“Anastácia Livre”: Linn da Quebrada e Big Brother Brasil

Por Fernanda Fonseca

“Se a gente não discute o amor e ele não sai desse terreno do ‘intocável’ (…) não percebemos porque alguns corpos são mais amados que outros (…) corpos gordos, negros, trans, de pessoas com deficiência, a gente nem pensa nessas pessoas quando pensamos em amor”. Essa fala foi dita em um dos reality shows mais assistidos da América Latina e por uma travesti preta.

Lina, ou mais conhecida pelo público como Linn da Quebrada, entrou na casa mais vigiada do Brasil há 6 semanas e nesse curto período dentro do reality já fez história. Sim o programa ainda tá longe de acabar, mas a presença de Lina é tão marcante que parece que ela já está há anos na minha televisão, conversando com os outros confinados como se estivesse falando comigo e com o Brasil inteiro.

Lina é a segunda pessoa trans a participar do programa. A primeira foi Ariadna, em 2011, que também foi a primeira eliminada da sua edição. Na época, Ariadna foi vítima de constante transfobia, principalmente por parte da mídia que a acusava de “esconder” sua transexualidade. Recentemente, Ariadna desabafou em sua conta do Twitter sobre se sentir acuada com os ataques e ofensas que sofreu nesse período: “Quando alguém falar: Ariadna foi eliminada porque escondeu que era trans… olha o que faziam comigo na época! Apenas uma das milhares de capas de jornais que eu era humilhada…”.

Onze anos depois, Linn da Quebrada entra no BBB22 estampando em sua blusa a figura emblemática de Anastácia, mulher negra escravizada cujo rosto preenche os livros de história até hoje. Mas o que chamou atenção foi que a Anastácia que ilustrava a camisa de Lina estava livre, sem a mordaça que simbolizou por anos o legado cruel da escravidão no Brasil. Coincidentemente, na mesma semana tive que ler um texto para uma aula de comunicação e gênero na faculdade e, novamente, lá estava ele: o rosto de Anastácia, mas dessa vez com o instrumento que a silenciou por anos de sua vida. O livro era Memórias da Plantação, da escritora Grada Kilomba, e entre os vários temas da obra, o capítulo inicial intitulado “A Máscara: Colonialismo, Memória, Trauma e Descolonização” traz esse instrumento – a máscara usada por Anastácia – como “o símbolo das políticas coloniais e de medidas brancas sádicas para silenciar a voz do sujeito negro durante a escravização”:

“Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanas/os escravizadas/os comessem cana-de-açucar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tortura. Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento […].”

“O que poderia o sujeito negro dizer se ela ou ele não tivesse sua boca tapada?” e “O que o sujeito branco teria de ouvir?” são alguns dos questionamentos que guiam a análise da escritora nessa primeira parte do livro. Invocando a figura da máscara de Anastácia, Kilomba reflete sobre esse medo apreensivo de que se o sujeito escravizado falar, o colonizador terá que ouvir. Ou seja, seria forçado a encarar as verdades que o tirariam de sua posição confortável de ser o único permitido a criar uma narrativa.

Durante toda a minha leitura pensava em Lina e em sua presença avassaladora dentro do programa. Quando Grada discorre sobre a importância da fala que obriga os outros a encarar verdades desconfortáveis, essa ideia pode ser estendida para todos os grupos minoritários que sofreram e sofrem com o silenciamento até os dias de hoje. Quando Lina entra em um dos reality shows mais assistidos da América Latina e constantemente reafirma suas vivências enquanto travesti e negra, ela se coloca nesse lugar de sujeito que fala e que merece ser ouvida.

Agora, completado um mês do BBB22, Lina é uma das pessoas que mais se comunica dentro da casa. Desde depoimentos no ao vivo, explicando para todo o Brasil o uso correto dos seus pronomes, até conversas com amigas sobre amor e rejeição, Lina falou e continua falando. E entre erros e acertos, Linn da Quebrada se humaniza quando fala, e acaba humanizando todos a sua volta também.

E agora fica o questionamento: quem são as pessoas que nos acostumamos a ouvir quando o assunto é amor? E amizade? E autoestima?

Chega de monólogos com as mesmas perspectivas de quem, ao longo da história, sempre teve o privilégio de ser ouvido.

*Fernanda Fonseca é amapaense e acadêmica da Jornalismo na UnB.
Fonte: Site EscreviElas.

  • Uma boa defesa a respeito de um tema que ainda incomoda e cria rejeição por tudo que não é espelho. O ser humano não é uma ilha de adoração do ego. É um ser humano. Um mano do outro e das outras identidades que cada um escolheu para ser. É proibido proibir porque também queremos ser livres para viver intensAmante nossas escolhas. O livre arbítrio é quando temos a plena consciência de que somos responsáveis pelo que fazemos ou deixamos de fazer. É preciso viver e não ter vergonha de ser feliz.

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