Uma mulher me segue

Crônica de Ronaldo Rodrigues

1. Existe uma mulher me seguindo

Por todos os lugares que vou, ela me segue. Leva tão a sério essa necessidade de me seguir que chega a percorrer em pânico lugares em que jamais fui.

Na certa, não há nenhuma finalidade filosófica ou estratégica nisso tudo. Pode ser só de sarro. Ou falta do que fazer. Sabe lá o que é que rola na cabeça das pessoas. Tá todo mundo meio pirado nesse começo de milênio. De repente, alguém cisma de seguir alguém e começa a seguir mesmo.

2. Quem dera, meu Deus!

Uma admiradora, quem sabe? Talvez seja pretensão da minha parte, mas que eu posso fantasiar um pouco, posso. Ah se posso!

Uma mulher bastante tímida, porém meticulosa, me segue desesperadamente e espera o momento propício para dar o bote, me colocar em xeque, surgir em sua forma mais cálida.

Tomara que ela me tenha flagrado em alguma atitude autêntica e grandiosa dentro da minha insignificância. Ou que, pelo menos, não tenha percebido o mau-humor que tento disfarçar.

3. Aviso a essa mulher

Se assim for, quero que ela saiba que num domingo de sol (ou de chuva), no fim da tarde, num mês de outubro desses da vida, eu deva estar completamente vulnerável, com a guarda baixa, espírito aberto às maiores surpresas, louco para receber uma boa notícia. 

Ela poderá surgir e tentar me convencer de tudo o que queira, com seu estoque ilimitado de novas e belas palavras, gestos e caras.

Sem pressa alguma, conversaremos milhões de detalhes quotidianos até atingirmos o ponto principal, ainda que eu ache que todos os pontos sejam principais. Aí, então, a história do amor, da humanidade, do pensamento terá mudado em alguma coisa. Será mais feliz, mais verdadeira.

4. Se o caso for outro…

Mas se não for nada disso, digo a essa mulher que eu não mereço a menor atenção. Sou um cidadão omisso, eleitor relapso, péssimo jogador de futebol. Não presto pra nada, muito menos lhe satisfazer. Nunca compus uma sinfonia, nunca descobri a cura de uma doença, nunca inventei algum aparelho que melhorasse a vida das pessoas. Não tenho a menor importância. Pare de me seguir. Ponto final.

O primeiro poema do ano

Conto de Ronaldo Rodrigues

O tinteiro, a pena e o papel estavam lá, à minha frente, sobre a pequena escrivaninha, herança de meu avô. Eu estava tranquilo e os ruídos que chegavam da rua não me perturbavam. Eram os fogos recebendo o ano novo. Eu tinha marcado encontro com a solidão e estava ali no meu quarto, sozinho no mundo, com a firme intenção de escrever o primeiro poema do ano.

Eu procurava uma maneira de iniciar o desafio que me foi imposto pela vontade de extravasar os sentimentos por tanto tempo guardados no peito. Naquela madrugada de festa para o mundo, eu iria escrever um poema.

Eu nunca havia escrito um poema antes e aquela súbita ideia me pareceu absurda. Ela me atingiu no ônibus que vinha lotado de passageiros suados e cansados, assim como eu. A única diferença entre eu e os outros passageiros é que eles iriam tomar um belo banho e se preparar para a festa do ano-novo. Eu não. A minha intenção era me trancar no meu quarto de miséria e ficar só, irremediavelmente só.

A vontade de escrever um poema mudou um pouco o meu estado de espírito. O ônibus era trepidante e barulhento, mas o desejo de escrever um poema me fez flutuar ao som de uma linda sinfonia e nem notei se a viagem foi longa.

Tomei um banho demorado, curtindo as bolhas de sabão que dançavam à minha volta, e observei, pela primeira vez, os desenhos herméticos que as idas e vindas das formigas formavam no branco do azulejo.

Saí do banheiro e vesti a roupa mais simples. Fui ao minúsculo quintal e reguei a única planta que eu cultivava. Pela primeira vez, também, conversei com ela. Depois, alimentei os cães e gatos vadios que, à vezes, me visitavam. Eram as únicas visitas que eu recebia. Mudei a disposição dos poucos móveis do quarto e coloquei uma cortina na janela.

Dispensei computador e essas parafernálias eletrônicas. O meu primeiro poema seria escrito como se fazia antigamente, com tinteiro, pena e papel.

Lá fora os foguetes espocavam e as pessoas se cumprimentavam. E eu estava ali, em total solidão, com a firme determinação de escrever o primeiro poema do ano. O primeiro poema da minha vida.

– Temos Rei!

Conto de Ronaldo Rodrigues

No ponto seguinte embarcou o cego. Movia-se com tal desenvoltura que se poderia jurar não se tratar de um cego. Orientava-se com um tosco cajado e trazia na mão direita uma espécie de caneco de barro, um graal:

– Eu me chamo Samuel! Por favor, não tenham medo de mim! E ouçam-me!

Samuel falava de maneira extremamente solene, uma característica marcante, que ganhava maior autenticidade ao entrar em choque com sua pobre indumentária: uma suja túnica esfarrapada até as últimas fibras. A velha túnica e o graal eram seus únicos bens. Samuel prosseguia sua cantilena:

– Venho das páginas de um livro muito antigo. Estou aqui para sagrar o Rei!

Eu já sabia da existência de Samuel através de algumas pessoas minhas conhecidas que comentavam a respeito de um mendigo cego, visto todos os dias nos ônibus da cidade, à procura de um Rei:

– Este povo ingrato, ao qual tenho a missão de guiar, resolveu ignorar as palavras daquele que me enviou. Não querem mais o Rei semeador de jardins espirituais. O Rei utópico, o Rei onírico, não querem mais! Querem um Rei que possam tocar com as mãos e lhe beijar os pés! Querem um Rei para lhe pagar tributo e esperar sua proteção, sua misericórdia!

Agora eu constatava a presença messiânica de Samuel, ouvia suas palavras, que pareciam por demais lúcidas porque saídas da boca de um louco bêbado.

Num certo momento, Samuel ergueu o graal e um silêncio arrasador foi sentido dentro do ônibus, como uma presença física:

– Vejam todos! Dentro deste humilde caneco de barro eu trago o óleo perfumado que irá ungir o Rei, que está entre vocês, passageiros deste ônibus urbano, que percorre a imunda periferia desta metrópole maldita!

Samuel percorria o ônibus, procurando o Rei, olhando detidamente cada passageiro. Ninguém escapava daquele olhar opaco, parado nas órbitas, perdido no caos, mas que tinha uma iluminação diversa de qualquer outra luz.

Eis que o olhar de Samuel parou exatamente em minha direção. O meu olhar tentou fugir, por não se considerar digno de um olhar tão sábio. Nesse momento, Samuel ganhou grande vivacidade e falou alto, bem alto:

– Encontrei! Encontrei o que tanto procurava!

Fiquei atônito e isso se estampou em meu rosto e em todo o meu corpo. Senti que todos os olhares se fixaram em mim. Não só os olhares dos que viajavam no ônibus. Senti que era observado por todas as pessoas que existiam no mundo, mesmo as que já tinham ido e as que ainda não tinham chegado.

Samuel ergueu novamente o graal e derramou todo o seu conteúdo na minha cabeça. Um óleo que exalava o mais agradável odor que já pude sentir. A voz de Samuel assumiu proporções acústicas de uma gigantesca trombeta:
– Temos Rei! Temos Rei!

Imediatamente, o trânsito parou e todas as pessoas no ônibus se ajoelharam diante de mim. Fato esse seguido por todos os que se encontravam nos outros carros e também pelos pedestres que enchiam as ruas, pessoas que estavam nos edifícios, nos comércios, nas casas.

Seguindo essa corrente, percebi que já o bairro inteiro fervilhava em aclamações ao Rei. E não apenas o bairro em que estávamos, mas todos os bairros e toda a cidade, assim como todas as cidades. E não demorou uma fração de segundo para o país inteiro e o mundo todo se fazer ouvir, numa só voz:

– Termos Rei! Temos Rei! Temos Rei!

Quando já havia percebido que não se tratava de um sonho e investido de toda a responsabilidade e autoridade que aquele cargo me conferia, desci do ônibus com a temerária tarefa de governar aquela gente instável, desordenada e confusa.

Samuel, designado por sagrada decisão daquele que o enviou para me coroar, seria meu conselheiro supremo. Ele havia, no momento da revelação do meu destino, recuperado a visão.

Sentei no trono triunfalmente, aclamado pela infinita multidão de miseráveis, apenas uma parcela do povo que eu deveria conduzir daquele momento em diante, sem nunca mais poder olhá-lo novamente, pois no exato momento em que Samuel recuperava a sua visão eu perdia a minha. Para o resto da vida.

Sonhos meus, sonhos meus…

Crônica de Ronaldo Rodrigues


Ando tendo uns sonhos tão loucos que resolvi escrever sobre eles. Talvez pra exorcizar. Então, vamos lá:

Sonho 1

Era um congresso ou coisa parecida do sindicato dos bancários. Um homem e uma mulher debatiam no centro da arena. Eram os representantes das duas chapas que concorriam às eleições. O nível do debate foi o que me chamou a atenção e me fez acreditar que daria uma crônica. Foi mais ou menos assim:

A mulher:

– A nossa chapa é a única possibilidade de mudança!

O homem:

– Que mudança nada! Vocês estão na presidência do sindicato há dez anos e nunca mudou nada! Que porra de mudança é essa?

A mulher:

– Olha como fala comigo!

O homem:

– Eu falo do jeito que eu quiser, porra! Vem enganar a gente falando de mudança! Mudança porra nenhuma! Mudança é o caralho! Só a nossa chapa representa mudança!

A mulher, ligando o laptop:

– Ah é? Olha só! Eu vou te detonar no facebook, hein!

Quando chegou nesse ponto, eu desliguei o sonho, pra não ver o porradal em que aquele debate ia terminar.

Sonho 2

Estávamos eu, o meu amigo Ribeirinho e, acreditem, o ator Ney Latorraca bebendo num bar. Um bar suspeito, já que o Ribeirinho estava lá e o Ney Latorraca também. Eu estou acima de qualquer suspeita. O sonho é meu e devo ter alguma regalia.

Pois bem. O Ribeirinho, achando o bar muito suspeito para o seu gosto, deu um jeito de sair fora, usando a desculpa de que ia falar com um amigo. Depois disso, o Ribeirinho só foi aparecer bem mais tarde, quando eu já me preparava para encerrar aquele sonho.

Ficamos eu e o Ney Latorraca bebendo no balcão. Eu pensando: O que é que esse cara tá fazendo no meu sonho? Tudo bem, deixa ele lá, olhando para os bofes que apareciam. Só fiquei preocupado com o fato de acharem que eu também estava caçando bofe. Foi quando apareceu o Ginoflex, numa camisa colorida, de óculos escuros, muito bem na foto. O Ney olhou pra mim e eu olhei pro Ney, estranhando aquela aparição:

– Afinal de contas, – disse o Ney, com aquela voz anasalada – o Gino não tinha morrido? Os jornais lá do Rio noticiaram isso na primeira página.

– Pois é! – disse eu – Ele morreu, sim. Ei, Gino! Tu não tinhas morrido, cara? Que é que tá fazendo aqui?

– Vim dar um rolê por aqui, gabiru! Tava muito calmo lá em cima.

O Gino ficou dando umas sacadas nas meninas que estavam por ali. O Ney comentou que ele estava muito bem. Parece que rejuvenesceu depois da morte. Logo depois, o Gino foi embora do bar dizendo que ia ao circo, nos deixando com aquela sensação de que estávamos sonhando. Bem, eu estava.

O Ney Latorraca também sumiu. Deve ter descolado um bofe. Eu fui embora do bar. Lá fora, encontrei o Ribeirinho e fui logo perguntando:

– Onde é que tu estavas, rapaz? O Gino apareceu no bar!
– Eu fui pra um circo ali perto. Eu não te convidei porque tu não gostas de circo.
– Quem disse que eu não gosto de circo? Vamos lá que o Gino estava indo pra lá também.

Aí o Ribeirinho saiu correndo e gritando:

– Tu tá é doido! O Gino morreeeeeeeeeeu!

QUE É QUE HÁ, VELHINHO?

Ronaldo Rodrigues & Ronaldo Rony entrevistam Papai Noel

Foi difícil descolar esta entrevista. Todos sabem que Papai Noel é cheio de compromissos, só perde mesmo para o Pelé. Conseguimos um tempo em sua apertada agenda, graças à nossa influência e (o que realmente influenciou) à injeção de capital que fomos obrigados a fazer na conta bancária do bom velhinho. Entre uma audiência com o Obama e uma partida de pôquer com os dirigentes da Al-Qaeda, Papai Noel concedeu a entrevista, estipulando o prazo de três minutos, porque o superstar não tem saco para entrevistas longas. Ele mostra, num estilo bem Dercy Gonçalves, que não é tão bom e nem tão velhinho assim.

Como é a rotina do Papai Noel?

Sacrificante, estressante! Coordeno toda a produção de brinquedos, trato da distribuição e organizo a correspondência. Escalo meus clones e faço o roteiro de entrega. E você sabe que meu campo de atuação é o mundo todo, pelo menos o primeiro mundo. E ainda tenho que fazer a entrega pessoalmente para filhos de reis, presidentes e primeiros-ministros. Ufa!! É uma canseira! E como eu sou um bom velhinho, não posso falar um palavrão sequer. Às vezes deixo escapar algo como: Caralho! Aí os funcionários me lançam aquele olhar de reprovação. Eu respiro fundo e grito: Foda-se! Só em pensamento, é lógico!

E quanto às denúncias de que o senhor explora o trabalho infantil?

Tudo intriga. Apesar do tamanho, meus anões são todos, como diz o pessoal por aí, “de maior”. E de vez em quando pago uma rodada de cerveja pra eles, descolo umas mulheres gostosas, umas drogas maneiras e tal. Faço umas farras muito loucas. Pra falar a verdade, eu é que sou explorado por esses filhos-da-puta escrotos. Se eles se sentem explorados, que procurem o tribunal de pequenas calças.

E as renas?

Que é que tem as renas? Não me venha com aquele papo fodido de que eu assedio sexualmente as renas. Isso já rendeu! Já fui processado por uma rena safada dessas. Agora, estou movendo uma ação contra o sindicato delas por evasão de rena.

Quem merece receber presente este ano?

O advogado do Fluminense. Esse é mais influente do que o Sarney. E não vamos esquecer o Mário.

Que Mário?

Aquele que te pegou atrás do armário! Rô! Rô! Rô! Você ainda cai nessa, otário? Rô! Rô! Rô! Então pega aqui pra não cair mais! Rô! Rô! Rô!

Engraçadinho! Quem vai ficar sem presente este ano?

Os vândalos que se infiltraram nas passeatas e tentaram sujar o movimento. 

O senhor tem posições políticas?

Claro! Você acha que, só porque sou um produto do capitalismo, tenho que ser alienado? Te liga, meu! 

O senhor acredita no senhor?

Acredito em mim, em ET, em Saci Pererê, em gnomo e no Rubinho Barrichello. Sacanagem, cara! Vê lá se na idade em que estou eu vou acreditar em qualquer coisa nessa porra! E essa história de Natal já tá me enchendo o saco!

Quais as maiores dificuldades que o senhor encontra?

Além de ficar respondendo perguntas idiotas de repórteres imbecis, a maior dificuldade é visitar um país tropical como este, com toda esta roupa. Eu quase morro de calor! E ainda tenho que aparecer sorrindo nas fotos! Carái, véi!

Por falar em roupa, quem criou esse seu modelito ridículo, hein?

Foi o mesmo estilista que bolou a cor da calcinha da tua mãe, seu sacana! Tenha mais respeito, seu merda! E acabou a entrevista! Vai tomar no…

(Nossos repórteres conseguiram desligar o microfone a tempo de manter intacta a imagem de doçura do Papai Noel).

Anacrônica crônica (Ronaldo Rodrigues)

Ronaldo Rodrigues

A vida é uma merda. Algumas pessoas, como tu, devem pensar isso, de vez em quando. Ainda mais neste clima de fim de ano, de promessa de fim do mundo.

Concordo contigo, amigo, amiga, camaradas. A vida é uma merda. Mas imagina-te sofrendo um acidente daqueles bem escrotos, de moto ou carro. Ou uma bala perdida achada na tua coluna vertebral. Ficarás tetraplégico e fodeu-se. Tu vais pensar então:

– Porra! Não é que a vida nem estava tão ruim assim?

Tudo isso pra dizer que tudo isso é um grande mistério. Mas isso o quê? Do que estávamos falando mesmo? Coisa terrível é essa coisa que um dia se chamou memória. Ainda mais agora que os insetos do inverno estão chegando. O inverno, propriamente dito, nem sinal de chegar. Enquanto isso, vou fritando meu cérebro a 36 graus à sombra.

Dentro do meu aquário de segurança máxima vou apascentando minhas ovelhas negras, alimentando minha fome de justiça e saciando minha sede de vingança. Fome de justiça e sede de vingança. Eis um bom tema. Fica registrado, portanto, para ser desenvolvido em futuras crônicas.

Procuro um canal de TV, um canal de esgoto, um canal arterial. Sei lá o que a madrugada comporta. É preciso estar prevenido: camisinhas, cigarros, cerveja. Ou algo assim. Drogas ilícitas no cardápio.

Preciso também mudar de figurino. Não fica nada bem andar assim com esses trapos, a afirmar aos jornais especializados que essa é a minha moda. Que a minha moda não segue moda. A minha moda é assim. A minha moda é foda.

Bobagens gratuitas na tela. Manchetes espirrando sangue. Quando foi que tudo isso começou? No dia em que o primeiro ser deu o primeiro suspiro? Pode ser. Aliás, tudo pode ser. Inclusive usar a palavra inclusive quando não há muito o que dizer. Pra ganhar tempo. Parece aquele tipo de gente que está falando muito bem e de repente enfia um a nível de… Que merda! 

Por isso vou escrevendo. Tem gente que lê essas coisas que escrevo, sabias? Tem gente pra tudo neste mundo. Gente capaz de ler um poema, gente capaz de escrever um poema. E gente capaz de entrar numa escola e sair atirando a esmo. Loucura esse mundo, louca essa gente.

Ah, sim! Lembrei do que estava falando no início deste texto. A vida é uma merda, mas nem está tão mal assim. Merda serve pra adubar o terreno. Quem sabe outras flores brotarão?

A noite dos peixes

Conto de Ronaldo Rodrigues

A Assembleia Extraordinária convocada pela Grande Ordem dos Peixes não foi atravancada por discursos prolixos ou questões de ordem burocrática. Terminou em poucos minutos, com os Peixes optando por uma firme tomada de decisão frente aos atos praticados pelos Pescadores.

Foi elaborado um manifesto em que os Peixes reclamavam da violação de um antigo pacto firmado pelos ancestrais de Peixes e Pescadores. O pacto celebrava a harmonia entre ambos os lados e determinava a proibição da pesca de filhotes pequenos e de fêmeas grávidas.

Em seu manifesto, os Peixes sugeriam vários caminhos para a conciliação, mas deixavam clara a intenção de invadir a aldeia, caso os Pescadores não fizessem valer os itens do pacto.

Na tarde daquele mesmo dia, o mar levou até a praia o envelope timbrado da Grande Ordem dos Peixes. O Chefe dos Pescadores, obrigado a interromper a sesta para ler o manifesto, ficou com o humor ainda mais azedo.

O manifesto foi lido entre um bocejo e outro e logo o Chefe dos Pescadores desatou a rir estrepitosamente. As gargalhadas se multiplicavam à medida que os outros Pescadores tomavam conhecimento do teor do manifesto.

Em meio à onda de zombaria, sem conter as gargalhadas, o Chefe dos Pescadores enfiou o manifesto no envelope, escreveu displicentemente que Peixes não escrevem manifestos, e o devolveu ao mar.

****      ****      *****

No dia seguinte, os Pescadores voltaram a violar o pacto. Ao retornarem da pescaria, trouxeram em suas redes, entre os Peixes adultos, que era lícito pescar, uma grande quantidade de filhotes pequenos e fêmeas grávidas.

Os Peixes ficaram convencidos de que não adiantaria qualquer esforço para evitar o confronto. Reuniram-se rapidamente, formando um numeroso exército, e conceberam um plano de ataque para aquela noite. 

****      ****      *****

Na aldeia, os Pescadores faziam uma grande festa, comemorando o sucesso da pescaria, e não perceberam um estranho rumor se elevando pouco a pouco. Os Pescadores só puderam ouvir quando o rumor se transformou num barulho ensurdecedor, que ultrapassou as ondas sonoras lançadas pelos alto-falantes que animavam a festa.

Os Peixes vieram navegando pelos ares e o atrito de seus corpos com o vento era o que produzia aquele barulho, anunciando um trágico desfecho.

Os Peixes continuaram sua marcha, investindo contra tudo e todos, derrubando portas, destroçando paredes, derrubando casas.

Enredados pela violenta tempestade de Peixes, os Pescadores corriam de um lado a outro da aldeia, na vã tentativa de defender suas famílias e propriedades.


Após alguns minutos de ataque, que aos Pescadores pareceram horas, os Peixes voltaram ao mar, deixando na aldeia uma trilha de sangue e destruição, onde se retorciam corpos agonizantes.

****      ****      *****

Ainda hoje, decorridos muitos anos, se escuta na aldeia-fantasma o lamento de dor que os Pescadores deixavam escapar, tentando salvar seus filhos pequenos e suas fêmeas grávidas.

Foi Don Rei

Conto de Ronaldo Rodrigues, com pequena participação de Thiago Quintas

Foi Don Rei que me enfiou neste ringue. Me convenceu de que eu poderia ser boxeador. E agora estou aqui com estas luvas pesadíssimas diante de um cara de mais de dois metros, bufando, me olhando como deve olhar para a mosca no momento em que vai matá-la com uma palmada. Ele vai me estraçalhar com um sopro, vai me trucidar.

Olho pra Don Rei na primeira fila, com suas três esposas e o harém de amantes por trás. Don Rei ficou milionário com lutas de boxe. Ele que nunca subiu num ringue, nunca teve seus dentes arrancados, suas costelas quebradas. Seu único talento consistia em conferir e aplicar o dinheiro das lutas. Quando eu perguntava se algum dia eu sairia vencedor de alguma luta ele dizia que minha hora estava chegando. E eu ali, levando porrada dos caras mais brabos, há mais de cinco anos. Todo mundo sabia que o boxe tinha aquelas coisas, tipos como Don Rei arrumando as lutas, decidindo quem venceria, quem perderia e em que round, controlando apostas…

Don Rei sorriu lá de sua confortável cadeira estofada. Quando levei o primeiro soco meu nariz partiu para o lado esquerdo, indicando a direção de alguma saída, meu queixo quase abandonou a cara, meu olho inchou na hora, mas a tempo de ver os olhos de Don Rei brilhando, suas pupilas saltando em forma de cifrões fazendo aquele ruído de caixa registradora.

Perdi mais aquela luta e Don Rei embolsou a fortuna da bilheteria. Fez o costumeiro pagamento irrisório a todos os envolvidos na trama. Ele dominava a cena do boxe e era respeitado. Temido, melhor dizendo. Ninguém ousava questionar os valores que ele pagava, mas naquele dia eu reclamei:

Não me leve a mal, Don Rei, mas acho pouco o dinheiro que ganho pra ficar neste estado deplorável.

Don Rei olhou lá de cima de sua arrogância e falou soprando a fumaça de seu charuto:

Pouco? Como assim? Você nunca ganhou o que ganha aqui naquele seu trabalho de estivador. Eu pago muito mais pra você ficar sete minutos num ringue do que você ganhava o dia inteiro tendo que carregar aquelas caixas pesadas lá no cais do porto. Além do mais, esta é a última luta que você perde. A partir de agora serão só vitórias! E tudo aquilo que as vitórias trazem: grana, carros, mulheres, drogas mais sofisticadas que a sua cachaça de boteco. Agora vá que eu tenho que pensar na sua carreira, campeão!

Exultei com a notícia. Finalmente, minha hora estava chegando. Saí do luxuoso escritório de Don Rei e me dirigi à boca pra comprar crack. Eu usava aquilo ultimamente. Me enfiei no meu barraco, torrando as pedras e sonhando com minha brilhante carreira que começaria a deslanchar da próxima luta em diante. Imaginava os troféus numa grande sala numa das minhas casas. Imaginava pôsteres gigantescos em que eu aparecia olhando o adversário estendido na lona. Imaginava meu nome sendo aclamado pelos especialistas. Imaginava minha história incluída na história do boxe. Imaginava…

A polícia chegou arrombando a porta, acabou com minha imaginação e me deu o maior flagrante. Foi logo me batendo e me algemando. A quantidade de crack encontrada comigo era muito grande e fui preso por tráfico.

Na penitenciária, encontrei muitos dos meus antigos adversários, todos pugilistas candidatos a campeão que Don Rei foi descartando pelo caminho. Ele nos manda uns cigarros de vez em quando junto com alguns jornais especializados em boxe para que fiquemos informados dos novos campeões e derrotados fabricados em série.

Rabiscos

Conto de Ronaldo Rodrigues


Quando voltarmos a ser crianças voltaremos a desenhar daquele jeito que só criança é capaz? Aqui estou, aprendendo a desenhar para depois, quem sabe, aprender a falar e andar.

O lápis azul cai próximo aos meus pés. Vou buscá-lo e avisto minhas meias vermelhas e seus buracos. Sei que hoje é segunda-feira porque sempre uso meias vermelhas nas segundas-feiras. Com ou sem buracos.

No céu que nos cerca há muita fumaça, mas no desenho posso suprimi-la ou substituir por nuvens, simples nuvens.

O lápis azul cai novamente. Desisto de ir buscá-lo. Talvez tenha optado pelo chão. Tudo bem. Aqui somos todos livres. Fecho os olhos e busco no porta-lápis a cor que queira ser o céu. Abro os olhos e descubro o lápis vermelho em minha mão:
– Vermelho, quer ser o céu hoje?

Passo, então, a pintar o céu de vermelho. Pouco acima de onde pretendo desenhar a casa, deixo um espaço reservado ao sol. E antes de entrar na questão de que cor será o sol, vamos às cavernas?

****      ****      *****
Sim, sim. As cavernas, é claro! Lá há uns trogloditas desenhando grandes bisões. Os troglôs (vamos chamá-los assim) ficam longe da assustadora cidade, onde moram e trabalham pessoas que usam máscaras.

No lugar onde se localizam as cavernas, o ar é puro e as nuvens são nuvens mesmo, não fumaça de chaminé. Mas os troglôs não querem, no momento, desenhar nuvens & casas & árvores & sol. Querem desenhar bisões, grandes o suficiente para o almoço de domingo. É sempre domingo nas cavernas?

****      ****      *****
Quem quer ser o sol? Pergunto aos lápis. Eu sei o quanto é difícil ser sol. É preciso ser muito grande e muito quente. Olho em volta em busca de algo que possa ser o sol, já que os lápis preferem não se arriscar.

Há um homem lendo um pedaço de jornal. Digo-lhe que aquele papel amarelado pode ser o sol do meu desenho. Ele propõe uma troca: o papel amarelado por um palito queimado. Ele faz coleção de palitos queimados e acha que um dia construirá uma casa com eles.

Está resolvido: acendo um palito e ponho fogo no papel amarelado. Quando o papel está totalmente em chamas, colo-o no espaço destinado ao sol, apago o palito e o entrego ao homem.

****      ****      *****
Na cidade onde moram e trabalham pessoas que usam máscaras, as crianças possuem avançados computadores gráficos. Quando elas resolvem desenhar árvores & sol & casas &  nuvens, há um bloqueio nos computadores. Eles vibram, produzindo estranhos ruídos, que parecem gargalhadas. Gargalhadas?

****      ****      *****
O sol continua queimando. O fogo não apaga nunca e não se alastra para as outras áreas do desenho. Muito bem.

Agora, penso na casa. Quero pintá-la de uma cor indefinida que vá, aos pouquinhos, tomando cor de casa. Bom é que casa tem a cor que desejamos, até cor de plantação de trigo.

****      ****      *****


Mas computadores não gargalham, pensam as crianças. Não existe tecla ou programa que faça computador gargalhar. Aqueles estranhos ruídos são sinais de que os computadores vão explodir. E explodem mesmo! Em meio a faíscas e estrondos, as tripas eletrônicas jorram por cima dos móveis. As explosões atingem o CC (Computador Central), que também vai pelos ares, provocando um pandemônio na cidade. As pessoas que usam máscaras correm apavoradas para o abrigo. A cidade está ameaçada.

****      ****      *****
Falta pouco para que a casa de cor indefinida seja concluída. Passa ao meu lado aquele homem que trocou o papel amarelado pelo palito queimado. Desta vez, vem trazendo flores e pergunta qual a razão de tudo isso? Antes que eu tente responder, ele vai embora. Quando dobra a esquina, a casa já está totalmente pintada.

****      ****      *****

Momentos antes da explosão da cidade, as crianças conseguem fugir, orientadas por um homem que vende flores. Conseguem chegar sãs e salvas às cavernas. Os troglôs as recebem com muita amabilidade e convidam para o almoço de domingo. Prato principal: um grande e suculento bisão.

Com os carvões que ficaram das fogueiras, os troglôs e as crianças desenham nas paredes das cavernas casas & sol & árvores & nuvens &…

****      ****      *****
Qual será a cor definitiva da casa? Sugiro que seja a mistura das cores das flores que o homem levava consigo. Os lápis sugerem que a cor das nuvens seja da cor dos seus cabelos brancos & cinzentos & liláses & verdes &…Todos concordamos e vamos ao trabalho.

Algumas manchetes de Ronaldo Rodrigues

– Buracos de Macapá serão tombados pelo IPHAN.

– Clientes reclamam de restaurante por causa do arroz azedo e do preço salgado.

– Bêbados amanhecidos ocupam área de ressaca.

– Greenpeace procura marido para baleia encalhada.

– Proprietário de spa canino garante: cão que é light não morde.

– Áreas em risco de terremoto estão fechadas para balanço.

– Ondas do mar reivindicam direito de ir e vir.

– Namoro na internet: caiu na rede social é peixe.

Ronaldo Rodrigues

Kaos?

Conto de Ronaldo Rodrigues


Sei que se movia numa região pantanosa.

Entre a muralha do castelo da realidade e seu coração, havia uma ponte levadiça há séculos emperrada.

Setenta anos se passaram sem notícias dele.

A cidade não dormia.

Ele tinha levado não só o sonho, mas o sono de toda a gente.

E somente aos domingos, embaixo da árvore da dúvida, era permitido falar nisso.

Sua família amealhou posses.

Seus irmãos enriquecidos ostentavam poses.

E sua amada chorava entre a espada cega da verdade e a colcha de retalhos de tristeza que tecia na beira do cais, desde que ele sumiu no mundo, submundo, imundo, mundano.
Sua casa foi comida pela hera.

Era após era.

Após hora.

* * *          * * *          * * *


Quando ele retornou, numa quarta-feira de cinzas, comandando a nau do esquecimento, sua barba o escondeu tão bem que nem seu cachorro Madrugada, grande devorador de sábados, o reconheceu.


E seu irmão gêmeo jurou nunca ter visto aquele rosto.

Quando ele pousou o pé descalço sangrando gotas de azul e pisou o território selvagem de sua infância, a sombra da torre da igreja, muito antiga e já desprovida de sinos, soou do meio-dia às seis da tarde.

O pássaro do dia, que há muito não voava pelo firmamento da imaginação, abriu suas asas e fez o silêncio despertar as nuvens, que partiram céleres levando uma notícia muito boa para um país muito longe.

* * *          * * *          * * *
No outono, veio a revelação.

Quando sua barba caiu por completo, seu melhor amigo de infância, que se tornara próspero comerciante, lhe cobrou aquela dívida de jogo, motivo de sua fuga.

Então, a cidade inteira o reconheceu.

O cercou junto ao poço da solidão e passou a devorá-lo como antigamente.

Só as árvores o reverenciaram, tangendo no deserto da noite um rebanho de estrelas cadentes.

SOMBRA

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Olhei para o muro e estranhei. Faltava alguma coisa ali. Quando cheguei em casa também estranhei, olhando para a parede e achando que faltava algo nela. Só percebi o que acontecia quando liguei a TV, bem na hora do noticiário.

Apresentador: a cidade foi tomada por uma onda de roubos. Trata-se de uma modalidade de crime nunca antes registrada pelo código penal. As sombras das pessoas estão sendo roubadas. Várias vítimas deram entrada nas delegacias da cidade registrando a estanha ocorrência. Se você ligou a TV agora verifique se sua sombra continua lhe acompanhando.

Que merda era aquela? Pensei até que era coisa de programa de humor. Roubo de sombras? A ficha caiu. Ficha? Que ficha? Que gíria datada, ultrapassada! Já não se usa mais ficha, se usa cartão. Então, atualizando a gíria: quando caiu a unidade do cartão logo percebi que o que faltava no muro e na parede de casa era a minha sombra.

Olhei bem em minha volta e nem sombra de sombra. Caramba! Roubaram a minha sombra e eu nem me toquei! Tratava-se, então, de um furto. Eu sabia a diferença entre furto e assalto e achava que saber isso seria útil um dia. Furto, o nome já diz, é realizado furtivamente. O ladrão se aproveita de uma distração da vítima. Já o assalto é anunciado, tipo “Isto é um assalto!”. Quer dizer, isso só é falado assim nos filmes. Cá na vida real o negócio é mesmo: “Dançou, mermão! Perdeu, playbou! Vai passando os cobres! Não olha pra trás! Sai fora, otário! Pra quê que otário quer dinheiro?”.

Achei estranha a ideia de dar queixa do roubo da própria sombra, mas me dirigi à delegacia, que estava lotada de dessombrados. Pensei até, brincando, é claro, num momento de descontração que sempre rola comigo em situações tensas, que poderíamos fundar o Movimento dos Sem Sombra. Só que a galera não tava muito a fim de brincadeira, não. Todos preocupados com o sumiço de suas sombras.

A dúvida que pairava em cada cabeça era como se processava o modus operandi dos ladrões. Com quanto tempo eles ligariam para pedir resgate? Venderiam nossas sombras no mercado paralelo? Como estaria a cotação de sombras? Eram coisas que só se saberiam com o tempo. Já tinha gente tentando se conformar e imaginar a vida sem sombra. Impressão minha ou as pessoas que não tiveram suas sombras roubadas ostentavam um arzinho de superioridade? Algumas se mostraram solidárias. Meu irmão colocou sua sombra à minha disposição caso a ciência avançasse a tal ponto que transplante de sombra fosse possível.

Voltei pra casa procurando a sombra. Quem sabe ela não tinha escapado dos ladrões e também me procurasse naquele momento? Não achei mais estranho o muro sem a projeção da minha sombra e quando entrei em casa vi uma carta no sofá que não estava lá antes. A carta era de minha sombra. Ela dizia ter fugido, aproveitando a onda de roubos de sombras, para que eu não ficasse magoado. Na verdade (ela confessou no P. S.), ela não tinha fugido, só foi dar uma volta, espairecer, dar um tempo, sei lá. Epa!

Ouço passos de veludo lá fora se encaminhando pra cá. Seria a sombra que, não suportando a saudade, já estaria de volta? Sem sombra de dúvida. Era ela sim. Abri uma cerveja e fiquei ouvindo suas aventuras.

Knock-out (ou o amigo do Carneirinho era um lobo)

Conto de Ronaldo Rodrigues

O Boxeador Implacável, detentor de vários títulos, estava na mesa ao lado, arrotando arrogância, destemor, valentia e arroto mesmo. Era conhecido nos meios pugilísticos e nos bares de beira de cais como Golias. Não o comediante brasileiro, mas o guerreiro gigante filisteu.

Meu amigo Carneirinho estava sentado na minha mesa. Havia trazido um amigo seu que até aquele momento só tinha feito três coisas: beber, fumar e cuspir. Era baixinho e magrinho e, em meio ao barulho e à fumaça, se tornava quase imperceptível. O que me chamou a atenção foi um velho guarda-chuva que o amigo do Carneirinho não largava nem quando ia ao banheiro:

– Ele anda com esse guarda-chuva para se precaver da polícia – me explicou o Carneirinho. – Ele diz que alguém que anda de guarda-chuva está acima de qualquer suspeita, porque parece pacato aos olhos dos outros.

Ouvi a explicação e pedi outras. Por que ele precisava tomar cuidado com a polícia? Por que ele não queria levantar suspeita? Qual era o motivo de tudo isso?

Aí o amigo do Carneirinho se transformou completamente. Pulou lá do cantinho dele e me encarou, bufando e gritando:

– Não tem motivo nenhum, cara! Tá pensando o quê? Que eu sou ladrão, contrabandista, estelionatário? Que fico por aí tocaiando velhinhas pra roubar a aposentadoria delas?

Pedi desculpas, vendo que ele tinha ficado realmente ofendido com as perguntas. Achei exagerada a reação do amigo do Carneirinho, que o acalmou e explicou de novo:

– Sabe como é, né? Ele não tem motivo nenhum pra temer a polícia, mas a polícia não precisa de motivo pra botar alguém em cana. Ela arranja um ou um milhão de motivos, certo?

Concordei, achando tudo meio paranoico. Enquanto isso, o Boxeador Implacável soltou mais um arroto, seguido de um desaforo ao público. Só que desta vez ele não ficou sem resposta. Aproveitando o resto da ira despertada por mim, o amigo do Carneirinho foi até a mesa do campeão e aplicou uma guarda-chuvada no montanhoso cocuruto, fazendo o gigante beijar a lona. 

Carneirinho, cambaleando bêbado, contou até dez e, vendo que o Golias não recobrava a consciência, ergueu o braço do amigo-baixinho-magrinho-que-bebia-fumava-cuspia-e-não-largava-o-guarda-chuva e o sagrou vencedor daquele insólito combate.

O amigo do Carneirinho foi carregado em triunfo. Os bêbados do bar festejaram a vitória noite adentro, com grande estardalhaço. Até chegar a polícia e levar todo mundo em cana, com exceção do amigo do Carneirinho, que saiu assoviando, tranquilo, com seu guarda-chuva debaixo do braço.

RIONDA (conto de Ronaldo Rodrigues)


Rionda era terrível.Sempre mastigava os chicletes antes que eu terminasse de comer doce de banana.

Rionda era curvilínea, retilínea, mas deixava ver em sua chapa de raio-x um certo acréscimo de carnes em seus glúteos, futuramente.

Rionda era a única que sabia o enigma. Saqueava o cemitério em busca de esmeraldas e só ela tinha o poder de perscrutar em cada olho caído nas covas uma faísca de vida:

– Venham para fora, irmãos!

Rionda não queria que o mundo acabasse na próxima esquina. Ela esperava que a vida fosse forte e tênue e guerreira e diáfana. E que coubesse num suspiro.

Ronaldo Rodrigues