Poema de agora: MARTE? NÃO VOU! – @alcinea

MARTE? NÃO VOU!

Não, meu bem.
Desta vez não vou contigo.
Marte não me seduz.
A água de lá não tem cheiro de mururé.

Em Marte, meu bem,não tem flores,
Logo não tem beija-flor.
Não tem mangueiras,
logo não tem aquela algazarra de periquitos
que inebria o poeta Fernando Canto.

Não tem praças, música, livros, papel e caneta.
Não tem poesia nem poetas.

Li no jornal que os habitantes de lá
tem voz metálica,corpo engraçado
e cara esquisita.
São todos verdes, todos idênticos, todos estranhos.

Você quer ficar verde de susto, meu bem?
Eu não.

(Alcinéa Cavalcante)

Poema de agora: Explicação – Por @alcinea

Explicação

Vivo do ato de escrever
sobre tragédias
e espetáculos
sobre o candidato vitorioso
e o derrotado
sobre o deputado corrupto
e o governante que finge ser honesto
sobre a exportação da mandioca
e a importação da farinha
sobre a fome
e a riqueza
sobre o real
e o dólar.
Perdoa-me, Anjo,
não sobrou tempo
para escrever
um poema de amor.

(Alcinéa)

Poema de agora: CAL CINZENTO – Luiz Jorge Ferreira

CAL CINZENTO.

Por trás do muro da casa caiada de branco lá adiante
(Onde o branco quase foi embora)
‘Clarice’ de Caetano se Desvirgina, e eu perco as asas

Por testemunha…A folha seca da árvore caída ao acaso
Na outra página, o cao de gesso dilata as
Narinas e minha prima em Portugal…Ofega

Eu coloco ouro, e mirra, na rima rica
Não queria ser Cristo, nem seu primo, João Batista
Quero minha cabeça comigo
E na passarela entre o meu umbigo, e a placenta no útero de minha mãe
Sem pedágio

Não que eu veja os retratos, não os roídos de traças
E não reconheça nele suas saudades.
Não que eu veja os sulcos dos discos
Sumidos, e pise no silêncio de pé
Não que a voz da Clarice na voz do Caetano
Soe agora estranha ao destempero
Dos meus ouvidos
Onde gritos são sussurros

Não que me observe nu no espelho
E não mais reconheça meu sêmen seco
No âmago das entranhas
Não… É uma palavra antiga
Quase minha inimiga, o nó da razão

Quando guardei o mar, guardei o não
Seu barulho dentro dos meus ouvidos
Seu fedor dentro do meu intimo
Seu afogar dentro da minha existência
Cinza… Enxofre… Escamas da minha pele… Flutuando loucas
Em mim o mar caber onde acabo,
Seu ir e vir no fixo infinito
E o sinal que adiante eu não estou eu

Por trás do muro da casa caiada de branco lá adiante
(Onde o branco voltou, e floresceu)
‘Clarice’ de Caetano engravida


Enquanto minhas asas de penas ásperas
Nunca mais nascerão em mim

Luiz Jorge Ferreira

*Do livro “Nunca mais vou sair de mim, sem levar as asas”. Rumo Editorial – 2019.

Poema de agora: Jardim de estrelas – Pat Andrade

Jardim de estrelas

quando amanheci,
havia estrelas no meu jardim,
espalhadas por todo lado…
jamais soube
se despencaram do céu
em tempestade,
se fugiram do mar em fúria,
ou se brotaram do sal da terra…
gosto de pensar que, depois
de uma overdose de poesia,
deixei cair do meu vidrinho
violeta de fim de tarde
as sementes de estrelas
colecionadas das madrugadas…
mas não importa…
agora, a qualquer hora,
se quero ver estrelas,
apenas abro as janelas
e olho pra elas.

Pat Andrade

Poema de agora: Nômade – (@cantigadeninar)

Nômade

Nasci circense;
Nem americana,
Nem amapaense:
Sem morada.
Conheci apenas,
A duras penas,
O pé na estrada.


E, como passe de mágica,
Vi-me numa peça
Épica, romântica ou trágica:
Estava presa
Por vontade própria
Na cidade ilusória
De teus lábios.
No picadeiro
Estava entregue por inteiro
Em teus braços.
Depois de rodar tantos bares,
Estava eu ali,
Alvo de teus malabares,
Como vítima que ri
De seus azares.
Nunca caí do trapézio:
Meu truque é ser alada.


Mas no fim, dei-me por vencida…
Todos disseram: “palhaçada”!
Julgaram-me descabida
E seguiram viagem
Enquanto eu escolhi a vida
Sem quilometragem.

Lara Utzig

Poema de agora: Recado (@cantigadeninar)

Recado

Humildade é dom que poucos possuem;
Antipatia é desnecessária, mas muitos assumem.
E a maioria dos que se julgam estrelas
Nem são a última Coca-Cola gelada do deserto:
São encontrados no minibox que estiver mais perto.
Não passam de glitter de qualquer papelaria,


Perdidos entre artigos baratos e velharias,
Entre promoções de queima de estoque.
Você não é tudo isso: se toque!
Lamento informar essa notícia de choque:

Ainda há várias bolachinhas restantes no pacote.

Lara Utzig

Poema de agora: Chutando Poeira – Luiz Jorge Ferreira

Chutando Poeira

Eu moro em uma casa de madeira ‘velha em folha’.
Na terceira telha, uma goteira, espia, e goteja.
Derrama no chão, lágrimas paridas no exílio, por Saturno, Urano, e Platão.
Eu tenho um grito gelado que não ultrapassa as telhas.
Apenas chia junto as ondas do Rádio a pilha.

Eu tenho no quintal insosso, um cão pele e osso.
Que uiva para o cântico assexuado das filhas de Maria.
Eu tenho dois vizinhos Pastores Americanos do Norte.
Eles têm um Papagaio que em inglês xinga os ateus.

A noite o som da Rádio Educadora de Macapá.
Comunica em Latim que Deus dorme.

Eu fecho o olho, e cuspo o outro no ralo do banheiro.
Apago as pegadas do medo cicatrizadas no corredor.
E se tenho fome mastigo saliva.
E engulo os sabores que esteja afim.

O Governo Federal em Janeiro paga aos funcionários, em prestações.
Eu me alimento a prazo.
Dentro de casa sou Rei.
Só saio Domingo para a Matinê do Cine Macapá.


Fora de casa, mora o ano de 1964.
Chato, enjoado, malvado, fardado.
Eu chuto o bruto, com os meus sapatos Vulcabras.

Bar Gato Azul – Foto encontrada no blog do jornalista João Silva.

Volto cansado, pés machucados da areia da rua.
Apaixonado pelas estrelas embriagadas, sentadas na escada do Bar Gato Azul.


Agora sou Maciste, sou Ringo, sou o Zorro, sou Roy Rogers.
Tenho um cavalo Branco, que relincha em Inglês..


E uma enorme casa de madeira velha em folha.
Que só cabem dois heróis, a minha mãe…e eu.

Luiz Jorge Ferreira

* Do livro “Berro Verde”, publicado pela Rumo Editorial, em 2000.

Poema de agora: Boato – Pat Andrade

Boato

ouvi dizer
que o amor morreu…
mas os passarinhos
ainda voam aos pares,
dando ares
de felicidade…


e as borboletas
ainda bailam
de duas em duas
enchendo o mundo
de cores e
beijando flores…


e os casais, aliás,
ainda estão nos parques,
nos cinemas e bares
se amando sem temores…
sim, meus senhores:
o amor ainda vive!


e amansa feras
e suprime dores…

Pat Andrade

Poema de agora: Barquinhos de Papel – @alcinea

BARQUINHOS DE PAPEL

Que sonhos transportam
estes barquinhos de papel
soltos pela gurizada
nos riozinhos formados pela chuva?
Em que porto da vida eles ancoram?
Em que altura da vida-rio eles naufragam?

Na infância (já tão distante)
também soltei barquinhos de papel
e quando a chuva cessava
saía correndo de casa para resgatá-los.
Uns encalhavam em alguma pedra na margem da rua
outros caiam na boca-de-lobo


e de lá, por conta própria, seguiam viagem
levando meus sonhos por todos os rios e mares
e perdiam a rota do retorno.

(Alcinéa)

Diante do maior do mundo – Crônica com jeito de poema de Ronaldo Rodrigues

Foto: Dyego Bucchiery

Crônica com jeito de poema de Ronaldo Rodrigues

Ficar de frente para o rio, simplesmente o maior do mundo, enquanto outro rio e outros rios se desenvolvem ao meu redor.

Nesse rio e nesses rios, tudo vai se diluindo, se recriando. Certas dúvidas surgem, outras certezas emergem, outras naufragam, conflagram, se confrontam, se confraternizam, se eternizam, se volatilizam.

Esse rio é minha rua, essa rua é meu rio, é meu quintal. Aquilo que é líquido, mas o único elemento que se manterá sólido quando tudo se esvair.

É nesse rio que coloco, como barquinhos de papel, minhas ideias para navegar, singrar outros mares e sangrar por outros becos, desaguar na foz daquilo que para mim ainda é nascente.

E me deixar isolado nas ilhas de mim, nos desertos de mim, nas teias do destino que me desatinam. O rio velho e o rio menino. Eu velho e eu menino.

Sou ciente e consciente da força desse rio. Sei que quando ele resolver invadir mesmo a cidade, as cidades e o mundo, não haverá muro de arrimo a conseguir detê-lo. Não haverá utopia, ideologia capaz de segurá-lo.

Não seremos outra coisa se não canoa, cada uma buscando seu refúgio. A poucos será dado o privilégio da calmaria, do sentir-se salvo e do recomeço.

Agradeço pelo grande e pelo pequeno que ocorrem em minha vida. O que percebo e o que não. O que me percebe e o que não. Aqueles que se foram, aqueles que virão.

Diante do maior do mundo eu me junto à grandeza de suas águas e me sinto grande também. E me sinto pequeno também. Obrigado, meu rio. Amém.

Poema de agora: Conduzir-se – Fernando Canto

Conduzir-se

Eu enxergo melhor
Quando durmo
Ouço com perfeição
Quando sonho


Conduzo com mãos de asas
Minhas vontades e gestos
Para seguir o destino
(supostamente)
Por mim imposto

Caminho passo a passo
Pelas trilhas que abro e conservo
Pois sou a deidade em meu ser


E el diablo no coração
Da memória
Onde arbitrariamente enxugo
Uma estranha realidade

Fernando Canto