013, o sub-herói do terceiro mundo vai encarar, finalmente, sua missão número 1: tirar o cartunista Ronaldo Rony da linha da pobreza.

O coletivo de quadrinhos do qual sou o decano levantou voo. A revista Mixtureba Comix enfrenta algumas crises editoriais, mas prossegue impávida. No começo de 2013, vai rolar o Segundo Encontro de Histórias em Quadrinhos do Amapá. Agora não tem kriptonita que faça essa galera perder a força.


Com a idade avançando, a barriga ganhando cada vez mais espaço, a gente vai começando a pensar no tempo. Fica pensando em mudar algumas atitudes. O problema é justamente esse. Geralmente só se faz pensar. Agir, que é bom, mas quando…

No dia 17 de janeiro do ano que entra (ui!), estarei completando 47 bisonhas primaveras. Nada mal pra quem achou que ia morrer aos 30. Não tive coragem ou covardia suficiente para me matar aos 20. Devo confessar que acho suicídio um ato podre de chique.

Apesar dos muitos percalços, tive algumas vitórias nesse tempo que até agora me foi dado para exercer minha falta de habilidade em lidar com a existência. Perdoei aqueles que praticaram bullying comigo na infância. Só não deixo eles saberem, senão vão me encher de porrada de novo.

O mundo não acabou e já estou me conformando com isso. Esse negócio de fim do mundo deve ser promessa de campanha. Nunca rola e quando rolar vai ser meia-boca, com certeza.
Então é isso. Ou não é nada disso. Adeus, ano velho! Feliz, ano novo! e tal. 

A VERDADE SOBRE O CALENDÁRIO MAIA (crônica de Ronaldo Rodrigues)


Este é um ano especial. É o momento de passar a régua e pedir a conta da bebedeira. É hora de a onça beber água poluída. É hora de se saber com quantos paus se faz uma canoa furada. De se fazer o balanço final do planeta e ver quem vai cair primeiro, o ovo ou a galinha.

O fim do mundo é um evento anunciado desde que o mundo é mundo. Desde que a serpente virou Cupido e fez Eva comer a maçã e Adão comer Eva. Esse acontecimento inaugurou o fim, foi o pontapé inicial de uma partida de futebol que já extrapolou o tempo regulamentar. Agora a humanidade está na marca do pênalti e os batedores estão a postos. Resta saber quem vai ficar no gol.

Segundo a Bíblia, o fim do mundo já ocorreu, através de um aguaceiro sem precedentes, o famoso dilúvio. Mas, em sua infinita sabedoria, Deus fez com que Noé escapasse para perpetuar a espécie. E as pessoas que não quiseram embarcar na arca ficaram, literalmente, a ver navios.

Anunciado o fim do mundo para a virada do ano 999 para o ano 1000, a humanidade de então ficou na espera, deixou de trabalhar, entrou num período de férias coletivas, aguardando o fim. Frustrando as previsões das Mães Dinahs da época, o lance não rolou. Paciência. A galera voltou ao trabalho, esperando novas oportunidades.

A chegada do ano 2000 seria o fim. Também furaram as previsões dos jogadores de búzios, as cartomantes e os Nostradamus de plantão do Fantástico, o Show da (dú)Vida. Agora é o tal Calendário Maia que assinalou a data do fim do mundo para o dia 21 de dezembro de 2012 e está causando a maior confusão, rendendo discussões nas redes sociais e argumentos para filmes e minisséries.

Entre as muitas controvérsias que o tema inspira, resolvi dar a minha contribuição e esclarecer de uma vez por todas, tim-tim por tim-tim, o mistério do Calendário Maia. A verdade é esta:

O cantor Tim Maia, chegando ao outro lado da vida, encontrou uma monotonia tremenda. Para movimentar a pasmaceira do paraíso, o nosso talentoso gordinho não perdeu tempo e armou essa pegadinha para deixar a galera doida. Aproveitando um cochilo do Todo (Todo é a maneira carinhosa com que me refiro ao Todo-Poderoso), entrou no gabinete celestial e mexeu nos papéis do velho. Inverteu a ordem dos fatos, revirou os grandes enigmas, misturou os mitos. Fez uma confusão dos diabos (com o perdão da palavra), inventou esse calendário e o colocou entre as ruínas do império maia. 


O resultado é isso que estamos vivendo agora: expectativa e dúvida sobre o Calendário Maia, sobre a possibilidade de o planeta levar o farelo.

Portanto, como acabei de mostrar, o Calendário Maia tem, sim, autenticidade, mas como uma brincadeira, uma armação. Trata-se do Calendário do Tim Maia, tão louco quanto ele, que está se divertindo lá nas alturas.

Ronaldo Rodrigues

NO AVIÃO PARA BELÉM


Estou a bordo do avião, indo para Belém. Nessa ocasião, sempre trago papel e caneta para anotar as impressões de viagem. Pois cá estão:

– O nome do comandante: Alexandre Braille. Claro que minha imaginação não perderia a chance de ver um piloto cego, tateando os controles.

– Sinto um sacolejar leve no avião. Turbulência, normal. Mas vejo que o avião ainda não decolou. Aí é preocupante.

– Zona de turbulência: uma aeromoça linda acaba de invadir meu espaço aéreo.

– As aeromoças, que hoje são chamadas de comissárias de bordo (perdeu a poesia), passam para lá e para cá, esbanjando aquela sensualidade indiferente à libido dos passageiros. Minha fantasia: me trancar no banheiro com uma dessas aeromoças e cair nas nuvens.

– Viajar de avião me faz descobrir superstições que ficam por muitos anos guardadas e só aparecem neste momento. Exemplo: descruzar as pernas quando o avião está decolando. Nesses momentos é preciso contar com todas as forças.

– Belém fica a pouco tempo de Macapá. Viagem curta. Não dá tempo nem de sentir medo.

– E lá vêm as instruções de como proceder em caso de acidente. Que acidente? Eu nem estava pensando em acidente! Socoooooooorro! 

– Hora do lanche: peço coca-cola, mas, bem enfaticamente, peço que não se coloque gelo. A coca-cola sem gelo diminui o poder devastador do meu arroto. Meu arroto, em sua potência máxima, seria prejudicial à pressurização do avião.

– Viajar de avião, um objeto mais pesado que o ar. Vejo as caras dos passageiros simulando tranquilidade e penso na banalidade do absurdo, a simplicidade de correr o risco. Sei lá.

Consegui pousar em paz. A distância de Macapá a Belém parece diminuir cada vez mais. Estou em Santa Maria das Mangueiras. Marambaia me espera. Cuité, Buscapé, Mauro Vaz, Universidade, Praça da República, Theatro da Paz, estou aqui. Vamos à farra. Em breve, mando outro relato. Boas férias pra mim.

Ronaldo Rodrigues

Sei que se movia

Por Ronaldo Rodrigues

Sei que se movia numa região pantanosa.

Entre a muralha do castelo da realidade e seu coração, havia uma ponte elevadiça há séculos emperrada.

Setenta anos se passaram sem notícias dele. A cidade não dormia. Ele tinha levado não só o sonho, mas o sono de toda a gente. E somente aos domingos, embaixo da árvore da dúvida, era permitido falar nisso.

Sua família amealhou posses. Seus irmãos enriquecidos ostentavam poses. E sua amada chorava entre a espada cega da verdade e a colcha de retalhos de tristeza que tecia na beira do cais desde que ele sumiu no mundo, submundo, imundo, mundano. Sua casa foi comida pela hera. Era após era. Após hora.

Quando ele retornou, numa quarta-feira de cinzas, comandando a nau do esquecimento, sua barba o escondeu tão bem que nem seu cachorro Madrugada, grande devorador de sábados, o reconheceu. E seu irmão gêmeo jurou nunca ter visto aquele rosto.

Quando ele pousou o pé descalço sangrando gotas de azul e pisou o território selvagem de sua infância, a sombra da torre da igreja, muito antiga e já desprovida de sinos, soou do meio-dia às seis da tarde. O pássaro do dia, que há muito não voava pelo firmamento da imaginação, abriu suas asas e fez o silêncio despertar as nuvens, que partiram céleres levando uma notícia muito boa para um país muito longe.

No outono, veio a revelação. Quando sua barba caiu por completo, seu melhor amigo de infância, que se tornara próspero comerciante, lhe cobrou aquela dívida de jogo, motivo de sua fuga.

Então, a cidade inteira o reconheceu, o cercou junto ao poço da solidão e passou a devorá-lo como antigamente. Só as árvores o reverenciaram, tangendo no deserto da noite um rebanho de estrelas cadentes.

Palavras, palavras, palavras…


Pouco me interesso pelo real. Somente os sonhos e os delírios me deixam em estado de alerta. Ou letargia total, sei lá! Agora, por exemplo, não sei se é sonho: o momento em que pouso o copo de uísque barato na mesa barata do boteco barato e tento continuar escrevendo estas linhas toscas, que ninguém lerá. 

O sonho em que pareço mergulhado nem sempre me dá prazer. Prazer é artigo de luxo. A TV mostra bombardeios horrendos narrados por repórteres em modelitos impecáveis. Os comentários das pessoas ao lado me desagradam profundamente. São opiniões equivocadas, que revelam o nível precário de consciência em que o ser humano chegou neste princípio de milênio. Penso em Caetano Veloso. Ele tem razão quando fala de uma nova Idade Média situada no futuro.

Posso pensar que a amargura dos ultrarromânticos escreveu belas páginas da literatura mundial. Em verdade, posso pensar qualquer coisa. E, quando estou de posse de uma caneta e um pedaço de papel, esse poder se transforma em palavras que revelam poder nenhum. A não ser uma sensação de aniquilamento. Mas prosseguiremos. Prosseguiremos?

Não há motivo aparente para desespero. E o desespero não existe realmente. Mas se existe no delírio, e é o delírio que me interessa, o desespero passa, então, a existir. Eu coloco uma distância entre o desespero que há e o sofrimento que ele pode causar. É como se eu fosse apenas o cinegrafista do filme que é minha vida. Um observador desatento, mas privilegiado, das coisas que acontecem comigo e que alguém, sentado na poltrona do cinema, pode dizer: “Ei! essa é a vida de alguém!”.

Um trabalhador que pega no batente às sete da manhã, o que o obriga a acordar às cinco, dirá: “Frescura! Na minha terra, homem que é homem não tem tempo ou disposição para questões que esse cara acha que abriga no peito, na cabeça”. É verdade. O tempo disso já passou. A adolescência não voltará para me redimir, me colocar nos eixos. Hoje, adulto, eu deveria saber que não há eixo algum. Há somente uma tentativa, por muitas vezes frustrada, de consciência. Saber-se na escuridão, tentando manter os olhos abertos.

Ronaldo Rodrigues