Faz muita diferença ser chamada de “Fadinha…” – Crônica porreta de Clicia Di Miceli sobre sua vida contextualizada com o feito de Rayssa Leal

Clícia Di Miceli – Foto: Mara Caldas.

Crônica porreta de Clicia Di Miceli sobre sua vida contextualizada com o feito de Rayssa Leal

Em 1989, quando eu completei 13 anos, pedi para os meus pais um skate de presente de aniversário. Naquele momento, esse era o desejo de uma menina, saindo da infância e entrando na adolescência. Ser adolescente naquele tempo era se guiar muito pelas coisas que vinham do Rio de Janeiro. Moda, marcas, gírias, revistas e um universo cheio de cores shock e cheirando a mar nos ajudavam a construir um imaginário de juventude bronzeada e descolada, tipo turma da Armação Ilimitada do Juba, Lula, Zelda Scott e Bacana.

Entre uma leitura e outra na revista Capricho, vi uma matéria de garotas cariocas e paulistanas que estavam começando a dominar a cena do skate nessas cidades. Aquilo me pegou! Achei do cacete e comecei a me imaginar em um. Passei a frequentar as bancas, indo atrás das revistas especializadas, que não eram muitas e menos ainda, eram as publicações de matérias com elas.

Para ganhar o meu skate, lembro que comecei o pedido pela mamãe que sempre foi patrocinadora dos sonhos dos filhos. Dessa vez ela não me deu muita confiança. Não se negou, mas também não comprou. O papai, figura mais fácil no tema “comprar as coisas”, me perguntou o que eu queria ganhar de aniversário, e claro, respondi de bate e pronto. Eu não sei se na cabeça dele a informação sobre skate já estava compartimentalizada como algo relacionado a gênero, juro que não sei, mas sei que ele comprou e isso é o que me faz ter mais essa linda lembrança com ele. Se, para alguns, um objeto nas mãos de uma menina causava a estranheza e a necessidade de comentários grosseiros e bem diferente de ser chamada de Fadinha, pra mim, ele estava apenas sendo a versão mais linda de um pai realizando o sonho da filha meio criança, meio adolescente.

Nessa época, o papai tinha uma loja em uma das esquinas da rua Santos Dumont, e lá havia uma calçada enorme e rampeada, que acabou sendo o meu parque de diversão particular. Eu subia no skate pra suar, me equilibrar e treinar as manobras que eu via nas revistas. Pra mim, aquilo acabou sendo uma prática solitária. Eu não tinha amigas que andavam de skate, tampouco as que quisessem conversar sobre skate. Natural rsrs. Se juntar aos meninos, àquela altura, já seria demais. Nessa época do vai e vem do skate na calçada da loja, comecei uma paquerinha com um menino da vizinhança e lembro bem que entre uma conversa e outra ele disse que o que me fez chamar a atenção dele foi me ver andando de skate. #Morri hehehe. Pura autenticidade miguxos, simplesmente o brilho da verdade.

Depois de desgastado o primeiro par de rodas, parei. Já havia queimado a energia que queria e matado a minha vontade de andar me equilibrando sobre uma pequena prancha com rodas. Tempos depois, talvez em menos de uma década, comecei a ver pelas ruas de Macapá alguns grupos de meninas andando de skate. Elas se multiplicaram rapidamente e já não causavam estranheza e talvez não precisassem dar tanta explicação do que faziam.

Hoje o mundo se curvou diante de uma garotinha meio criança, meio adolescente e totalmente mulher, andando de skate. Por quê? A reposta não é sobre medalha…é sobre pureza, verdade, alegria, direitos, oportunidades e sobre deixarem as crianças serem livres e felizes. É sobre subir no Olimpo com os filhos, assim como fez o Sebastião no dia em que me deu um skate pra eu brincar e se livre.

Foto (feita pela Mara Caldas): Nesse dia, já estava próximo dos 15 anos, juntei coisas que tinham muitos significados pra mim, muitas já estavam encaixotadas e sem uso, mas quis guardar para sempre em uma foto. No sentido horário, o skate, o microfone da Xuxa, a mochilinha Karga, o Ursinho Mel, pai do Meladinho e o controle do Dynacom (videogame que eu dividia com o meu irmão). No visual, um cabelo repicado nas pontas já precisando de novo corte, um baita anel de tucumã (acho que nessa época eu já tava me tocando que eu e não era carioca e que o meu rio era o Amazonas), uma sandália Papete (respeite as sandálias Papete, ter uma era quase como ter uma medalha olímpica) e um casaco que eu sempre quis ter para amarrar na cintura e ser a mais mais das galáxias. A água de colônia, o porta-joias, a acetona, o leite de rosas e a lata de talco na penteadeira eu não vou registrar.

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