PM na TPM (Crônica de Ronaldo Rodrigues)


Meu amigo João Grandão namora um soldado da Polícia Militar. Calma, gente! É um soldado da ala feminina da PM. Isso mesmo! Uma soldada. As brincadeiras dos amigos são inevitáveis:

– Como foi que ela te prendeu, hein? 

– É verdade que as soldadas da PM gostam de algemar o cara na cama?

João Grandão sorri e vai seguindo a vida. Pega a namorada no quartel e leva ao cinema para assistir a um filme do Rambo ou coisa parecida. Ela é saradona. Ostenta uma musculatura máscula e uma autoridade militar que nem os generais da ditadura conseguiram.

João Grandão jura que, apesar de toda aquela demonstração de virilidade, ela é um doce. Sempre disposta a carregar as sacolas do supermercado, trocar o pneu e arrombar as portas que insistem em emperrar. Deixa que ele escolha as botas e não dispensa a opinião do namorado sobre o uniforme.

João Grandão só tem uma queixa uma vez por mês, quando ele aparece com o olho roxo, escoriações generalizadas e braço engessado. Nesses dias, ele se justifica com desculpas mais esfarrapadas que suas roupas. Diz que sofreu um acidente ou que foi assaltado. Mas nós descobrimos que o motivo da deformação da qual João Grandão é vítima todo mês vem de um fato comum a todas as mulheres. Quando a TPM baixa, a moça perde a doçura e ataca quem estiver mais perto. E quem está mais perto é sempre o coitado do João Grandão. 

Segundo ele, quando passa o período crítico ela volta a abrir o leque de carinho, afagos e atenção. Ela cura os ferimentos e os dois seguem a vidinha normal de casal apaixonado. Até o próximo mês e nova sessão de pancadaria.

Ronaldo Rodrigues

A ARCA DE NÃO É (Crônica de Ronaldo Rodrigues)


Depois do temporal fiquei olhando aquele mar sem fim que a chuvarada tinha plantado.

Eu tinha ficado só no mundo, depois do dilúvio.

Minha preguiça não me permitiu concluir o grande barco que a voz tinha dito para eu construir.

Era um sonho louco que eu tinha toda vez que chovia muito.

Uma voz me dizia para eu construir um barco imenso, onde coubessem muitas espécies de animais.

Uma dessas chuvas poderia demorar muito a passar, alagar e afogar todos os que não estivessem no barco.

Até comecei.

Pedi a um amigo construtor de barcos para desenhar um esquema que eu pudesse executar.

Ele esboçou uma arquitetura naval impressionante, bem mais avançada que as loucuras de Da Vinci e sem aquelas frescuras que Niemeyer adorava inventar. 

Julio Verne não teria conseguido imaginar algo tão engenhoso.

Desenhou um barco que, se estivéssemos num filme, poderíamos batizá-lo de Titanic, tal sua imponência e capacidade de navegação.

Eu fiquei de comprar o material e construir o bruto do barco, do jeito que a voz mandou.

Mas dava uma preguiça danada pensar naquilo, aliada ao fato de que a inflação crescia e o dinheiro diminuía.

Sei que se tivesse me empenhado teria conseguido juntar a grana.
E não estaria agora só, no meio do mar.

Vou dormir e tentar sonhar com a voz. Quem sabe ela me diz o que fazer.

Ronaldo Rodrigues

NARIZ (Ronaldo Rodrigues)

Meu nariz cansou de mim. Diz que não sou digno dele. E propõe que nos separemos. Que eu fique com os olhos, que não aceitaram a proposta de ir embora. Que eu fique com a perna, com o pé. Que eu não conte com o dedão, que deve fugir na primeira bobeada. Uma topada serve.

Mas o que é isso? Meu nariz acaba de dizer, na minha cara, que vai embora e ainda instiga a debandada de todos os meus órgãos!

Segurei os óculos imediatamente. Temi que a orelha, dando ouvidos ao nariz, se evadisse, levando os óculos pra, sei lá, ter uma companhia, no mínimo.

Eu estava de mãos atadas com aquela situação e espero não vê-las dando aceno de despedida e se juntando ao nariz naquela tresloucada deserção.

Como vou negociar com meu nariz se tenho apenas 16 anos, não tenho a chave de casa, ainda não ganho o meu sustento?

Como vocês podem ver, eu não sou dono do meu nariz.

Ronaldo Rodrigues

A rebelião dos objetos da casa (conto de Ronaldo Rodrigues)


– A televisão liderou a rebelião!

Esta foi a declaração do abajur, que jurou estar ligado àquela hora. A descarada da televisão (palavras dele, o que me levou a pensar que havia alguma animosidade antiga entre os dois) usou os serviços do apresentador do telejornal para divulgar a nota em que se anunciava a rebelião dos objetos da casa.

A televisão revidou com fúria e muita ênfase à acusação do abajur (o que reforçou minha ideia anterior de que havia mesmo hostilidade entre os dois. Será que eles eram personagens de uma história obscura envolvendo amor e ódio? Mas deixemos de especulações e retornemos à investigação).

Eu dizia que a televisão rechaçou a acusação do abajur e o acusou de alcaguete. O abajur, ofendidíssimo, piscou três vezes e quase apagou, mas prosseguiu seu depoimento, sempre atacando a televisão, que saiu do ar três vezes (o que me fez pensar que a coisa era séria mesmo, pois mesmo travando um embate, televisão e abajur mostravam fina sintonia, num sincronismo fantástico: os dois tiveram o mesmo número de reações. A televisão saiu do ar três vezes e por três vezes o abajur piscou).

O abajur jurou que jamais abjuraria sua fé. A liderança da TV era notória. Ela mantinha os outros objetos sob total domínio. Por isso, o abajur insistia em sua tese de que a TV liderara o motim (o que me chamou a atenção novamente. Ah, sei que esse papo tá ficando chato, mas sou um investigador que acha que esses lances psicológicos ajudam a elucidar os crimes. É preciso estar atento ao fato concreto, real, mas deve-se deixar a porta aberta para as deduções mais delirantes que possam aparecer. Voltando: o que me chamou a atenção novamente foi o fato de o abajur tratar a televisão por TV. Isso denotava uma certa intimidade, vocês não acham? Vou pegar os depoimentos dos outros objetos envolvidos para ver se eles tratavam a televisão por TV. Caso não tratassem, o abajur teria claramente uma intimidade maior que os outros com a televisão.

A televisão chamou em sua defesa o liquidificador, que foi logo triturando o abajur, falando poucas e boas (detectei um terceiro elemento no caso que imaginava entre televisão e abajur. O liquidificador parecia se deliciar ao ver televisão e abajur se confrontando).

A discussão pegou fogo mesmo quando entrou em cena o fogão, apoiado pelo micro-ondas e por uma gravata, que não estava envolvida na rebelião, mas queria dar uma força ao amigo micro-ondas, que sempre lhe esquentava no inverno. Ela foi aceita pelos dois litigantes e a sessão de depoimentos continuou.

O fogão estava muito acalorado e fez uma veemente defesa da televisão. O que atrapalhou foi que o fogão fez os mesmos comentários em relação ao abajur, exaltando suas virtudes. Fiquei confuso por certo tempo e pedi que os objetos tentassem ser mais objetivos. Mas a opinião do micro-ondas só fez requentar a opinião do fogão, puxando a brasa pra sardinha tanto da televisão quanto do abajur. Fiquei mais confuso ainda e perguntei à televisão e ao abajur se eles gostariam mesmo de levar aquela questão adiante. Eu abriria mão da investigação e, consequentemente, daquela sessão de depoimentos que já estava ficando cansativa e confusa demais. Eu retiraria a acusação do abajur à televisão, caso todos se responsabilizassem pela normalidade da casa e zelassem para que os motins, que porventura chegassem a ser tramados, não fossem executados. Os objetos aceitaram, se acalmaram e voltaram aos seus lugares.

Fui descansar daquela noite extenuante e fiquei pensando na ligação que pode haver entre os objetos. Eu não deveria me preocupar. Se rolasse algo entre eles, problema deles, solução deles. O sofá poderia flertar com o tapete. A mesa poderia paquerar os talheres. A pia poderia ter o maior tesão pela geladeira. Que esta não fosse fria e deixasse a pia toda molhadinha. E se a televisão tivesse mesmo um caso com o abajur, e daí? Que eles se beijassem na boca e fossem felizes.

Quando pensei que estava tudo em paz, já me preparando para dormir, o aparelho de som voltou a tocar no assunto dizendo que o abajur não tinha nada que acusar a TV (epa! Então o aparelho de som também tratava a televisão por TV! Hummm… Elementar!). Aí começou nova rebelião.

Ronaldo Rodrigues

Microcontos do Ronaldo Rodrigues


BUROCRACIA É O FIM

– Vim falar com Deus.
– Tem hora marcada?

MUDARAM AS ESTAÇÕES
No outono, no inverno,
minha prima Vera vira verão.

BLÁ-BLÁ-BLÁ
Quando faltar assunto, fique em silêncio.

CUIDADO – FRÁGIL
Quebrei meus olhos nas plumas do caminho.

BALA PERDIDA NÃO EXISTE
Todo coração tem endereço fixo.

MATOU A SAUDADE
Deu um tiro no peito.

GANGORRA
– Olha como eu toco no chão!
– Olha como eu toco no céu!

BASEADO BLUES
Fumaça colorida no ar de Barcelona.

FOLHA DE PAPEL A ME DESAFIAR
Te risco.
Me arrisco.

NO PAÍS DO CARNAVAL
Na quarta-feira, deparou com as cinzas do pierrô.

PÁSSARO NA GAIOLA
Só a ilusão conseguiu fugir.

ME DEIXASTE!
Me vingo te amando mais.

EM BRANCAS NUVENS
Lá vai a vida assim
sem saber se foi bom ou ruim.

MUDARAM AS ESTAÇÕES
A flor e a folha mudaram de ramo

MINHA VIDA É UM MAR DE ROSAS
Disse Elvira se afogando mais uma vez.

ONANISMO
(ou está tudo acabado entre nós)
Ao deceparem minhas mãos
dissolveram meu harém.

CAPITÃO GANCHO TAMBÉM AMA
Numa dessas ainda leva Sininho pro navio.

E SE EU ESCALASSE ESSA MONTANHA?
Pensou a aranha pouco antes de aceitar a missão.

AI, MEU FÍGADO…
Você ainda me mata do coração!

QUERIDO DIÁRIO
Vou rasgar-te, queimar-te, perder-te…
Apagar-me.

MEMORANDO DE DEUS PARA LÚCIFER
Considere-se demitido!

ORELHÃO QUEBRADO NO MEIO DA MADRUGADA
– Caraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaalho!

OVERDOSE
Depois do pó
o pós.

BANDA SEM FUTURO
Aqui jazz
(esta teve colaboração de Marconi Lima)

A FLOR
Despetala para despertá-la.

COM A MORTE
– Enfim, sós…

Ronaldo Rodrigues

Dia de Todos os Santos / Sexta-Feira da Paixão (conto de Ronaldo Rodrigues)


Da esquina da rua em que mora, as fofocas chegam aos ouvidos de d. Zulmira: ela bate no seu Ernesto, vocês não sabem, não? Então não escutam os gritos do coitado?

D. Zulmira, louca da vida, sai de casa, disposta a quebrar a cara das fofoqueiras de plantão. A dois passos, controla-se, prossegue altiva, passando ao largo do disse-disse.

Acontece que d. Zulmira bate mesmo. Por qualquer motivo, promove grosso espancamento, tortura fria, requintes de sadismo. Seu Ernesto chega tarde: tamancada certeira na cabeça do infeliz. Seu Ernesto chega cedo: cotovelada nas magras costelas. Seu Ernesto fica em casa: panelada no lombo, dedo fura-bolo no olho.

*** *** *** *** ***

No Dia de Todos os Santos, seu Ernesto sai para comprar cigarro e se torna protagonista da clássica história de abandono do lar.

*** *** *** *** ***

Depois de esperar dois anos, d. Zulmira arranja novo companheiro, homem de ombros largos e sorriso aberto. As vizinhas deduzem que, pelos ombros largos, esse não vai apanhar. Pelo sorriso constantemente aberto, concluem que também não vai bater.

Engano. D. Zulmira paga ao segundo tudo o que fez ao primeiro. O sorridente chega bêbado quase todas as noites, arrastando para dentro de casa uma horda de amigos igualmente bêbados. Coloca os ombros largos na porta, a fechadura range, desmanchando-se. Sorrindo sempre, obriga d. Zulmira a levantar, fazer sala para os amigos e servir o licor de ameixa, preciosidade guardada a sete chaves, reservada para as visitas especiais. Sorrindo, dá um safanão de carinho em d. Zulmira, senta-a em seu colo e ordena, aos berros, que ela acompanhe as monótonas canções que os amigos grunhem entre um trago e outro.

Quando todos se retiram, ele reclama de d. Zulmira, acusando-a de não ter servido com boa vontade. Ela jura que não, ajoelha-se, chora. Tudo em vão: lá vem bordoada, pontapé, palavrões. Ela segura os óculos, cambaleando. Ele, sem parar de sorrir, batendo, batendo, batendo…

*** *** *** *** ***

Na Sexta-Feira da Paixão, d. Zulmira sai de casa para comprar cigarro. O companheiro fica na cama, estirado. Um cutelo no crânio, uma chave de fenda no ombro largo. Na boca, o indefectível sorriso aberto, um punhal cravado no meio.

Ronaldo Rodrigues

Num clic! (crônica de Ronaldo Rodrigues)


Existem pessoas loucas por tecnologia. Você sabe disso, talvez até seja uma. Para essas pessoas, não basta que o celular transmita e receba a voz humana. O celular tem que ter GPS, gravar imagens, editar, fotografar, fazer massagem, fritar ovo, recitar Shakespeare e tomar conta das crianças.

Meu amigo Francis Ney, também conhecido como Download-Man, o Rei do Upgrade, autêntico representante da geração pontocom, é uma dessas pessoas. Louco por tecnologia, Francis Ney ficou sabendo da última palavra em detecção de câncer de próstata, o que lhe acendeu a vontade de procurar um proctologista e se inteirar da novidade.

Beirando os quarenta anos, Francis Ney há muito resistia à necessidade de saber como anda sua próstata. Ele sabe da importância disso, mas a perspectiva de ser apalpado intimamente por outro homem mexe com sua índole de machão latino. E a gozação dos amigos não dá trégua:

– Não vai te apaixonar!

Foi quando chegou a Francis Ney, através da internet (é lógico!), a alvissareira notícia sobre os métodos atuais, que evitam qualquer contato físico com o médico. A tecnologia avançou tanto que o exame é feito através da tela do computador.

O chip da curiosidade faiscou nos neurônios de Francis Ney e lá foi ele para o exame de próstata. O médico explicou como é feito o exame:

– Muito bem, seu Francis Ney. O senhor deve ter ouvido falar coisas horrorosas sobre o exame de próstata, mas verá como tudo ficou simples depois que inventaram este aparelho.

Francis Ney, com brilho nos olhos, contemplou o aparelho, que lhe pareceu uma câmera de vídeo.

– Parece uma câmera de vídeo.
– Isso mesmo. É uma câmera de vídeo. Aliás, uma super-hiper-mega-power-câmera! E o senhor terá o privilégio de ser o primeiro cliente a usar esta avançada tecnologia.

Francis Ney ficou maravilhado com mais um gadget*. Totalmente alucinado por engenhocas modernosas e avançadérrimas, foi logo enchendo o médico de perguntas:

– Qual é o aplicativo que o senhor usa? Qual é a extensão? Esse programa roda no Windows 98?

O médico vibrou com a curiosidade digital do cliente e deu uma risadinha um tanto neurótica. Examinando mais atentamente o aparelho, um pensamento passou pela superantenada e cibernética cabeça virtual digital & tal de Francis Ney:

– Não me diga que o senhor mete esse negócio no nosso… Quer dizer, no meu…

O médico continuou rindo e explicando:

– Tem gente que até gostaria, mas não é assim. Trata-se de um procedimento muito simples. O senhor fica de quatro e esta câmera faz todo o serviço.

– Continuo sem entender. E olha que sou fera nessas máquinas. Vou sacando logo tudo. Destrincho o manual do usuário. Em suma: eu mato a pau!

O médico riu mais uma vez e Francis Ney foi achando aquela risada cada vez mais sarcástica. O médico prosseguiu em sua sorridente explicação:

– O senhor fica de quatro e expõe toda a sua região glútea. Aí eu aciono o meu equipamento.
– Epa! Como assim?
– Calma! O equipamento a que me refiro é a câmera aqui ao meu lado. A sua… Bom, vamos falar de uma forma menos científica: a sua bunda será filmada, capturada, scanneada pela câmera. A imagem de seu orifício anal irá para o monitor do computador. E eu, com o mouse, farei o exame. É só levar a seta ao centro do alvo e poderei saber se o senhor tem ou não câncer de próstata.

Francis Ney não conseguia, e nem queria, esconder seu contentamento com mais uma sacada dos nossos cientistas:

– Muito interessante. Sem contato com o seu dedo e sem dor.
– Se o senhor sentir dor é porque tem câncer de próstata. E, como já notei que o senhor gosta desses avanços, tenho uma ótima notícia. Em muito breve, talvez daqui a três meses, a tecnologia médica terá avançado tanto que será possível fazer a intervenção cirúrgica desse mesmo modo. Com um simples clic! de um mouse.

Acentuando sua paixão por tecnologia e a vontade de querer ser o primeiro em tudo, os olhos de Francis Ney brilharam de novo. Todos os olhos (se é que me entende!). E falou para o médico, com a mesma risadinha sarcástica:

– Será que daqui a três meses eu já terei câncer de próstata?

* Gadget: termo em inglês que significa geringonça, dispositivo, equipamento com propósito e função específica, prática e útil no cotidiano. São comumente chamados de gadgets dispositivos eletrônicos portáteis como PDAs, celulares, smartphones, leitores de MP3 etc.

Ronaldo Rodrigues

Em duas rodas (crônica de Ronaldo Rodrigues)


Você já deve ter visto a cena: o pai, a mãe e o filho (às vezes, dois) se equilibrando numa bicicleta já bem idosa.

Em Macapá, podemos ver um desfile assim. E não se trata de família circense. É a família comum que usa esse tipo de transporte e vai atravessando os anos. As maneiras de cidade grande, pelo menos no caos do trânsito, já estão chegando a Macapá, mas a bicicleta vai teimando em sua jornada.

Para todo mundo

Pode-se ver a família citada acima e também as almas solitárias. Zé Afonso é uma delas: “Eu não troco a minha magrela por nada. Ela me leva para todo lugar, pro trabalho e pro lazer. É um meio de transporte que não polui. E ainda me ajuda a descolar umas gatas”, finaliza Zé Afonso, mostrando que sua alma solitária também aprecia uma boa companhia.

Bem cedinho

Mal os raios de sol começam a inundar a cidade já encontram dona Glauci Pinheiro dirigindo sua velha bicicleta. Ela sai cedinho de casa, no Buritizal, e vai abrir sua barraca na feira do outro lado da cidade, no canal do Perpétuo-Socorro. “É ela que me leva todo dia. Não nega fogo. Tá até precisando de uns reparos. Vai entrar um dinheirinho extra e ela vai pra oficina ficar bem bonita”.

Cuidado com os ladrões

“Eu percorro a cidade toda no meu camelo. Gosto de andar pela orla, olhando o riozão sem fim”, diz Manoel Ribeiro Jr. “Mas tenho cuidado com aquele pessoal que dá o maior valor em bike, mas não gosta de comprar. Prefere a dos outros”.

Manoel refere-se aos ladrões de bicicleta. O índice de roubos em Macapá é grande e ele não descuida: “Fico de olho se a rua não está muito deserta. Nessas horas, eles aproveitam. E mandei reforçar o cadeado. Tem que tomar essas precauções. Já vi eles levando com cadeado e tudo”.

Ciclovias?

“Seria uma boa ideia”, diz Francisco Sacramento, mais um ciclista que reclama ação das autoridades. Segundo ele, as ciclofaixas, que as tais autoridades apelidam de ciclovias, não são apropriadas. Estreitas e esburacadas, são muitas vezes ocupadas por carros estacionados. “Aliás,” – prossegue Francisco. – “por falar em carros, nós, que usamos a magrela como meio de transporte, temos que tomar muito cuidado. Alguns motoristas nos veem como verdadeiros inimigos e jogam os carros pra cima de nós. É um absurdo, mais um dos absurdos”.

A grande irmandade

Outro dia, estando no terraço de casa, vi uma multidão de ciclistas passando pela rua lá embaixo. Alegres e bem dispostos, pessoas de diferentes idades, homens e mulheres se ocupando de uma bela noite de aventuras. Imaginei uma grande irmandade de ciclistas pedalando por entre as nuvens, rumo ao infinito.

Ronaldo Rodrigues

Cada louco com sua coleção (crônica de Ronaldo Rodrigues)


Tem gente com cada mania! Uns, como George W. Bush, e outros presidentes dos Estados Unidos, como Ronald Reagan, tinham a mania clássica dos cientistas malucos de desenho animado: queriam, a todo custo, dominar o mundo (rá! rá! rá!).

Outros, mais normais (dentro de certos padrões), se contentam em colecionar coisas. O que leva um ser humano a tal prática é um dos enigmas da humanidade. Desde Imelda Marcos (que melda!), ex-primeira-dama das Filipinas, com seus milhares de sapatos, até o popstar inglês Elton John, contumaz colecionador de óculos, os malucos que colecionam não precisam de nenhum elemento motivador. Eles colecionam e pronto. Ponto.

Vejamos uma galeria desses tipos. Uma coleção deles:

Giz de bilhar

O cartunista Ronaldo Rony, péssimo jogador de bilhar, costuma levar para casa, depois de apanhar feio dos adversários mais desprezíveis, o giz que se usa para passar na ponta do taco. Como ele não consegue ganhar mesmo, sua vingança consiste em roubar (tem que ser roubado) uma grande quantidade de giz, que ele ostenta em sua estante, como se troféu fosse.

Nuas e cruas

O designer gráfico Joelson Dutra, às do bilhar, não quer saber desse jogo quando o assunto é coleção. O que ele guarda, com todo o carinho e tesão, são fotos e vídeos de mulheres nuas recolhidos da internet. Ele se gaba de possuir o maior acervo de seios de todos os tamanhos e genitálias nas posições mais perturbadoras. Ele afirma que essa mania se deve ao fato de sempre ter sido preterido pelas mulheres. Na tela do monitor, garotas sensuais sorriem para Joelson, que se regala no espaço virtual com aquilo que o mundo real sempre lhe negou.

Engolindo sapo

Paracildo Nogueiras coleciona sapos. São esculturas, pinturas e miniaturas. Os materiais variam: gesso, papel, madeira, pano, mármore… Uma estante inteira enfeitada com diversos espécimes desse (para alguns, repugnante) bicho. Paracildo justifica sua predileção por sapos: “Em minha profissão (ele não revela que raio de profissão é essa), preciso engolir sapo todo santo dia. Aí, quando isso acontece, recorro à minha coleção. Fico passando a mão na cabeça dos sapinhos e jurando, em vão, para mim mesmo: – Este é o último sapo que eu engulo… Este é o último sapo que eu engulo… Este é o último sapo que eu engulo…”. Depois disso, me acalmo e fico preparado para engolir mais sapos no decorrer do período”.

Colecionar é imperativo

O baixinho Romário colecionava gols e carros. Carlos Humberto coleciona selos, uma das coleções mais comuns. Mauro Mathias coleciona namoradas. Entre nossos entrevistados, descobrimos pessoas que colecionam lápis com ponta mordida, sabonetes de motel com pentelho, canecas de chopp das mais horrendas formas e até calcinhas manchadas com sangue de menstruação. Carlos Nero coleciona isqueiros alheios que, distraidamente, coloca no bolso e esquece. Para ele, foi criada uma nova classificação de criminoso: o pirocleptomaníaco.

E para finalizar esta crônica

Ficamos com a coleção de desafetos, construída caprichosamente pelo Homem-Rancor (um dia revelaremos sua identidade secreta) ao longo de mais de 50 anos. A outra é a coleção de amigos, cultivada pelos usuários de redes sociais, com seus mais de 300 amigos virtuais. Para eles, amizade dispensa envolvimento emocional, afetivo. O que importa é a quantidade.

Ronaldo Rodrigues

Na Baleia (crônica do meu amigo Ronaldo Rodrigues)


Acordei naquele dia ainda bêbado. Demorei a perceber que estava dentro da baleia. Estômago de baleia, vocês sabem, é muito pequeno, parece um apartamento japonês. Então eu estava meio espremido no meio do monte de plâncton que tinha sido a última refeição da baleia. Pensei por alguns momentos sobre como sair dali. Mas depois, como a preguiça pós-bebedeira era quase maior que a baleia, me deixei ficar naquele remanso. 

Aí pensei nas figuras que já estiveram dentro de uma baleia. Pinóquio e Gepetto estiveram dentro da baleia Monstro. Jonas esteve por três dias dentro de um peixe imenso que a Bíblia não diz que é baleia, mas eu digo. Se bem que baleia não é peixe, é mamífero. 

Sou teimoso nessas coisas: se baleia vive no mar então é peixe. Aí vocês podem dizer: esponja vive no mar e não é peixe. Eu respondo que esponja vive é no supermercado antes de parar na pia de alguma dona de casa. Mas isso é bobagem de minha parte. 

Devo estar perturbado pelo fato de me encontrar dentro de uma baleia. Tento lembrar de como, bêbado, vim parar aqui. Aos poucos vou montando o cenário. Agora já consigo colocar alguns personagens neste cenário. 

São meus amigos, que bebiam comigo na noite anterior. Onde será que eles estão agora? No estômago de outra baleia? Devem estar se divertindo, os safados! Agora me lembro. Estávamos num navio celebrando a primeira viagem desse navio. Lembro perfeitamente agora de alguém discursando sobre a impossibilidade de aquele navio naufragar. O que acabou de entrar pela boca da baleia? Uma folha de jornal. Vejamos o que diz esse jornal. 

Ah! Agora tudo faz sentido. É isso mesmo! Vejam, senhores, a manchete do jornal: “Hic! Hic! Hic! Titanic vai a pique”. Bingo! Lembrei de tudo! Estávamos na viagem inaugural do Titanic. Sentimos o impacto de uma colisão, pessoas correndo desesperadas e nós só bebendo. 

Vejo que sobrevivi, talvez graças ao meu estado de embriaguez, que atraiu esta baleia alcoólatra, que me engoliu como uma dose de uísque e me livrou de morrer afogado. Dos males, o melhor. Vou ficar por aqui mesmo dentro desta baleia. Quem sabe daqui a pouco ela engole a Kate Winslet. Saúde! Ui minha cabeça!

Ronaldo Rodrigues

O papa no Brasil, com a permissão dos Senhores do Mundo (crônica de Ronaldo Rodrigues)

O papa vem fazendo sucesso na terra brasilis. Com status de popstar, Francisco esbanja simpatia e carisma. E tem mostrado muita paciência também, do contrário não teria suportado Luan Santana cantando para ele.

A visita do papa me fez pensar umas coisas. Como estou lendo um livro que trata de planos esotéricos, conspirações cósmicas e outras maquinações ao longo da História, fico imaginando como se deu a mudança dos papas.

Teorias da conspiração existem aos montes, também me permito arriscar algumas. Então, lá vai:

A Igreja católica estava mal das pernas. Inúmeros escândalos de pedofilia. Os fiéis se mostrando não tão fiéis assim e debandando para outras religiões. E as outras religiões crescendo mais e mais, como as igrejas evangélicas e o islamismo. O quadro era desolador. Era preciso manter as ovelhas e arrebanhar mais algumas. O jeito era dar uma repaginada, um upgrade no líder da Igreja.

Os Senhores do Mundo, aqueles que movem as peças do xadrez da História, se reuniram e resolveram mudar de papa. Trocar aquele velhinho conservador, intelectual, elitista, por um mais jovem, de cabeça mais arejada, que em vez dos sapatos Prada (afinal, o diabo veste Prada) calçasse as sandálias do pescador, usasse a humildade como símbolo.
– E vamos colocar um argentino, só pra incrementar mais a coisa. Pior do que está não fica, já disse nosso patriarca, o palhaço Tiririca. – Disse o mais sábio dos Senhores do Mundo.

Os Senhores do Mundo continuaram traçando seus planos:

– O velho papa ocupará o posto de papa emérito. Ele vai gostar desse título, já que gosta de coisas pomposas.
– O novo papa fará opção pelos mais pobres, por isso sugiro que seu nome seja Francisco.
– Apoiado! Ele recusará alguns privilégios, como o trono de ouro. Só não vamos colocá-lo numa manjedoura porque seria um sacrilégio.
– Vamos aproveitar a Jornada Mundial da Juventude para fazer o novo papa bombar. O Brasil vai ser um ótimo teste de popularidade.
– Ainda mais que o novo papa recusará segurança. Já até escrevi o capítulo em que ele diz que quem fará a segurança do papa no Brasil será o povo.
– Muito bem! E eu escrevi o capítulo em que ele diz que o papamóvel não será o blindado. O novo papa não permitirá nenhuma barreira entre ele e o povo.

– Isso mesmo! Vamos resgatar a autoestima dos nossos fiéis.
– E fazer a Igreja Apostólica Corintiana, digo, a Igreja Apostólica Romana retomar o seu papel na História.
– Vamos à ação, senhores!
– E viva la revolución! Desculpem, senhores! Foi um momento de euforia. – Disse o mais exaltado dos Senhores do Mundo.

Aguardemos os próximos lances.

Eis aí a minha colaboração para as teorias da conspiração. Uma a mais, uma a menos não vai fazer diferença. Ou vai?

Ronaldo Rodrigues

A mulher do traficante (conto de Ronaldo Rodrigues)

O traficante que atendia ao personagem desta história vinha de moto, com a mulher sempre acompanhando. Ele ligava, eles vinham. Os dois, sempre os dois.

Uma noite ele recebeu a ligação da mulher do traficante perguntando se queria alguma coisa.

– Hoje não. Estou sossegado, pensando em dormir. Além disso, estou sem dinheiro e sem vontade de drogas.
– Tudo bem. É que vou encerrar o expediente cedo hoje.
– Tá legal. Fica para outra vez. Obrigado pela atenção.
– Ok.

Meia hora depois, nova ligação. Era a mulher do traficante:

Oi. Tem certeza de que não quer nada?
– Tenho. Obrigado.

Em quinze minutos, ela ligou de novo:

– Eu vou abrir o jogo: eu quero fumar hoje e não gosto de fumar sozinha. Eu posso ir aí pra sua casa?
– E o seu marido? Por que não fuma com ele?
– Ele está de viagem. Foi buscar o produto. Posso ir?
– E ele não vai achar estranho, você fumando com um cliente?
– Ele nem vai saber. E ele sabe que eu nunca faço isso. Posso ir?
– Eu já disse que tô sem grana.
– Escuta. Você tá inventando muita coisa. Tá acompanhado?
– Não.
– Não se preocupe com grana. Vai ficar tudo por minha conta. Posso levar umas cervejas?

Ela chegou e foi logo apresentando o material:

– Vai preparando aí que eu vou colocar a cerveja na geladeira.

Ela voltou e os dois começaram a fumar. Ela estava meio calada, mas ele a deixou à vontade. Em algum momento, ela iria começar a falar. Agora, por exemplo:

– Eu tava muito a fim de fazer uma farrinha hoje.
– Me explica melhor. Pra onde foi seu marido mesmo? 
– Foi viajar pra fazer duas coisas: buscar a mercadoria e pensar um pouco na nossa relação.
Ele ficou em silêncio, ela continuou:
– O nosso casamento não anda muito bem. Não deixei de gostar dele, mas a coisa tá esquisita.
Ele permaneceu em silêncio, ela continuou, estava a fim de falar:
– Ele tá muito frio, distante… Ah, desculpa! Podemos falar de outra coisa. É que eu tô a fim de desabafar, mas não quero alugar ninguém com isso. A gente se conhece tão pouco.
– Pois é. A gente se conhece tão pouco e você quer desabafar comigo. Obrigado pela confiança. Pode falar, tá precisando. Fique à vontade.
– Ah, legal. Eu preciso falar mesmo. O nosso amor tá morno. Quase não rola sexo. Ontem, quando ele foi viajar, nós transamos. Mas foi um desastre. Ele sabe que tá ruim, por isso resolveu antecipar a viagem. Assim ele pega o produto e aproveita pra refletir um pouco.
– E essa vontade de farrear tem a ver com isso?
– Também. Me deu vontade de fugir um pouco da rotina. Dificilmente eu faço farra. E quando acontece é com ele. Queria algo diferente. Sem ele. Eu achei que podia fazer essa farra aqui. Lhe acho tão discreto, na sua.
– Claro. Pode vir quando quiser. Tá liberado. Quer dizer, enquanto ele estiver viajando…

Ela abriu uma garrafa de cerveja, bebeu com ímpeto. Ele notou que ela precisava falar mais daquilo, pra desencanar.

– Você tá tensa. Se quiser falar mais da sua relação pode falar.
– Eu tô carente, sabe? Acho que você já percebeu. Eu preciso de carinho, de um abraço.
– Olha, também acho que você tá precisando de um abraço. Eu posso oferecer esse abraço, mas preciso saber se você não vai achar que estou me aproveitando da situação.
– Claro que não vou pensar isso.
– Posso, então, lhe dar um abraço?
– Claro.

Eles trocaram um abraço bem afetuoso. Claro que ele estava com uma vontade danada de se aproveitar da situação. Ela era gostosa de abraçar. Aí ele sentiu lágrimas no peito, onde o rosto dela estava aninhado:

– Desculpa eu chorar. Eu sou mesmo uma boba. Eu queria que tudo se acertasse. Eu não queria trair ele…

Aí ela levantou o rosto e olhou bem dentro do olho dele. E falou com a voz trêmula:

– Mas tô com um tesão enorme.

O abraço foi ficando mais quente. Ele deu um cheiro no pescoço dela e sentiu o arrepio que aquilo provocou. Ela estava tremendo quando ele falou:

– Seu abraço é muito gostoso.
– O seu também.
– Aposto que tudo em você é gostoso. Quero provar mais.

Como resposta, ela encostou os lábios nos dele. Trocaram um beijo bem suave. Depois, foi ficando mais quente. Se abraçaram com volúpia, com força, vontade mesmo. Ele foi beijando o pescoço, o ombro, chegou aos seios. Tirou a blusa dela, enquanto ela tirava a camisa dele. Ficaram nus.

Transaram várias vezes aquela noite, entre um baseado e outro, entre uma e outra cerveja. Ela estava realmente carente.
***   ***   ***

Ela passou a visitá-lo todas as noites. Encerrava as entregas à meia-noite e partia para a casa dele. Ficavam até cinco, seis horas da manhã. Bebiam, transavam, fumavam, transavam, cheiravam, transavam. Foi um teste de resistência para ele. Uma noite ela chegou com um pacote de vinte camisinhas:

– Quero usar todas elas. Se garante?
– Se não garantir, tenho mais dez aí!
Usaram as trinta.

Era assim a rotina. Uma semana que pareceu dois meses, de tantas drogas e tanto sexo. Até que ela ligou, meio aflita:

– Ele vai chegar hoje à noite. Precisamos nos ver agora, de tarde. Pode ser? Não vale dizer que não.
– E se ele chegar antes? Vai lhe procurar e aí…
– Fica frio que eu sei o que faço. Vou praí já. Quero fazer tudo o que posso agora. Vai ficar difícil pra gente se encontrar. Tchau.
– Escuta…

Ela desligou. Ele ficou aflito. Nunca tinha se envolvido com mulher de traficante. Achava perigoso. Ela era muito gostosa e tal, mas ele não estava a fim de bancar aquele jogo. Quando ela chegou, o clima não era o mesmo dos encontros anteriores. Ela o abraçou e ele recuou:

– O que foi?
– Sei lá. Acho que tô com medo dessa situação, medo do seu marido.
– Mas ele não vai saber de nada. Ficamos juntos agora e depois veremos como fazer pra se encontrar.
– Vocês estão sempre juntos, vocês trabalham juntos.
– Isso tem jeito. Às vezes ele sai sozinho pra fazer entrega. E geralmente é pra muito longe. 

Ele fica duas, três horas fora. Vem cá. Vamos pensar nisso depois. Eu tô louca por você!
Aí que ele ficou mesmo apreensivo. Não pensava num caso agora. E logo com a mulher do traficante, que estava apaixonada. E ele desconfiava que também estava apaixonado.
Transaram, mas ele estava muito tenso. Não foi legal. Ela sentiu e foi embora, deixando um recado que ele entendeu como uma ameaça:

Acho bom você ficar frio. A coisa não é tão complicada assim. Amanhã a gente se fala.

Ele não conseguiu dormir. Passou a noite pensando o que fazer para se livrar dessa. Arrumou as malas, desarrumou, tornou a arrumar. Resolveu ficar, não tinha mesmo para onde ir. Além do mais, não tinha feito nada de errado. Só cedeu aos encantos de uma mulher que precisava ser tratada como mulher. Só isso. E o traficante não sabia de nada, ninguém sabia de nada. Será que ninguém sabia de nada mesmo?

Conseguiu dormir pelas sete da manhã, mas foi acordado pela mulher do traficante. Ela chegou junto com o traficante, que foi logo falando:

É o seguinte. Eu tô sabendo do lance de vocês. Ela me contou tudo, com todos os detalhes.

Ele ficou lívido:

Escuta, eu…

O traficante o interrompeu:

Você não tem culpa de nada. Nem ela. O culpado sou eu, que não dei a atenção que ela precisava. Tá tudo certo, parceiro. O meu rolo com ela já tava no fim mesmo. E eu conheci uma pessoa nessa viagem. Vou ficar com ela, quer dizer, com essa pessoa, quer dizer, com ele. É um homem. Descobri que o meu negócio é esse. Então eu tô aqui pra dizer que você pode ficar com ela, se quiser. Ela é dona de metade da mercadoria que a gente negocia. Você não vai ter despesa, ela se banca.

O traficante foi embora e deixou a mulher ali. Ela tinha uma pacoteira de droga:

Isso aqui dá uma boa grana. Vamos vender e multiplicar essa grana. E vai ficar bastante pro nosso consumo. Mas, antes de qualquer coisa, vamos desforrar aquela transa fuleira e dar uma trepada daquelas!

De uma tacada só ele virou traficante. E ela continuou sendo a mulher do traficante.

Ronaldo Rodrigues

Reflexões sobre o tal do mercado (crônica de Ronaldo Rodrigues)


Por que ainda não foi inventado o palito de fósforos de duas cabeças? Seria prático e econômico. Você acenderia o palito por um lado e ainda restaria o outro lado. Simples. O design não ficaria comprometido. Imagine um palito parecido com um cotonete, do tamanho do palito, lógico. Não é difícil pensar algo assim. Deve ser pura má vontade. É o mercado que quer que a gente gaste o palito uma só vez, para vender mais caixas de fósforos.

Dizem que os remédios realmente eficazes não são postos à venda pelo fato de que acabariam com o mercado. A indústria farmacêutica necessita de doentes. São eles que mantêm o mercado. Para eles o mercado reserva paliativos. A doença não pode ser curada, senão os doentes não precisariam comprar mais remédios. E aí o mercado estancaria. Sempre o tal do mercado. E esses remédios são testados nas populações pobres da África, que servem de cobaias para esses macabros experimentos.

Já li que quando há uma grande safra de algum produto, cebola, por exemplo, a maior parte é jogada fora, para manter o preço nas alturas. Para o tal do mercado, é melhor jogar fora do que disponibilizar o produto para pessoas de menor poder aquisitivo. Aliás, pessoas de menor poder aquisitivo não têm poder nenhum para o mercado. O mercado não existe para favorecer os desfavorecidos. Existe para mostrar a eles que são mesmo desfavorecidos.

Começo a pensar nisso e fico preocupado. O mercado, que tudo ouve e que tudo vê, pode não gostar deste texto e ordenar que eu seja eliminado. Acho até que já começou a fazer isso. A maior parte das coisas que o mercado apresenta eu não posso comprar. Sim, sou uma pessoa de baixo poder aquisitivo. Dizer aquisitivo é força de expressão, pois não sou capaz de uma aquisição sequer.

Para o tal do mercado não basta que ele entupa as vitrines de artigos que jamais conseguirei comprar. Ele vai acirrar a perseguição, vai me fazer assumir a mendicância, vai acabar com as ilusões de ter um carro, uma casa, um emprego e um bom salário. Acho que o mercado começou a engendrar esse plano há muito tempo, quando me fez não ter nenhuma dessas ilusões acima citadas.

E isso tudo começou com uma simples inquietação diante de um palito de fósforos de uma só cabeça, coisa que já deve ter inquietado muitas outras pessoas. Vou parar de pensar nessas coisas. Deixa o palito com uma cabeça só. Desculpa aí, seu mercado. Foi mal.

Ronaldo Rodrigues