Uma crônica pelo amor de Deus! (crônica de Ronaldo Rodrigues)


Preciso escrever alguma coisa. Uma crônica. Uma crônica pelo amor de Deus! Para publicizar no blog do Elton Tavares, o De Rocha.

Escrevi publicizar em vez de publicar pra complicalizar um pouco. Afinal, eu também posso. Tento descomplicar o tempo todo e só recebo incompreensão como prêmio.

Mas eu não vou escrever uma crônica lamentosa, isso é que não. Quero mesmo é escrever uma crônica épica, grandiloquente, portentosa. Que faça tremer as estruturas da… do… sei lá! Que faça tremer as estruturas. Ponto!

Como diz uma gíria de duas gerações antes da minha, quero balançar o coreto. Mas se conseguir balançar o coração, e o corpo, dessa linda aeromoça já será suficiente. Me sentirei realizado. Tem a ver com minha morte ideal, que seria assim: eu transando com a aeromoça, dentro do banheiro do avião. O avião em chamas, naturalmente. Voando direto para o abismo.

Há tempos que não faço uma crônica. Neste exato momento, o Elton está batendo nas teclas do computador (como se elas tivessem culpa…) digitando a mensagem para me perguntar assim, como quem não quer nada:
– E aí? Alguma coisa pra hoje? Uma crônica, um conto, um texto experimental & tal? Alguma coisa pelo amor de Deus!

Ele não chega a esses exageros, claro. Carreguei nas tintas. Estou assim hoje, meio exagerado. Imaginei o Elton batendo nas teclas e agora o imagino batendo na minha porta:
– Cadê o teeeeexto?

Calma, Elton! Pelo amor de Deus! Eu preciso escrever alguma coisa! Sei muito bem disso! Essa necessidade é minha! A legião de meus cinco leitores está aflita com minha falta de inspiração (talvez seja excesso de piração). Vi até um cartaz numa das passeatas pedindo que eu volte a escrever. Estou tentando. Paciência. A coisa não é assim, automática. Tem que deixar rolar. Quando a gente está distraído é que rola. Ih! Rolou!

Taí, Elton. Espero que gostes. Agora, por favor, larga o meu pescoço que estou ficando sufocado…

Agora sim, estou leve. Consegui fazer uma crônica pelo amor de Deus! Acendo um cigarro, tomo um copo de cerveja, mas sinto que está faltando alguma coisa. Já sei:
– Uma aeromoça e um avião em chamas! Pelo amor de Deus!

Ronaldo Rodrigues

Dois minutos apenas (conto de Ronaldo Rodrigues)

Estou em meu quarto, o lugar em que passei a maior parte da minha vida. Na mesa à minha frente, numa caixinha de música, uma bailarina repete suaves movimentos mecânicos.

O quarto fica no segundo andar da casa. No térreo, desenrola-se uma grande festa. É o casamento de meu irmão mais velho.

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Meu irmão é mais velho por um pequeno espaço de tempo. Dois minutos apenas. Sempre mais rápido que eu, essa foi sua primeira vitória das muitas que se seguiram. A vitória de maior impacto acontece neste exato momento, nos compartimentos do térreo e nos jardins, por onde os convidados se espalham.

A festa deve estar efervescendo. Meu irmão é considerado, com total justiça, o portador da alegria. Certamente, está sorrindo para todos e abraçando aquela que será sua para sempre. Ela deve ostentar o seu melhor sorriso, já pensando em atender aos pedidos que fazem os convidados.

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Os dois minutos que me separam de meu irmão são um abismo intransponível. Sua vida sempre foi intensa, rodeada por muita gente, pela turma do colégio e da nossa rua, pelo círculo familiar, no qual, com seu temperamento jovial, ocupava o centro das atenções. Enquanto eu, sombrio e esquivo, passei a vida confinado neste quarto, mergulhado em mim mesmo, longe de todos e em total silêncio, assistindo na distância a simpatia de meu irmão, escondido para não ser ofuscado pelo brilho de seu carisma.

Quando meu irmão me revelou sua decisão de casar, chegou mais radiante do que nunca e logo percebi que vinha anunciar mais uma vitória. Falou de sua noiva, linda, serena, de inteligência invulgar, tão bem-humorada quanto ele e que tinha uma paixão extremada pela dança.

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Neste momento, imagino, a festa atinge seu ápice. A feliz bailarina se apronta para atender aos insistentes pedidos de seus convidados. Irá dançar como só ela é capaz. Com a mesma graça que me prendeu a atenção quando a vi pela primeira vez, exatamente dois minutos depois que meu irmão a viu.

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Dou corda na caixinha de música, coloco algumas balas no revólver e o aponto para o ouvido direito. Fico olhando a caixinha de música soprando vida na bailarina até que a corda acabe.

Ronaldo Rodrigues

Xeque-mate (conto de Ronaldo Rodrigues)

Com um potente soco na mesa ele decreta o final da partida. Sua gargalhada glacial ecoa pelas paredes musgosas do labirinto. Ele grita, com sarcasmo:
Xeque-mate! Você perdeu mais uma vez!

Fui vencido nas oito partidas que disputamos. Minha falta de habilidade deve ser paga com a vida. É o que leio em suas pupilas gigantescas, em seus olhos de touro enfurecido.

Perder significa o fim. Sua lei, imposta a todos os que são atirados ao labirinto, consiste no seguinte: quem o vencer será poupado. E quem perder será impiedosamente devorado.

Levanta-se e me fala pela última vez, do alto de seus dois metros e meio de estatura e arrogância, mastigando as lesmas que costuma comer durante as partidas:

– Pode ir embora! Ainda não é um adversário! Não ameaçou uma só vez, não fez um movimento consciente de defesa, não ofereceu resistência alguma! Não houve jogo, logo eu não venci e você não perdeu! Você não passa de um verme, um covarde, um tolo! E por isso está perdoado!

Não há notícia que ele tenha sido condescendente com algum adversário em toda a sua vida. Ele esboça um sorriso superior e indica a direção que devo tomar para encontrar a saída do labirinto. Depois, dá as costas e desaparece pelos intrincados corredores, levando seu tabuleiro de marfim em busca de adversários à altura.

Ainda perplexo, saio do labirinto. Sou aclamado como um herói. Afinal, eu sou a única pessoa a sair do labirinto em todos esses anos. E graças aos meus dotes de péssimo enxadrista.

Por ser um verme, um covarde, um tolo, escapei de ser devorado pelo Minotauro.

Ronaldo Rodrigues

Marieta (texto experimental & tal de Ronaldo Rodrigues)


Marieta subiu na carreta nem se importando com as caretas das ninfetas que ficavam à tarde no maior alarde com suas lambretas pretas estacionadas na sarjeta.

Avistou o monge lá longe, sozinho no caminho de espinhos.

Notou seu cansaço e seu passo lasso em descompasso.

Ele atravessava o deserto com seu andar incerto, espantando os insetos.

Marieta ofereceu uma carona e o monge aceitou na hora sem demora.

Ele que não era ingrato, de bom grado, dizendo obrigado, embarcou naquele caminhão grandão que transportava gente carente pelo sertão.

Marieta seguiu então em direção ao rio, cruzou a ponte e o mirante, descortinando um novo horizonte e embarcou mais três pessoas que andavam à toa, ao léu, tendo por testemunha só chão e céu.

Marieta desde menina franzina cumpria aquela sina de peregrina transportando gente de todo lugar sem nunca cansar nem pensar em parar.

Um dia haveria de parar e como o povo iria se virar?

O caminhão percorria o chão do sertão e estava quase para deixá-la na mão.

Quando o caminhão então de supetão parasse de vez, Marieta continuaria a pé, ela e sua fé, que nunca deu marcha-ré, carregando gente pela mão.

E se seu corpo cansasse e cessasse sua respiração não faltaria inspiração.

Continuaria na outra vida ajudando a multidão a encontrar a direção.

Seria uma santa dirigindo uma jamanta giganta carregada de boa intenção.

Ronaldo Rodrigues

Com o pastor alemão do rock nas ruas de Macapá, em busca da mulher que será a mãe de seu próximo filho. No caso, uma filha que se chamará Lilith (crônica de Ronaldo Rodrigues)


Coloco Bob Dylan na vitrola (no som do computador) para escrever esta crônica ouvindo Jokerman.

Pois bem. Como eu ia dizendo/escrevendo ou esquecendo, peguei uma carona no acaso, que promove os melhores encontros, e fiz companhia ao bardo conturbado do bairro da Vacaria em seu passeio pelas ruas esburacadas e sem calçada da Tucujulândia, nas adjacências de Macondo.


Pra quem não sabe, ou mesmo pra quem já sabe, Vacaria é aquele lugar que as leis e seus perpetradores transformaram em Santa Inês. Com certeza, sem consulta popular. Ele me diz que não há uma Inês sequer no bairro, o que poderia justificar o nome.

Outras indignações ligadas a nomes de bairro vêm à mente, como a Favela, transformada em Santa Rita, e a quase morte do poético nome Laguinho.

Pois bem, de novo. Pegamos um ônibus pra assustar os passageiros com nossos papos sobre literatura e morte e suicídio e carma e drogas. Um brinde a tudo isso nesta manhã quente de segunda-feira.


Fomos ao Museu da Imagem e do Som, no Teatro das Bacabeiras. Não sei se tem a ver com administração atual, mas o Museu da Imagem e do Som estava fechado. Sem som e sem imagem. Mas prossigamos por este vale de lágrimas que nem sempre vale uma lágrima.

O anjo Galahell procurava uma mulher bruta, inculta, um campo pronto a ser semeado com toda a sorte de dialetos, delírios, música e a santa diabólica poesia. Ao som da história e da histeria do rock.

Uma mulher para ser a mãe de sua filha, que se chamará Lilith, aquela mesma que foi repudiada pela Bíblia por ser a face insubmissa da mulher. O livro sequer aponta a sua existência. Em seu lugar, colocaram a doce Eva, num paraíso que se perderia por conta da própria dona de casa, para que ela carregasse esse peso e que fosse justificada toda a carga de históricas e histéricas injustiças contra a mulher.


Galahell, que iniciou o dia como agnóstico, ateu ou coisa parecida, constatou a existência de Deus nas mulheres que passavam a nossa volta, todas Nefertites (eis que é chegada a mais bela). Todas escapando da proposta de ser a mulher que daria à luz uma outra mulher para que se iniciasse o novo ciclo da evolução humana: a pós-história, a que tem possibilidade de dar certo.

Tudo isso ainda há pouco, na manhã radiante de segunda-feira, 3 de junho de 2013, século XXI, milênio III, aniversário de meu filho Pedro. Com ele a sabedoria e a glória.

Aumento o som e vamos com Bob Dylan: knockin’ on heaven’s door.

Ronaldo Rodrigues

Codinome Bette Davis – (conto de Ronaldo Rodrigues)


Ela tem os olhos de Bette Davis.

Ela tem os óleos de Bette Davis.

Los ojos de Bette Davis.

The eyes e uis de Bette, the best.

Bette Davis é assim:

– Milhares de olhos olhares de sinuosas serpentes insinuantes em suas performances e nuas nuances que se multiplicam e se aplicam picantes.

– Várias e velozes e veludosas vozes, suaves aves naves, com suas asas que abraçam brasas.

– Faces-fases, multifacetados disfarces de um ultra-travesti que faz do falo algo que fala, como galos gargalos gargalhando na goela.

– São músculos másculos maiúsculos fêminos singuplurais, deslumbrando a penumbra do nosso decadente quarto crescente, indecente, incandescente, transcendente.

– São cabelos de medusa confusa que me usa, roçando rolando do crânio subcutâneo, cruzando ares & bares como alados cavalos lunares, plumares, por mares nunca por Dante navegados.

– Com suas garras e cigarras, retalha e metralha a mortalha do cortiço e a cortiça dos cigarros a todo instante deflagrados.

– Ela é a mulher de minha dúvida, dádiva de minha vida, dividida, endividada, individual, dualizada.

– De seu submundo, ela me subjuga, subsuga, subsuja.

– A boca desse bardo conturbado sibila a sílaba, a palavra lavrada, desferida contra o alvo aberto descoberto da ferida. E goza o gozo azul-lilás da rosa.

Sim. Ela tem os olhos de Bette Davis. Mas desconfio que seu verdadeiro nome seja Bates. Norman Bates.

Ronaldo Rodrigues
* Texto inspirado na música de Bette Davis Eyes, cantada pela Kim Carnes. 

De Nazaré (conto de Ronaldo Rodrigues)

            De Nazaré estava passando em frente ao bar e os outros estivadores assoviaram alegremente, chamando-o para um trago.
Bom de copo como de trabalho, De Nazaré pensou um pouco e concluiu que um convite feito com tanta sinceridade e alegria não poderia ser recusado.
Deixou a pesada cruz encostada ao lado do bar e abriu os braços para os amigos.
            Todos gostavam de ouvir De Nazaré cantar, mas ele só fazia isso quando estava bastante embriagado. Então bebeu, de uma só vez, meia garrafa de pinga.

A bebida explodiu quente nas engrenagens cerebrais e despertou o cantor apaixonado que De Nazaré sonhou ser em sua juventude. Abriu a garganta, libertando o pássaro da voz, e fez com que todos ali esquecessem, por alguns instantes, a miséria quotidiana e a coroa de espinhos que eram obrigados a suportar.
            Mais do que uma simples distração, as músicas eram um alívio, acentuado pelo entorpecimento da cachaça. Uma trégua para quem tem que colocar a carga do mundo nas costas e encher os porões dos navios. 
        

    Depois de algum tempo de cantoria, De Nazaré resolveu ir embora, continuar seu amargo ofício. Era quatro horas da madrugada e ele tinha que carregar mais algumas dezenas de cruzes antes do amanhecer. Homem de palavra, De Nazaré honrava os compromissos e nunca deixou uma entrega por fazer.


            Os outros estivadores bem que queriam que De Nazaré continuasse a cantoria, mas sabiam que eles mesmos teriam que se retirar para enfrentar o batente. Voltaram à realidade e se foram, deixando os restos de peixe frito para os cachorros do cais.
            Sozinho novamente, De Nazaré sentiu os pingos da chuva que começava a cair. Tomou o último gole e, sob a precária iluminação do poste, recolocou a cruz no ombro e caminhou em direção à ponte de tabuinhas irregulares que levava aos navios ancorados na escuridão.
Ronaldo Rodrigues

Sorte (conto de Ronaldo Rodrigues)


– O próximo!

Um senhor de 52 anos, de aparência bastante humilde, adentra o imponente escritório.

– Muito bem, seu… seu Gastão. É isso?
– Isso mesmo…
– Pois bem, seu Gastão! Vamos direto ao assunto! Em televisão, tempo é dinheiro! Concorda?
– Conc…
– Informo que o senhor é o próximo sorteado do programa Uma Noite, Uma Fortuna, nosso campeão de audiência.
– Puxa vida!
– O senhor sabe que a cada programa sorteamos um milhão de reais para um ganhador. Desse dinheiro, o senhor terá direito a 100 mil, o que, convenhamos, é uma bolada pra quem está desempregado há oito meses.
– Claro…
– O restante do dinheiro ficará com a emissora para garantir a continuação do programa. 

O senhor compreende que um prêmio desses, a cada programa, são três por semana, quebraria o caixa.

– Compreen…
– Então? O senhor aceita?
– Bem… É uma coisa que me pegou assim, de surpresa…
– Isso mesmo, seu Gastão! O senhor é bom, hein? No momento em que for contemplado, o senhor deverá ostentar essa mesma cara de bobo que está fazendo agora! Tem que parecer surpreso! Admirado! Estupefato!
– Certo… Cara de bobo é uma coisa que sei fazer muito bem… Acho que só me resta aceitar.
– Ótimo! Assim é que se fala! Assine aqui! E agora o senhor será encaminhado a uma sessão de fotografia.
– Muito obri…
– O próximo!
Após uma noite inteira de insônia e um dia de debate com sua consciência, seu Gastão chega ao estúdio onde o programa será transmitido ao vivo, em horário nobre. No auditório repleto de candidatos, seu Gastão assiste às piadinhas do apresentador, enquanto as atrações musicais se sucedem. Por fim, o programa chega ao ápice, com o apresentador abusando do suspense.

– E o grande sortudo de Uma Noite, Uma Fortuna, o mais novo milionário do Brasil, é o número…
O apresentador olha para o auditório em silêncio e, depois de medir sua capacidade de causar impacto, prossegue:

– É o número cinco… oito… meia… um!
Comoção no auditório. Irrompem gritos, assovios, aplausos. Câmeras e holofotes percorrem a plateia e encontram seu Gastão mostrando tristemente o cartão premiado. Tristemente?

Seu Gastão encara uma das várias câmeras espalhadas pelo estúdio e dispara:

– Eu quero falar uma coisa muito séria! Este programa é uma faaaaar…

Blackout. Pânico no auditório. Em meio ao caos, seu Gastão sente o piso ceder sob seus pés e a cadeira cair junto com ele num abismo sem fim. Imediatamente, surge outra cadeira no mesmo lugar, com um sósia perfeito de seu Gastão.

As luzes voltam a iluminar o estúdio. As câmeras flagram o novo seu Gastão brandindo alegremente o cartão premiado. O apresentador não perde tempo:

– O que era que o felizardo desta noite dizia mesmo?
– Este programa é uma faaaaaartura de felicidade! Uma dádiva dos céus! Uma oportunidade única que o destino me reservou!
– Aplausos! Aplausos! E não percam o próximo programa Uma Noite, Uma Fortuna. Até lá e obrigado pela atenção!

Ronaldo Rodrigues

A Máquina x Eu (conto de Ronaldo Rodrigues)


Estamos num ringue de boxe, segundos antes do Combate do Século, como dizem os jornais.

Fora do ringue, ocupando todas as cadeiras do estádio, a turba enlouquecida grita o nome dEla. Aquela torcida gigantesca e apaixonada é toda para Ela.

Ela, a Máquina, é um potente computador de última geração, de avançada fabricação japonesa.

Tem história, curriculum vitae, tradição oriental, árvore genealógica, pedigree e mapa astral. E está desde tempos imemoriais programada para me destruir.

Eu não tenho absolutamente nada, além do medo hereditário que me aprisiona ao estado de animal humano diante da sentença de morte: o embate fatal, inevitável.

A Máquina irá me estraçalhar no primeiro round. E a turba enlouquecida, ávida por sangue, no último estágio de histeria coletiva, terminará o massacre. Pisará meu corpo desfalecido, chutará minha cabeça esfacelada.

Estou sufocando, suando, tentando a todo custo continuar respirando! Quero gritar! Me levantar! Correr! Me libertar! E não consigo! Não consigo! Não…

Nããããããããããããããããããããããããããooooooooooooooooooo!

Acordo atarantado e a Máquina, ao meu lado na cama, me acalma com todo tipo de carinho. Somos casados há oito anos e sempre sonho que um dia seremos adversários mortais.

Ronaldo Rodrigues

Lição de vida. E de morte. (crônica de Ronaldo Rodrigues)

A mulher acorda com a tosse insistente do filho e fuzila o marido com olhar e palavras:
– Tu não estás ouvindo o menino tossir?
O marido, sem largar a latinha de cerveja:
– Eu já mandei ele parar, mas tu achas que ele parou? É a tal da modernidade! Filho não obedece pai! Esse mundo tá perdido, minha filha!
– Tu tens que fazer alguma coisa! Deixa, deixa… Já vi que quem tem que resolver sou eu. Vou pegar o xarope.
– Aproveita e pega outra latinha, amor.
– Claro, bem. O que é que tu me pedes chorando que eu não te dou uma porrada?
E o marido, na maior tranquilidade:
– Caaaalma… Sem violência… Traz uma bem geladinha, tesouro!
E lá vai a mulher, resmungando. O filho tosse outra vez e o marido aumenta o som da televisão, não sem antes dar uma palavrinha de carinho ao filho:
– Olha o barulho aí, moleque! Não tás vendo que eu tô vendo televisão? Esses jornais da madruga são os que eu mais gosto. Tem violência que só vai chegar ao conhecimento do povo amanhã de manhã.
A mulher volta com o xarope e dá para o menino. O marido sente falta de alguma coisa:
– Cadê a cerveja, mulher?
– Quer cerveja vai pegar!
O marido se levanta do sofá e vai reclamando até a cozinha:
– Será que eu tenho que fazer tudo nesta casa? Quem tem que beber sou eu! Quem tem que fumar sou eu! Quem tem que ver televisão de cueca no sofá sou eu! Assim é demais! Estou ficando exausto! Ainda bem que ela falou com jeito, senão…

Depois de instalado no sofá com sua latinha na mão, o marido dá vazão ao seu lado paterno e tenta levar um papo com o filho:
– O negócio é o seguinte, moleque. Posso te chamar de moleque? É como chamo meus bróders. Que cara é essa? Deixa de frescura que ser chamado de moleque não é ofensa. É o meu jeito de ser carinhoso.
É aí que o filho o surpreende:
 – Carái, véi! Deixa de enrolação! Dá logo o papo!
O marido cai do sofá e a esposa salta da cama, onde já tinha se aninhado:
– Que é isso, menino? Isso é jeito de falar com seu pai? Pai é pai, não importa se ele é preguiçoso, covarde, medroso… Ele é pai. Fale direito com ele!
O marido se assusta ainda mais vendo a esposa sair em sua defesa. Ah, não! – pensa o marido. – Dois sustos desses na mesma noite!
E a mulher continua em campo:
– Pode ser canalha, pode ser sacana, pode ser imprestável, pode ser desonesto, mas se é pai é pai! E tem mais!
– Pode parar, mulher. Ele já entendeu. Obrigado!
O marido até esquece o que ia falar com o garoto. Mas, puxando pelos fios que sobram daquilo que um dia se chamou memória, ele lembra de tudo. É como se o filme da sua vida passasse por sua cabeça…
– Epa! Pode parar por aí, seu narrador! Esse negócio de ver o filme da própria vida é quando o cara vai morrer. Que papo é esse? – É o marido se intrometendo na minha história, ainda que a história seja dele.

Tudo bem. Prosseguindo:
O marido veste a fantasia de pai e fala sério com o filho:
– Filho, tu já tens quase seis anos, já és um homem. Precisas saber das coisas da vida, do mundo. E eu sou teu pai, a pessoa mais indicada para te explicar isso. Te prepara pro que vais ouvir.
O pai molha o bico e declara filosoficamente:
– Saiba, ó filho meu, que neste mundo e em tua vida encontrarás muitas pessoas. Umas boas, outras ruins. Mas é preciso respeitar todo mundo, sem distinção. Temos que respeitar tudo quanto é filho da puta que aparecer. Não se esqueça disso. É a mensagem que meu pai me transmitiu, que foi transmitida pelo teu avô e que tu não passarás para teu filho porque não dará tempo. O mundo, do jeito que vai, será destruído ainda nesta década. Fui claro?
– Foi sim, mas e daí? O que é que eu tenho a ver com isso? Para o mundo e para as pessoas eu mando um kiss!
– Kiss! Já sabe falar inglês, filho? Tá mandando um beijo pro mundo e pras pessoas?
– Do not! Eu tô mandando um kisse-fôda! Fuck-se todo mundo! E eu também!
– Ah! Agora fez sentido!
A mulher intervém:
– Eu tô achando essa conversa meio estranha. Tu não estás ensinando coisas boas pro nosso filho.
– Cala a boca, mulher! Eu tô dando o papo reto pro moleque! Tô falando de amizade, consideração, generosidade… Esse monte de besteira que os pais devem dizer aos filhos. Em resumo: tô falando de respeito ao próximo. RES-PEI-TO! Coisa que tu não entendes. Não te mete e vai esquentar a janta que bateu uma larica daquelas.
– Eu vou, mas esse menino vai ser pior do que tu.
– E eu esqueci de dizer uma coisa, filho. De qualquer maneira, mesmo com toda a escrotice que eu falei dos seres humanos, eles têm salvação. Eles te atropelam, te maltratam, te deixam na miséria, fazem tudo quanto é possível pra te deixar numa pior. Só que eles também têm coração, sentimento, essas coisas… E lá no fundo, no fundo mesmo, o que eles querem é que tu te fôdas!
– Obrigado pelas palavras, pai. E me dá um gole dessa cerveja que a tosse já passou!

Ronaldo Rodrigues

Ginoflex e seu exame de urina (crônica de Ronaldo Rodrigues)


Ginoflex andava sentindo umas dores na uretra e decidiu fazer exame de urina. Passou no posto de saúde e perguntou para a enfermeira como deveria proceder. Ela explicou, pacientemente:

Quando o senhor se levantar de manhã para urinar, separe a urina num vidrinho e traga aqui. Um dado importante: despreze o primeiro jato de urina.

Ele ficou meio desolado:

Desprezar o primeiro jato? Por que desprezar? Eu não gosto de desprezar nada. Tudo tem sua importância no mundo, na vida. Não é mesmo? Será que não tem outra palavra pra substituir?

A enfermeira queria despachar logo aquele cliente, mas precisava ser educada:

Tudo bem. Vamos falar descartar, então. O senhor deve descartar o primeiro jato de urina.
– Descartar também é uma palavra que eu não uso. Descartar me lembra carteado, baralho. Eu já fui escravo desse vício que é o jogo e não uso palavras que me lembrem desse período da minha vida. Será que não podemos substituir?

Aquilo já estava ficando chato. A enfermeira respirou fundo e sugeriu:

Podemos dizer jogar fora, simplesmente. O senhor joga fora o primeiro jato.
– Jogar fora é o mesmo que descartar e desprezar. Quando eu tiver jogando fora o primeiro jato de urina, vou me lembrar dessas palavras. É possível até que eu não consiga urinar só em pensar que posso pensar nessas palavras.

A enfermeira pegou os últimos raios de paciência que restavam:

Então diga qual a palavra a ser usada. Uma palavra do seu agrado.
– Hummm… Sei lá. Que coisa isso, hein? A gente fica um tempão pensando que palavra usar…

Tempão que eu não tenho, viu, moço? Acho bom o senhor se resolver por uma palavra pra eu poder atender a outros clientes.
– Pois é. Que palavra se encaixa bem no nosso caso?
– No nosso caso não, que nós não temos caso algum. No seu caso. E aí? Qual a bendita palavra?

Ginoflex pensou o máximo que sua mente permite, que não vai além de vinte segundos, e arriscou:

Que tal urinar e pegar só a urina que vem depois do primeiro jato? Acho que é uma boa saída, a senhora não acha?
– Acho. Fica assim, então. O senhor urina e recolhe só a urina que vem depois do primeiro jato.
– Aí a senhora usou outra palavra que eu não gosto: recolher. Me lembra menor abandonado, que precisa ser recolhido pelas entidades assistenciais.

Aí a enfermeira pegou corda:

– Tudo bem, moço! O senhor PEGA a urina que vem depois do primeiro jato! Certo?
– Certíssimo! A senhora é bem decidida. É desse tipo de mulher que eu gosto. Que horas a senhora entra no trabalho, de manhã cedo?
– Ah, não! Assim já é demais! Me assediando, moço?
– Nada disso. Eu só queria que a senhora me ajudasse a urinar. Tá difícil. Eu só consigo com muito carinho…

Ronaldo Rodrigues

Primeira de abril (crônica de Ronaldo Rodrigues)


Esta é a minha primeira de abril. Primeira crônica de abril. Não vai coincidir com o primeiro de abril, claro. Já estamos no dia 30… Demoroooou…

Decidi que minha primeira crônica será também a última. De abril!

Mas aí vai minha única crônica de abril. Antes de escrever a crônica, eu deveria cuidar da minha tosse crônica. Aliás, é isso que vou fazer. Só um momento, que vou tomar meu xarope.

Imagine uma ampulheta dessas que aparecem no computador quando ficamos esperando, esperando, esperando…

Voltei. Calma! A vida é assim mesmo e tu deverias estar acostumado com isso. As pessoas vão, as pessoas vêm. Assim caminha a eternidade.

Assuntos não faltam para uma crônica. Vejamos o que está rolando pelo mundo: tem um louco norte-coreano, liderando outros loucos, querendo fazer guerra nuclear. A Dama de Ferro enferrujou e se foi. Atentados em Boston (e desta vez não tem nada a ver com a torcida corintiana). O presidente da Comissão de Direitos Humanos querendo que o mundo volte à Idade Média. E os crimes do quotidiano: políticos roubando e cumprindo seus mandatos sem risco de mandados de busca e apreensão, sendo eleitos e reeleitos pelo resto dos tempos. Ah! Isso todo mundo já sabe. E Macapá ganhando ares de cidade grande. Já temos até assalto com refém!

Não é que a crônica está saindo? Já a iniciei e reiniciei várias vezes. Estou meio travado. Abril é o mais cruel dos meses, segundo T. S. Eliot, e estou comprovando isso. Pelo menos em relação à crônica.

Tive a ideia de escrever algo jogando com mentira e verdade. Já que o dia primeiro de abril é o Dia da Mentira, o último dia de abril poderia ser o Dia da Verdade. Nesse dia, todos diriam a verdade. O que daria numa confusão terrível. Como naquele filme, O Mentiroso, em que Jim Carrey promete ao filho, como presente de aniversário, passar um dia sem mentir. Lembram?

Pois é. Acabei desistindo da ideia por não conseguir imaginar a que loucura o mundo chegaria se todos falassem a verdade. Além do mais, o mundo já mente tanto. Exemplos: a cor da caixa-preta dos aviões é laranja. Um minuto de silêncio não dura mais do que vinte segundos. A novela das oito começa às nove. E por aí vai. A verdade está em baixa, mas é sempre bom lembrar daquele sábio das antigas que disse que só a verdade nos libertará.

Chego ao fim de mais uma crônica, que sai meio a fórceps, na marra. Eu me impus escrevê-la e creio que cumpri a missão. Talvez não a contento, mas tá valendo. Ou não.

Termino com Charles Bukowski: “Escrever é quando vôo, escrever é quando começo incêndios. Escrever é quando tiro a morte do meu bolso esquerdo, atiro-a contra a parede e a pego de volta quando rebate”.

É isso.

Ronaldo Rodrigues

Malhando os malhadores (Crônica de Ronaldo Rodrigues)

 
Semana Santa. Sempre que chega esta data fico pensando no sentido de justiça de certas pessoas. Elas pegam Judas e fazem o diabo com ele. Malham o cara de todo jeito. Dizem que é a única forma de fazê-lo pagar pelo crime de ter traído Jesus. Isso é o que mais me preocupa. Se tudo já estava escrito, segundo a própria Bíblia, qual é a culpa de Judas? Se há culpa, é de quem escreveu. 
 
Prefiro acreditar que Judas foi um elemento para que a história se cumprisse da forma que se cumpriu. Judas foi um aliado de Jesus e agiu daquela forma para que tudo saísse segundo o roteiro do Todo (Todo é como chamo o Todo-Poderoso na intimidade). Ora! Parem com esse negócio de associar o nome de Judas à traição. E parem de fazer essa justiça esquisita que comporta todo tipo de torpeza que vocês veem no cara, que condenam nos outros, mas que em vocês é aceitável. 

 

Traidores são vocês! Traidores da palavra de Deus! (vocês são quem vestir a carapuça). Na verdade, sou a favor da reabilitação de todas as figuras malditas da Bíblia, pelo mesmo motivo: não foram elas responsáveis por seus destinos. Como dizem os árabes: maktub! (estava escrito!). 
 
Portanto, Judas, Caim, Lúcifer, Barrabás, Pilatos, Herodes etc. devem ser vistos como personagens desempenhando seus papéis. Aí algumas pessoas dizem que há o livre-arbítrio, que esses personagens poderiam ter tomado outro caminho. E como ficaria a palavra do Todo? 

 

Na verdade, os cristãos (a maior parte deles) confundem tudo. Esse papo de dizer que Jesus morreu para nos salvar acho exagero e injusto com o cara. Cada um tem que fazer por si, pela sua salvação, e não achar que está tudo bem, bastando ir à igreja rezar que – abracadabra – estamos salvos. Muito confortável, não acham?
 
Agora vou me despedir porque tem uma multidão de fanáticos correndo atrás de mim querendo me linchar. E olha que eles nem leram esta linhas. É que estou com barba e cabelo grandinhos e estão me confundido, claro, com Judas. Por que não me confundem com Jesus Cristo? Ah, daria no mesmo! Só que, em vez de me linchar, eles me colocariam na cruz. Ó my God!
 
Ronaldo Rodrigues

Tenemos papa (crônica de Ronaldo Rodrigues)

Pois é, torcida brasileira! Não é que deu Argentina na Copa do Mundo do Vaticano! Quem vai ocupar o trono de tio Pedro é um deles! Los hermanos devem estar muy contentes, regalados com esto inolvidável acontecimiento (será que derrapei muito no portunhol?).

Agora é que os vizinhos vão se achar! Vão dar um brilho no sapato de salto alto e proclamar o tango como ritmo universal.

O título foi conquistado com o cardeal argentino correndo por fora, jogando apenas para cumprir tabela. Fazendo essa catimba, tipicamente argentina, ele driblou todas as expectativas e ainda botou pra escanteio um brasileiro favorito ao posto de campeão. Não deu outra, levou a taça. Isso é que é campanha!

Pausa para um trocadilho infame, porque eu também tenho direito: o cardeal brasileiro entrou pelo Vaticano. Ui!

Prosseguindo. Vamos ao segundo tempo desta crônica:

Os argentinos recusam a opinião pública mundial, que aponta como zebra a vitória do cardeal nascido na pátria de Maradona. A Torcida Organizada Che Guevara Sin Perder la Ternura já organiza passeatas de protesto e promete fazer um estrondoso panelaço en la Plaza de Mayo.

Por falar em Maradona, a igreja formada por fãs que cultuam o gorducho se rendeu à emoção de ter um papa argentino e admite o novo Sumo Pontífice como o próximo ídolo. Maradona passará ao modesto posto de Deus, o que, convenhamos, tem tudo a ver com seu estilo e ego.

Pausa para fofoca de bastidores: dizem que Maradona cheirou muito (opa!), chorou muito ao tomar conhecimento da notícia.

Fito Paez foi convocado para compor o hino de louvor ao novo papa, que já deu entrada nos papéis para a beatificação de Messi.

Os especialistas arriscam suas opiniões sobre a atuação do novo papa. Qual será o esquema? Será um jogo aberto, como João XXIII? Vai pra galera e correr pro abraço, como João Paulo II? Ou será retrancado, como o papa-reserva, Bento XVI?

Agora não adianta chorar, torcida brazuca! Vamos ter que aturar o sarro dos argentinos quando o papa campeão der a volta olímpica na Praça de São Pedro.

Escolha de papa é assim mesmo: é uma caixinha de surpresa, são 115 cardeais contra 115 cardeais, crássico é crássico, eu venho de uma contusão, mas o professô acreditô em mim, me escalô, eu vô dá tudo de si, respeitando o adversário, o importante é competí e, se Deus quisé, saí daqui com os três pontos etc. blá-blá-blá e tal…

Ronaldo Rodrigues