A noite de um dia duro

Conto de Ronaldo Rodrigues

A chuva me levou para baixo da marquise da lanchonete. Chuvinha rala, daquela que demora a passar, mas molha do mesmo jeito que chuva grossa. Sem dinheiro, tinha passado o dia andando pela cidade, olhando para o chão, tentando encontrar alguma nota de cinco reais, pelo menos, perdida em alguma sarjeta. Aí a garçonete saiu de dentro da lanchonete com vinte reais na mão:

– É o senhor que está esperando o troco? 

Fiquei parado, do mesmo jeito que estava. Olhei para os lados, me certificando se ela falava mesmo comigo. Não deu tempo de responder nada. Ela me entregou os vinte reais e voltou para dentro da lanchonete. Fiquei ali parado, com os vinte reais na mão, pensando todas as coisas a seguir:

“Será que eu devolvo? Passei o dia procurando cinco reais perdidos na rua e agora me cai do céu, que nem essa chuva, uma nota novinha de vinte reais”.

“Tenho que devolver imediatamente. Seria roubo e, mesmo lascado do jeito que estou, jamais pensei em roubar nada de ninguém. Não posso ficar com algo que não me pertence”.

“Ah! Que se dane! Eu não forcei ninguém a me dar nada, muito menos dinheiro”.

“O que minha mãe pensaria disso? Meu pai desaprovaria na hora. Mas também quem mandou ele só me deixar de herança a honestidade? Meu irmão iria me achar um otário se eu devolvesse”.

“O que fazer, santo Deus? Esses vinte reais podem me livrar dessa broca medonha que estou sentindo”.

Minha consciência não me deixou ir embora com o dinheiro. Quando já me dispunha a devolvê-lo, a garçonete, acompanhada de um homem enorme, saiu de dentro da lanchonete, apontando o dedo gorduroso para mim:

– Taí o homem que ficou com o seu troco! Pensei que era dele!

O homem me olhou de alto a baixo e avançou em minha direção. Tentei explicar que a moça não me deu tempo de esclarecer a situação, mas fui calado com o soco que o homem desferiu. O soco me fez recuar e pisei num cachorro, que também se protegia da chuva. O cachorro cravou os dentes com toda a sua força de cachorro de rua na minha magra canela.

Um carro de polícia passava pelo local e a garçonete o parou, gritando:

– Polícia! Esse cara tentou dar um golpe! Ele ia ficar com o troco do nosso cliente!

Fui cercado rapidamente pelos policiais, que já vieram com todo o arsenal a postos. Entendi que não adiantaria nada tentar explicar e saí correndo. Os cinco tiros me pegaram em cheio. Caí no meio da rua e o carro do lixo passou por cima de mim. Fiquei jogado ali, a chuva se intensificou, o sangue escorreu, a nota de vinte reais se encharcou de lama.

Quando a ambulância chegou, eu já estava morto. De repente, perdi a fome e a necessidade de dinheiro.

Se eu tivesse o poder de matar

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ah, se eu tivesse o poder de matar sem levantar suspeita. Sem ter que apertar um gatilho. Sem precisar atirar uma faca. Sem ter que ver sangue jorrando. Sem usar as mãos. Só o pensamento.

Mataria esse motoqueiro que acaba de passar fazendo um barulho que me impede de ouvir o diálogo que desvenda todo o mistério do filme que passa na televisão neste momento.

O barulho do motor da moto é tão alto que mesmo pegando imediatamente o controle remoto e aumentando o volume ao máximo não consigo ouvir o que o brilhante historiador, personagem principal do filme, diz à mocinha apaixonada, que ouve com toda atenção essa verdadeira revelação sobre a cultura universal.

Ah, se eu tivesse o poder de matar à distância, mataria esse vizinho ensandecido, que ouve música da pior qualidade, no mais alto volume que pode alcançar seu supermordernérrimo-pra-caralho-ao-extremo aparelho de som.

Pronto. Desisto de assistir ao filme. Não é um filme de ação e seu roteiro se sustenta no diálogo. E eu não posso ouvir o que a jovem mocinha diz ao experiente historiador, que tem resposta pra tudo, porque um carro passa em altíssima velocidade, fazendo chiar seus oitenta pneus e batendo em cheio nas paredes descascadas dos meus tímpanos.

Ah, se eu tivesse o poder de matar sem deixar pistas, rastos e vestígios. E revestido de todos os álibis, perdoado por todas as leis, absolvido por todos os tribunais, inclusive o da minha consciência. Eu exerceria esse poder agora mesmo, e antes de agora, e depois de agora. Até que não restasse sequer um ser humano ou coisa ou fenômeno da natureza que pudesse interromper esse meu poder, depois de um dia inteiro de renúncia e frustração e solidão e mediocridade e medo, esse mínimo e mísero poder de assistir a um filme.

Viva a segunda-feira

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Será que é só comigo? Ou será com todo mundo? Hoje de manhã foi assim. Todo mundo que passava por mim na rua fazia uma cara estranha. Me senti scanneado várias vezes, os olhos das pessoas me virando pelo avesso, vasculhando a minha alma. Alguns até falaram coisas a meu respeito entre si. Outros falaram mesmo se direcionando a mim, com frases que não fiz questão de escutar, mas me pareceram ofensivas, a julgar pela expressão facial dos falantes.

E hoje é segunda-feira, dia que acredito ser de recomeço, de astral elevado para enfrentar a semana. Me vesti até com mais apuro que de costume. Coloquei uma camisa social, penteei os cabelos, calcei uns sapatos pouco surrados. Ih! Vai ver foi isso! Agora entendo. Me desculpem aqueles que me querem sempre esculhambado. É terrível criar um estilo sem estilo. E às vezes precisar violar um pouco minha imagem violada. Precisar me sentir participante dessa sociedade uniformizada e uniformizante. Precisar conformar minha rebeldia aos padrões estéticos da maioria, das pessoas aceitas, dos adaptados.

Mas a segunda-feira prossegue e os olhares atravessados e as palavras depreciativas não poderão me deter. Eu, sim, vestido novamente com meus farrapos, posso desafiar os modelos de conduta social e até me dar o direito de não mandar ninguém se foder.

Caixa preta (para ler durante o voo – crônica de Ronaldo Rodrigues)


Atenção, senhores passageiros!

Pedimos que não se assustem se, por acaso, olharem à esquerda. As turbinas foram, momentaneamente, desligadas.

Pedimos que não entrem em pânico ao olhar à direita. As turbinas desse lado também foram desligadas. Apenas por alguns momentos.

Tudo não passa de mera operação de contenção de combustível.

Aquele fogo saindo em grandes labaredas não significa perigo algum. É considerado um incêndio de pequenas proporções dentro das especificações da indústria aérea mundial.

De modo algum se assustem com a fumaça, que é comum nessas ocasiões.

Não se apavorem ao notar alguns paraquedistas saltando do avião. Trata-se de nossa dedicada tripulação que resolveu antecipar suas merecidas férias.

No momento, só eu, o copiloto automático, está no comando desta aeronave. 

Estamos sobrevoando o oceano.

O tempo é bom e a visibilidade melhor ainda.

Para finalizar, algumas perguntas:

– Alguém entre vocês tem alguma noção de pilotagem?

– Há quanto tempo vocês não testam seus nervos e sua capacidade de superar desafios?

– Há quanto tempo vocês se entregam ao tédio de uma vida segura, esquecendo o prazer de viver perigosamente?

Obrigado pela compreensão e aproveitem o resto da viagem. 

Isto é uma gravação…

Isto é uma gravação…

Isto é uma gravação…

Ronaldo Rodrigues

Bloco do Eu Sozinho

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sigo eu, sozinho, seguindo a mim mesmo, neste bloco de amigos e inimigos invisíveis, alguns inexistentes, sobras de outros carnavais. Pálidas lembranças de confetes e serpentinas. Fantasmas de pierrôs e arlequins. Saudade de colombinas.

Sigo cego, a esmo, sempre o mesmo, sob a chuva. Não a chuva de papel picado. A chuva, essa que vem devagarinho e fica por muito tempo, a desmanchar a maquiagem, a se misturar às lágrimas que caem da máscara, as lágrimas formando outra chuva.

Meu samba atravessa a avenida e eu atravesso o samba. Sou desclassificado, é lógico. A corte marcial do Rei Momo é implacável. Se ano que vem ainda existir carnaval, se houver ano que vem, devo desfilar no segundo grupo. Mas, como sei que não posso deixar o samba morrer, que não posso deixar o samba acabar, o jeito é me acabar no samba.

Sigo esse bloco, sou esse bloco, despido de fantasias, em choque com a realidade, e espero me recuperar da ressaca nas cinzas de outro carnaval. Quarta-feira há de chegar, a me cobrar responsabilidades de quem sobreviveu ao folguedo, e eu estarei preparado (estarei preparado?) para ir ao seu encontro.

Amanhã sem falta

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Amanhã sem falta vou subir a montanha e, contemplando o mar, vou gritar ao universo o que vim fazer neste planeta.

Amanhã sem falta vou destruir as muralhas que separam as pessoas e dar a elas a esperança do fim da discórdia e da derrota.

Amanhã sem falta vou caminhar pelas alamedas do Calvário disposto a retirar da cruz aquele homem cabeludo e barbudo, ensaguentado e incompreendido.

Amanhã sem falta vou me deixar de me importar com o fato de respirar o mesmo ar que os incompetentes e medíocres.

Amanhã sem falta vou encontrar um emprego que me garanta mais do que o pagamento das contas no fim do mês.

Amanhã sem falta vou ficar milionário e encher meus castelos de aparelhos eletrodomésticos que aliviam a solidão.

Amanhã sem falta vou libertar os pássaros aprisionados nas gaiolas de concreto.

Amanhã sem falta vou conclamar para a luta todos os deserdados da paixão e os fantasmas da loucura.

Amanhã sem falta vou partilhar o pão que Deus amassou com a lágrima e o suor do rosto de todos os encarcerados.

Amanhã sem falta vou libertar a tempestade de fogo sobre Sodoma e Gomorra até que não sobre qualquer indício de pensamentos maléficos.

Amanhã sem falta vou terminar esta crônica.

Crise dos 48 – Poema trágico de Ronaldo Rodrigues


Crise dos 48 – Poema trágico de Ronaldo Rodrigues

48 anos e até agora nada
nada que um homem possa construir
não tenho carro
não tenho casa
não tenho nada
nada que o fogo possa consumir

48 anos e até agora nada
nada do que esperava eu consegui
não tenho meta
não tenho sonho
não tenho data
nada que o tempo possa destruir

48 bisonhas primaveras
48 verões glaciais
48 outonos cheios de sono
48 invernos infernais

48 anos e até agora nada
nada de interessante eu descobri 
não tenho mapa
não tenho corda
não tenho escada
nada que me ajude a fugir

parabéns pra você
nessa data esquecida
muitas calamidades
muitos danos na vida

Ronaldo Rodrigues

De trem

Conto de Ronaldo Rodrigues

Numa panorâmica pelo quarto, vamos encontrar um cesto de lixo transbordando papéis amassados e copinhos de café. Sobre a mesa, uma velha máquina de escrever, uma caneta com tampa mordida e um cinzeiro com ponta de cigarro ainda acesa.

O homem nu, de gravata e chapéu, nada consegue escrever, apesar de sua insistência e do relógio na parede sempre avançando as horas e o lembrando do compromisso inadiável.

Deitada nua no sofá, a mulher dorme. Seu rosto denuncia um sonho bonito. Ela sorri e murmura algumas frases incompreensíveis.

O homem nu, de gravata e chapéu, veste a calça, o paletó, coloca os sapatos e acorda a mulher, mostrando o relógio na parede. É chegada a hora da partida. A mulher balança levemente as mãos, dissipando uns restos de sonho, e também se veste. Os dois saem. 

Na escuridão, no mais absoluto silêncio, o gato desce do sótão e senta-se diante da máquina de escrever.

***   ***   ***   ***   ***   ***

Homem e mulher chegam apressados à estação. Por pouco não perdem o embarque. O trem dispara velozmente por entre montanhas, vales e florestas. No próximo túnel, as trevas da noite engolirão o trem, que vai cair no abismo. É um trem exclusivo de suicidas.

Segundos antes de o trem se desmantelar na muralha do vazio, a mulher olha para o homem e pergunta se ele conseguiu escrever a carta de despedida:
Não consegui. Espero que o gato consiga…

Ou seria um poema?

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Marquei encontro com a solidão

Ela nunca falta. Quando penso que não veio, ela me flagra dentro da caixa de sapatos. Dentro da caixa de fósforos. Dentro do aquário de segurança máxima. E me vem coisas na cabeça. Como será a solidão pra mim? Verde por trás da fumaça? Árvore desfolhada contra uma paisagem de arranha-céus? Nuvem tomando forma na tarde? Resto do navio a me pôr a salvo do naufrágio? Toco de vela rompendo a escuridão? Tartaruga em início de jornada? Canivete cego rompendo o cerco? Cisco no olho da verdade? Raio no céu do desespero? Ciranda cantada nos quintais da infância? Farol centelha lume vagalume?

Minha solidão não me deixa

Não dá trégua. Marca colado. Entristece o mais feliz dos meus poemas. Anoitece de tarde e traz a madrugada no rugido do rush, exatamente ao meio dia. Inunda de tédio a larga avenida. Sangra o horizonte e violenta a violeta.

Minha solidão nunca falha

Pode falhar o goleiro, mas a minha solidão não. E nubla os olhares. Faz crescer cabelo nos pontas dos ponteiros. Alonga a brasa do cigarro. Faz o relógio perder a chance de ficar parado. Acelera a praga que virá nos destruir.

Vende-se uma solidão

Não. Não vou enganar ninguém. Minha solidão não é nova, mas também não é de segunda mão. Não tem muitas qualidades. Aliás, ser solidão é sua única qualidade. Aproveitem a ocasião, mas não estou mendigando. Compre logo essa solidão antes que eu desista de vendê-la ou antes que ela se transforme em outro sentimento. Fome, por exemplo. Aí eu requento a marmita e acabo com ela.

Jesus era boleiro

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Mais uma descoberta de textos apócrifos da Bíblia revela lances nunca antes imaginados da vida de Jesus. Sabe-se agora que o Homem de Nazaré foi um grande futebolista.

Ele tinha 12 anos apenas quando deixou os sábios do templo de queixo caído com tanta sabedoria sobre futebol. Foi essa a última vez que Jesus foi visto. Até então nunca se soube o que tinha feito até os 30 anos, quando retornou como o Rei dos Reis da Cocada Preta, o Cara, o Bam-bam-bam, o Messias e tal.

Os textos revelam que Jesus passou parte desse tempo treinando com os essênios, donos da melhor escola de futebol da época, que vislumbraram no menino um enorme talento para jogadas milagrosas e dribles fora do comum. Grandes estrategistas da pelota, os essênios usavam técnicas revolucionárias, como ioga e meditação.

Depois de passar por pequenos times hebreus, Jesus conseguiu uma vaga no Estrela de Davi Futebol Clube, time da elite judaica. O desempenho do jovem atleta logo chamou a atenção do todo-poderoso treinador Zagalo, da Zagalileia (ainda novo, com 147 anos), e se firmou como astro da equipe.

Jesus levava uma vida de atleta exemplar. Não fumava, não fazia sexo antes dos jogos (nem depois) e a quem lhe oferecia bebida ele dizia:
– Afasta de mim esse cálice!

Jesus estava em plena forma quando foi escalado para jogar contra a Seleção Imperial Romana, cujo cartola-mor, Euricus Mirandas, queria a cabeça de JC, como já tinha feito com João Batista, irmão de Júlio Batista e Léo Batista.

O jogo era de vida ou morte e Jesus era considerado o salvador da pátria. Depois de dar seu sangue e suor e não conseguir marcar um gol sequer, a arquibancada em peso passou a torcer contra Jesus, responsabilizando-o por todos os pecados da humanidade. Torcida de futebol é muito exagerada e quando o time está perdendo quer pegar qualquer um pra Cristo.

No final da partida, depois da surra que levou, Jesus ganhou como troféu uma coroa e foi levado ao Calvário. O final da história todo mundo já sabe.

Em Macapá é assim

Crônica de Ronaldo Rodrigues


Prestando atenção no modo de ser e falar desse povo, do qual orgulhosamente faço parte há 16 anos, saiu este texto. Ele é minha homenagem aos 256 anos de Macapá.

Sobre uma mulher bonita, diz-se: – Presta muito!

Sobre quem está doente ou sem dinheiro: – Esse tá blefado!

Sobre uma festa: – É um piseiro!

Sobre um lugar muito cheio de gente: – Tá teitei!

Sobre alguém afobado: – Esse tá afudegado!

Sobre alguém que vai transar: – Esse vai furar couro!

Sobre algo feito rapidamente: – É um-dois!

Quem vai passar o fim de semana no sítio: – Vou para o terreno.

Quando um papagaio corta outro, a garotada grita: – Au vaite-se! (com as variações Au vai-se! e Ovaite-se!).

Quando a coisa comentada não merece muita atenção: – À toa…

Quando alguém é muito sorridente, alto astral, alegre: – Hummm… Só ele quer ser feliz…

Se alguém marca um compromisso para, digamos, meio-dia: – Vamos nos encontrar de meio-dia.

E a campeã das campeãs das expressões: quando algo ou alguém escandaliza ou surpreende ou causa muita admiração, fala-se o indefectível: – Fooooooda-se! E quando a pessoa quer amenizar a expressão, vira: – Fôôôôôôlego!

***   ***   ***   ***   ***

Claro que tem muito mais e vou contar com vocês para completar esta crônica. Quem conhecer outras expressões acrescente aí nos comentários. Tenho que sair agora porque deu uma vontade de… – Tu saaaabes, Patinhas…

A propósito de canetas

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Mesmo com todo o avanço das formas de escrever ainda há quem use caneta. Eu escrevo no computador, mas não dispenso caneta. Geralmente, começo o texto rabiscando e dou uma boa adiantada. Aí, passo para o computador e prossigo. Ainda mais quando dá aquela travada na mente e o texto não quer sair. A solução que encontro é essa. Acho até estranho quem escreve direto no computador, assim como devem me achar estranho escrevendo com essa quase peça de museu. Já fiz até um texto sobre a caneta, reconhecendo seu valor e torcendo para que ela acompanhe esta humanidade por muito tempo e que só deixe de existir quando eu também já tiver virado peça de museu.  Lá vai o texto:

– Da caneta sai o líquido que dá forma às letras. É a caneta que escreve ou quem escreve é a mão que a guia? É do cérebro que sai o texto ou é a caneta que o cria?

– Desconfio que caneta tem vontade própria. Creio que ela, à vezes, fica com raiva dos dedos que a apertam e por isso saem xingamentos, palavrões e rasuras sem que o escritor tenha nada a ver com isso.

– Desconfio também que não é o poeta que utiliza a caneta para escrever o poema. É o poema que utiliza a caneta que, por sua vez, utiliza o poeta.

 – Caneta que fica muito tempo sem ser usada se vinga. Sai por aí, escrevendo nas paredes aquilo que só deveria ser escrito nos diários mais íntimos.

– Caneta vermelha não escreve com tinta, mas com sangue. Assim como muitos escritores derramam sangue e arriscam a própria vida para que suas palavras sejam lidas.

– Caneta azul é aérea cor de mar ou aquática cor de céu?

– Se quem escreve voa, a caneta também voa e talvez seja ela o motor do voo.

– Caindo do bolso será suicida ou é a adrenalina que a movimenta?

– Caneta verde tem parentesco com o plâncton. Se o escritor que a transporta morrer afogado, a caneta alimentará as baleias, que são imensas, mas têm gargantas pequeninas por onde só passam plânctons.

– Caneta preta tem ancestral africano, como todo mundo, e pode ser transformada em instrumento musical e escreve, na pele branca do papel, liberdade para todas as cores, baleias, plânctons, suicidas, afogados e escritores.

Cedo pra quê?

Crônica de Ronaldo Rodrigues


Ontem à noite estive num show que homenageava Cazuza. E isso veio ao encontro do que estive pensando durante o dia. Algumas opiniões asseguram que Cazuza morreu jovem, que Cazuza morreu cedo. Mas, penso eu, cedo pra quê? Como se delimitam essas coisas? A medida da vida de alguém. A experiência de um ser humano não é mensurável. Ou é? Pode-se viver mil anos a dez ou dez anos a mil. Confesso que fico perplexo diante dessas afirmações. Tipo: Cássia Eller morreu cedo. Renato Russo. Chico Science. Como morreram cedo, se deixaram seus nomes gravados, cravados, marcados na história de uma das maiores músicas deste planeta, que é a música brasileira?

Vamos além: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison. Viveram pouco? Como, se até hoje falamos neles? Como, se ainda ouvimos suas músicas, suas mensagens? Elis Regina, Clara Nunes, Gonzaguinha. Talvez nós tenhamos morrido para eles, caso não os tenhamos compreendido.

Confesso que sou atraído pela ideia de que o sujeito chega, dá o seu recado e some. Como um cometa, um raio, um suspiro. Como alguém que nem teve essa notoriedade toda e nasceu e viveu e explodiu.

E aí vêm aquelas questões: se John Lennon não tivesse sido assassinado, o que teria produzido, o que estaria produzindo? E se a galera dos Mamonas Assassinas não tivesse feito aquela viagem de avião, o que teria acontecido com eles no decorrer de suas vidas? 

Não há resposta, a não ser que se procure a significação mística de tudo isso. Confesso estar sem paciência neste momento. Ainda mais que passam das quatro da madruga, estou parcialmente bêbado e preciso terminar esta crônica.

O Adelson me aconselhou a ler sobre Einstein para compor este texto. Mas não há tempo. Ou há tempo. Tudo é relativo. Não é, Adelson? Não é, Einstein?

Em todo caso, devo registrar: nunca usei tanto o sinal de interrogação. Mas o tema exige, precisa, quer. E se faz.

Para terminar, digo que cheguei aos 48 anos de idade e sinto que ainda não saí dos 15. Sinto que é tarde. Sinto que é cedo. Mas cedo pra quê?

Aniversauro

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sempre que chega a data do aniversário aparecem certos questionamentos. Comigo, pelo menos, é assim. Penso na vida percorrida até aqui e na proximidade da morte. Não penso na morte como algo pesado. Penso nela como recompensa. Pois lá vão algumas dessas paranoias:

– Várias vezes achei sem graça as coisas que me pertencem. Meu nome, meu signo, a data do meu nascimento. Hoje, já superei ou me acostumei com tudo isso, o que mostra minha acomodação diante dos fatos.

– Vim ao mundo meio que de empréstimo. Nada meu me pertence. Meu nariz, meus olhos, meus óculos. A morte deve me libertar dessas coisas e devolvê-las a quem de direito.

– Ninguém me perguntou seu queria nascer gente, pássaro, planta… Aí nasci eu.

– Luto insistentemente para não legar ao mundo e aos meus irmãos de geração as minhas maiores habilidades: o estranhamento, a solidão, a insegurança, a covardia e o medo.

– Sou grato a tudo que me serve. Roupas, sapatos, cigarros, companhias. Não são muitas coisas, mas me contento com elas.

– Gostaria de deixar algo de chuva, de cheiro de terra molhada, de fim de tarde. Algumas pegadas a mais no labirinto da existência.

– Amizades foram feitas, desfeitas, insatisfeitas. Algumas mulheres amadas armadas desalmadas ficaram ao longo do caminho. Flores não colhidas. O que foi e o que poderia ter sido.

– Várias vezes me senti como alguém que foi deixado esperando no cais, na estação ferroviária, no aeroporto, na concha, dentro da caixa de fósforos.

– Por que não fugi com o circo ou tomei veneno? Por que insisto em enfrentar o deserto?

– Tenho alguns companheiros inseparáveis, como a solidão, que me acompanha, a literatura, que me salvou, e Drummond, que me guiou. 

– Penso que 90% da humanidade existem somente para atrapalhar a vida dos 10% restantes. Confesso minha impaciência com meus semelhantes. Geralmente, quando alguém me bate, penso em vinganças terríveis, mas fico só pensando e, no final das contas, acabo agradecendo ao agressor.

– O tempo até aqui me foi suficiente. Tive tempo para crer em Deus, tempo para duvidar de Deus, tempo para me reconciliar com Deus. E até me sentir o próprio. 

– Devo dizer que sou grato à vida que me foi dada. Fui / sou / estou / serei feliz.