Não, meu bem. Desta vez não vou contigo. Marte não me seduz. A água de lá não tem cheiro de mururé.
Em Marte, meu bem,não tem flores, Logo não tem beija-flor. Não tem mangueiras, logo não tem aquela algazarra de periquitos que inebria o poeta Fernando Canto.
Não tem praças, música, livros, papel e caneta. Não tem poesia nem poetas.
Li no jornal que os habitantes de lá tem voz metálica,corpo engraçado e cara esquisita. São todos verdes, todos idênticos, todos estranhos.
Vivo do ato de escrever sobre tragédias e espetáculos sobre o candidato vitorioso e o derrotado sobre o deputado corrupto e o governante que finge ser honesto sobre a exportação da mandioca e a importação da farinha sobre a fome e a riqueza sobre o real e o dólar. Perdoa-me, Anjo, não sobrou tempo para escrever um poema de amor.
Por trás do muro da casa caiada de branco lá adiante (Onde o branco quase foi embora) ‘Clarice’ de Caetano se Desvirgina, e eu perco as asas
Por testemunha…A folha seca da árvore caída ao acaso Na outra página, o cao de gesso dilata as Narinas e minha prima em Portugal…Ofega
Eu coloco ouro, e mirra, na rima rica Não queria ser Cristo, nem seu primo, João Batista Quero minha cabeça comigo E na passarela entre o meu umbigo, e a placenta no útero de minha mãe Sem pedágio
Não que eu veja os retratos, não os roídos de traças E não reconheça nele suas saudades. Não que eu veja os sulcos dos discos Sumidos, e pise no silêncio de pé Não que a voz da Clarice na voz do Caetano Soe agora estranha ao destempero Dos meus ouvidos Onde gritos são sussurros
Não que me observe nu no espelho E não mais reconheça meu sêmen seco No âmago das entranhas Não… É uma palavra antiga Quase minha inimiga, o nó da razão
Quando guardei o mar, guardei o não Seu barulho dentro dos meus ouvidos Seu fedor dentro do meu intimo Seu afogar dentro da minha existência Cinza… Enxofre… Escamas da minha pele… Flutuando loucas Em mim o mar caber onde acabo, Seu ir e vir no fixo infinito E o sinal que adiante eu não estou eu
Por trás do muro da casa caiada de branco lá adiante (Onde o branco voltou, e floresceu) ‘Clarice’ de Caetano engravida
Enquanto minhas asas de penas ásperas Nunca mais nascerão em mim
Luiz Jorge Ferreira
*Do livro “Nunca mais vou sair de mim, sem levar as asas”. Rumo Editorial – 2019.
entristeci no fim do dia… mas brindei tantas vezes com a noite que ganhei a alegria que precisava pra bailar com a madrugada. me enchi de desejo, fiz amor com o amanhecer e sonhei arco-íris a tarde inteira, à espera de outra noite pra me cortejar…
quando amanheci, havia estrelas no meu jardim, espalhadas por todo lado… jamais soube se despencaram do céu em tempestade, se fugiram do mar em fúria, ou se brotaram do sal da terra… gosto de pensar que, depois de uma overdose de poesia, deixei cair do meu vidrinho violeta de fim de tarde as sementes de estrelas colecionadas das madrugadas… mas não importa… agora, a qualquer hora, se quero ver estrelas, apenas abro as janelas e olho pra elas.
Nasci circense; Nem americana, Nem amapaense: Sem morada. Conheci apenas, A duras penas, O pé na estrada.
E, como passe de mágica, Vi-me numa peça Épica, romântica ou trágica: Estava presa Por vontade própria Na cidade ilusória De teus lábios. No picadeiro Estava entregue por inteiro Em teus braços. Depois de rodar tantos bares, Estava eu ali, Alvo de teus malabares, Como vítima que ri De seus azares. Nunca caí do trapézio: Meu truque é ser alada.
Mas no fim, dei-me por vencida… Todos disseram: “palhaçada”! Julgaram-me descabida E seguiram viagem Enquanto eu escolhi a vida Sem quilometragem.
Humildade é dom que poucos possuem; Antipatia é desnecessária, mas muitos assumem. E a maioria dos que se julgam estrelas Nem são a última Coca-Cola gelada do deserto: São encontrados no minibox que estiver mais perto. Não passam de glitter de qualquer papelaria,
Perdidos entre artigos baratos e velharias, Entre promoções de queima de estoque. Você não é tudo isso: se toque! Lamento informar essa notícia de choque:
Eu moro em uma casa de madeira ‘velha em folha’. Na terceira telha, uma goteira, espia, e goteja. Derrama no chão, lágrimas paridas no exílio, por Saturno, Urano, e Platão. Eu tenho um grito gelado que não ultrapassa as telhas. Apenas chia junto as ondas do Rádio a pilha.
Eu tenho no quintal insosso, um cão pele e osso. Que uiva para o cântico assexuado das filhas de Maria. Eu tenho dois vizinhos Pastores Americanos do Norte. Eles têm um Papagaio que em inglês xinga os ateus.
A noite o som da Rádio Educadora de Macapá. Comunica em Latim que Deus dorme.
Eu fecho o olho, e cuspo o outro no ralo do banheiro. Apago as pegadas do medo cicatrizadas no corredor. E se tenho fome mastigo saliva. E engulo os sabores que esteja afim.
O Governo Federal em Janeiro paga aos funcionários, em prestações. Eu me alimento a prazo. Dentro de casa sou Rei. Só saio Domingo para a Matinê do Cine Macapá.
Fora de casa, mora o ano de 1964. Chato, enjoado, malvado, fardado. Eu chuto o bruto, com os meus sapatos Vulcabras.
Volto cansado, pés machucados da areia da rua. Apaixonado pelas estrelas embriagadas, sentadas na escada do Bar Gato Azul.
Agora sou Maciste, sou Ringo, sou o Zorro, sou Roy Rogers. Tenho um cavalo Branco, que relincha em Inglês..
E uma enorme casa de madeira velha em folha. Que só cabem dois heróis, a minha mãe…e eu.
Luiz Jorge Ferreira
* Do livro “Berro Verde”, publicado pela Rumo Editorial, em 2000.
Que sonhos transportam estes barquinhos de papel soltos pela gurizada nos riozinhos formados pela chuva? Em que porto da vida eles ancoram? Em que altura da vida-rio eles naufragam?
Na infância (já tão distante) também soltei barquinhos de papel e quando a chuva cessava saía correndo de casa para resgatá-los. Uns encalhavam em alguma pedra na margem da rua outros caiam na boca-de-lobo
e de lá, por conta própria, seguiam viagem levando meus sonhos por todos os rios e mares e perdiam a rota do retorno.
Ficar de frente para o rio, simplesmente o maior do mundo, enquanto outro rio e outros rios se desenvolvem ao meu redor.
Nesse rio e nesses rios, tudo vai se diluindo, se recriando. Certas dúvidas surgem, outras certezas emergem, outras naufragam, conflagram, se confrontam, se confraternizam, se eternizam, se volatilizam.
Esse rio é minha rua, essa rua é meu rio, é meu quintal. Aquilo que é líquido, mas o único elemento que se manterá sólido quando tudo se esvair.
É nesse rio que coloco, como barquinhos de papel, minhas ideias para navegar, singrar outros mares e sangrar por outros becos, desaguar na foz daquilo que para mim ainda é nascente.
E me deixar isolado nas ilhas de mim, nos desertos de mim, nas teias do destino que me desatinam. O rio velho e o rio menino. Eu velho e eu menino.
Sou ciente e consciente da força desse rio. Sei que quando ele resolver invadir mesmo a cidade, as cidades e o mundo, não haverá muro de arrimo a conseguir detê-lo. Não haverá utopia, ideologia capaz de segurá-lo.
Não seremos outra coisa se não canoa, cada uma buscando seu refúgio. A poucos será dado o privilégio da calmaria, do sentir-se salvo e do recomeço.
Agradeço pelo grande e pelo pequeno que ocorrem em minha vida. O que percebo e o que não. O que me percebe e o que não. Aqueles que se foram, aqueles que virão.
Diante do maior do mundo eu me junto à grandeza de suas águas e me sinto grande também. E me sinto pequeno também. Obrigado, meu rio. Amém.