Poema de agora: A boca fechada – José Saramago


Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é doutra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vasa de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quanto me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José de Sousa Saramago (Azinhaga, Golegã, Portugal 16 de novembro de 1922 – Tías, Lanzarote, Espanha, 18 de junho de 2010) – Além de escritor, foi contista, dramaturgo, jornalista e poeta português. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1998, assim como o Prêmio Camões de Literatura. Dentre sua vasta obra, publicou três livros de poemas: PoemasPossíveis (1966), Provavelmente Alegria (1970) e O Ano de 1993 (1975).

Poema de agora: Poesia que não se esgota (Fernando Canto)


Poesia que não se esgota

A poesia não se esgota no pensamento porque ela é o esforço da linguagem para fazer um mundo mais doce, mais puro em sua essência;

A poesia procura tocar o inacessível e conhecer o incognoscível na medida em que articula e conecta palavras e significados;

Cada imagem representada, projetada pelo sonho, pela imaginação ou pela realidade, é um símbolo que marca o que sabemos da vida e seus desdobramentos, às vezes fugidios.

Mas nem sempre é o poeta o autor dessa representação, pois tudo o que surge tem base social e comunitária, depende da vivência de realidade de quem propõe a linguagem e a criação poética.

Quando isso ocorre estamos diante da autenticidade do texto poético. E todos somos poetas, embora nem sempre saibamos disso. E ainda que nem tentemos sê-lo.

Fernando Canto

Macapá tem 24 horas de intervenção poética de incentivo à leitura

Por John Pacheco, do G1 Amapá

Praças, árvores e paradas de ônibus do Centro de Macapá ficaram mais poéticas na noite desta quinta-feira (13), com a intervenção artística do movimento literário Poesia na Boca da Noite. Poetas e amantes da arte ornamentaram os pontos com trechos de poesias de escritores amazônicos, com a finalidade de inserir literatura na rotina diária do trabalhador ou estudante.

A ação, promovida em alusão ao Dia da Poesia – 14 de março -, segue até a noite de sexta-feira (14), totalizando 24 horas de atividades, distribuídas entre leitura de poemas, sarau poético e o “esquecimento” de livros em pontos estratégicos, como forma de incentivar a leitura em locais com grande fluxo de pessoas.

“Na verdade, não é um esquecimento de verdade, vamos deixar os livros nas paradas de ônibus para alguém pegar e ler, com a condição de que ele tem que deixar em outro ponto com o mesmo objetivo, e assim várias pessoas terão a oportunidade de ler uma publicação”, disse a poetisa Alcinea Cavalcante, uma das coordenadoras do movimento.

Os pequenos trechos literários pendurados nas árvores são acompanhados de origamis, tradicional arte japonesa de dobraduras de papel, formando representações de animais e objetos. Alcinea conta que faz há 3 anos junto com os membros do Poesia na Boca da Noite esse tipo de produção, sempre de forma voluntária.

“Queremos que quando a cidade amanheça ela já esteja poética, e observamos isso nas edições anteriores, quando profissionais da noite como garis e mototaxistas tiraram um tempo no trabalho e leram os varais de poesias espalhados pela cidade”, lembra.

Em 2012, o Poesia na Boca da Noite lançou um livro contendo publicações dos escritores que integram o movimento, entre eles Deusa Ilário, César Bernardo, Rui do Carmo, Thiago Soeiro, Jhenni Quaresma e Rostan Martins.

Poema de agora: É o sistema, mermão!


É o sistema, mermão!

Em prol do desenvolvimento
E do progresso do Brasil
Vista grossa e mão molhada
Tudo certo, ninguém viu

E assim se vai passando
Da quitanda à empreiteira
Vão aos poucos se ajeitando
Quase de qualquer maneira

Até que estoure uma barragem
E inunde várias cidades
Até que tenha um apagão
E os hospitais não possam salvar os doentes
Até que contaminem a água
E a população sofra intoxicada
Até que incendeie uma boate
E mais de 200 morram sem razão

Todo mundo enxerga o problema,
Mas quem vai querer uma solução
Quando maior rigidez em tudo
Das obras à educação
Vão entravar todo o sistema
De facilidades e corrupção?

Graciliano Santos

Poema de agora: Utopia ( @LaraUtzig )


Utopia 

Aumente o zoom
Consegue enxergar 100%?
Somos todos um.
Haverá um tempo
Em que não será preciso
Nenhuma lupa
Nem juízo
Pois não existirá culpa.

Aumente a mente
Consegue enxergar no total?
Somos todos gente.
Haverá um dia fatal
Em que não será necessário
Nenhum holofote
Nem ego exacerbado
Pois não existirá fraco ou forte.

Aumente a visão
Consegue enxergar bem?
Somos todos canção.
Haverá um dia também
Em que só se ouvirá uma voz
Nenhum semitom
Nem desafinação feroz
Pois não existirá falta de dom.

Aumente o panorama
Consegue enxergar com exatidão?
Somos todos raça humana.
Haverá uma época de revelação
Em que só se falará de abundância
Nenhuma terra infértil
Nem ganância
Pois não existirá tiro de projétil.

Aumente a perspectiva
Consegue enxergar com senso?
Somos todos massa viva.
Haverá uma era de consenso
Em que o foco será a mudança
Nenhum ócio contraproducente
Nem desejo de vingança
Pois a prioridade será o presente.

Aumente a lente
Consegue enxergar direito?
Somos todos esse presente.
Haverá um período de respeito
Em que o objetivo será a unidade
Nenhuma grade, cerca ou muro
Nem individualidade
Pois a intenção será construir o futuro.

Lara Utzig

Crise dos 48 – Poema trágico de Ronaldo Rodrigues


Crise dos 48 – Poema trágico de Ronaldo Rodrigues

48 anos e até agora nada
nada que um homem possa construir
não tenho carro
não tenho casa
não tenho nada
nada que o fogo possa consumir

48 anos e até agora nada
nada do que esperava eu consegui
não tenho meta
não tenho sonho
não tenho data
nada que o tempo possa destruir

48 bisonhas primaveras
48 verões glaciais
48 outonos cheios de sono
48 invernos infernais

48 anos e até agora nada
nada de interessante eu descobri 
não tenho mapa
não tenho corda
não tenho escada
nada que me ajude a fugir

parabéns pra você
nessa data esquecida
muitas calamidades
muitos danos na vida

Ronaldo Rodrigues

Poema de agora: Rainha, mãe e flor (linda homenagem do amigo Thiago Soeiro para sua mãe, Raimunda, que faz aniversário hoje)


Rainha, mãe e flor

Minha mãe nunca viu o mar, mas cabe em seus olhos a experiência de quem viveu toda a fúria de uma vida sofrida. Suas mãos calejadas guardam história que hoje parecem borrões se apagando ao vento. Seus olhos negros guardam uma ternura tão doce que me emocionam. Poucas pessoas no mundo sabem devolver para a vida sempre o melhor de tudo, para ela o copo sempre está meio cheio, e se hoje foi difícil, amanhã será melhor. Toda essa fé de mulher brasileira, negra, nordestina e sonhadora, ela carrega a vida, sempre nos ensinando a ser fortes. Teve seis filhos com muito amor, e para quem passou parte da vida sozinha uma família grande é realização. 

Minha mãe nunca teve tantas chances na vida, nasceu em um tempo e lugar onde não se tinham escolhas. Começou a trabalhar cedo, estudou só até o fim do ensino fundamental, mas nunca deixou de ler, e isso sempre foi seu refugio que a levou para tantos lugares. 

Mamãe nunca viu o mar, mas sonhou com ele tantas vezes e me contava que quando cheguei a ver o mar chorei de emoção. Ela me mostrou o mundo das palavras, e foi quem fez que eu me apaixonasse por elas. Se hoje sou jornalista e poeta é porque aprendi com o amor dos versos nascidos em seus olhos. Ela sempre me pede um poema e guarda todas as cartinhas que fiz deste o jardim de infância. 

Mamãe nunca soube, mas ela já nasceu um poema. 

Feliz aniversário mãe! Te amo.

Thiago Soeiro