Poesia que não se esgota (do poeta Fernando Canto)

A poesia não se esgota no pensamento porque ela é o esforço da linguagem para fazer um mundo mais doce, mais puro em sua essência;

A poesia procura tocar o inacessível e conhecer o incognoscível na medida em que articula e conecta palavras e significados;

Cada imagem representada, projetada pelo sonho, pela imaginação ou pela realidade, é um símbolo que marca o que sabemos da vida e seus desdobramentos, às vezes fugidios.

Mas nem sempre é o poeta o autor dessa representação, pois tudo o que surge tem base social e comunitária, depende da vivência de realidade de quem propõe a linguagem e a criação poética.

Quando isso ocorre estamos diante da autenticidade do texto poético. E todos somos poetas, embora nem sempre saibamos disso. E ainda que nem tentemos sê-lo.

Fernando Canto

Poema de agora: MORMAÇO – Poetas Azuis (com participação da @rebeccabraga)

MORMAÇO – (Pedro Stkls/ Igor de Oliveira) – Com participação de Rebecca Braga

Você plantou em mim uma saudade
Dessas de raízes fortes
Que vão pro fundo da terra
E não sabem voltar

Tanta coisa linda pra viver
Tanta chuva pra se aproveitar
E nós dois aqui nessa distância
De lembranças e remendos

Hoje vou pegar o meu barco
E do meio do mar
Eu vou cantar aquela canção
Sobre a roseira
E debaixo do sol sob o mormaço
Vou lembrar que um dia
Eu te transformei em poesia

Poema de agora: Bailarina de Louça – Luiz Jorge Ferreira

Bailarina de Louça

Deus te rasgue o peito com a harmonia leve de um Bolero.
O som é de um hino militar.
Dois pés em Amsterdam, dois passos sobre a Babilônia, dois dedos sujos de poeira lilás, e silêncio sobre a bailarina de louça, de voz rouca que segura o ventre proeminente de ais.


No desenho do perfil abstrato, cheiro de sabonete de tartaruga, e duas verrugas azuis sob o pomo de Adão.
Na parede ilustrada, um verão em Salinas, e duas almas gêmeas semi cegas, concubinas, simplesmente, dão as mãos.

Teu coração ainda menina… palpita…do pé entre os chinelos, ao fio mais externo de cabelo…
Teu vestido de chita…tua meia elástica repuxada, tua boca Carmim…teu olhar ensaiado…vais onde eu irei…ou vais onde ficas.

Deus te dê…dois generais para governar o país.
Um cavalo cego para te levar as ribanceiras…e dois valentes crioulos com o chicote de couro, para açoita-los por demais.


Dois violões afinados em lá, e um memorial…terra e lama.
Na calada entranha sob um sol dourado … cheirando a Macapá.


Um amor na gaveta na página de uma revista careta, e duas pílulas de matar bebê.
Uma estampilha de mulher…uma gorda, outra magra, duas escravas de cara branca pó de arroz.
Risonha e farta de seios, Nossa Senhora de Guadalupe, e um lume azul da estrela mais vadia.


O rosto de Guernica, e a foz antiga do Marajó.
Uma chuva fina da Patagônia, e um Bolero saindo de uma vitrola Philips desafinada de um vizinho chileno em um sábado inútil de Janeiro.

Hoje eu te adivinho deitada… curtindo a sombra de teus seios na parede.
Eu te adivinho escrava dos cabelos,
penteando-os com os dedos.


Alisando-os no espelho embaçado do quarto.
Eu te adivinho sonolenta, arfante, subindo e descendo os peitos.
O coração descompassado, a língua em um bailado entredentes, molhada de saliva.

E se eu chegasse, correndo, assustado…
Dançaríamos, um Bolero, ou cantaríamos um Fado.

Luiz Jorge Ferreira

Poema de agora: Prazer, sou Maria – @alcinea

Prazer, sou Maria

Dá licença, seu moço,
que eu agora vou me apresentar:
Sou Maria,
mulher guerreira,
não puxo briga
mas não corro de bicho-papão
nem tenho medo de coroné metido em fardão.

Sou Maria,
mulher simples e humilde
mas tenho alguns tesouros.
Não sou dona do mar
mas conheço os segredos da floresta
e marimbondo de fogo não vai ferrar.

Sou Maria,
mulher poeta e jornalista.
De noite escrevo versos,
de dia escrevo notícia.
Minha caneta é liberdade
a consciência o meu guia.
Sou doce, mas valente,
nem tente me calar
pois não tenho medo da sua gente.

Me ajoelho só pra Deus.
Santo e poeta eu olho com o coração
e político da tua laia
eu olho de cima pro chão.

Pra quem é do bem
eu digo: “Vem comigo, amor”
Pra quem é do mal
eu só sei dizer “Xô”.

Encerro minha apresentação
te fazendo um pedido:
Fica lá no teu quadrado
deixa em paz o povo tucuju
ou eu viro Maria mal-educada
e te mando…

(Alcinéa Cavalcante)

Poema de agora: PÁSSARO – Fernando Canto

PÁSSARO (*)

O pássaro defecará sobre teus ombros
Se não te assemelhares a ele
Nestes dias de ranço, de fel

Antes de qualquer anormalidade
Deverás procurar o inatingível
nas frestas
das tardes
e nos casarões
que imaginaste
para a construção do teu ninho

Será um processo inusitado em tua vida
dela tirarás um movimento tenro
que por certo contribuirá para que voes
e busques
quantas vezes necessário for
a flor que em tua idade
arde
arrasa
sangra
enquanto sentes te fluir mulher.

Não é conselho nem ordem nem obrigação,
É lei!

A tua metamorfose à semelhança
no canto
e no voar
no jeito de beber da água e de comer
e ainda pousar no arbusto.

Primeiro, o ato da criação não será bíblico.
não haverá molde
nem mãos divinas nem barco nem sobro
já és da terra e do céu
já és do chão e do ar

E é débil a condição da resistência.
Tu não resistirás a essa permuta.

Digo-te agora que do teu canto
saltarão as cores do arco-íris
e nunca a chuva apagará a lenda
do fogo dos teus olhos
Pois é irreversível o plumear da epiderme.

Tuas antigas mãos trafegarão no oxigênio
sem deixar rastros
porque a liberdade não semeia marcas.
Tu serás estrela
e não darás concessões do teu brilho
à pálida lua
ou a um sol antigo

Quero ainda te dizer que não serás
a aurora
Embora tenha refletido que renascerás
radiante
e adiante ofuscarás
a vista dos animais sem teu porte

Se és mulher em véspera de asa
voa
voa
Não sacrifica mais a prática
da liberdade.

Sei que é premonitória a semelhança

Haverás de ser ave, e, ouve,
Está perto a tua missão.

Quando te souberes mansa
terás que saborear as sombras,
Essas que talvez empatem teu caminho

Mas tu construirás teu ninho
nas frestas das tardes quentes
à imagem e semelhança
do pássaro que passou ou que passará por ti,
na noite. Outra vez.

Fernando Canto

 

(*) Do livro “Os Periquitos Comem Mangas na Avenida. Macapá. DIO, 1984.

Poema de agora: Papo de Maluco – Marcelo Guido e @ManoelFabricio1

Papo de Maluco

Faz tempo que não vou no puteiro
Ando meio sem dinheiro
E com pouco amor para dar
Lá é carnaval o ano inteiro
Não existe o desespero
Nem pedem alvará
A propina lá é foda
Três minutos. Umazinha
Mês que vem é só passar
O fiscal sai satisfeito
Seu papel cumprir
Dever feito
Não esquece de avisar o prefeito
Mês que vem é só passar
Não precisa vir engomado
Paletó, papo furado
Muito blá , blá , blá
Puta é bicho bom, diz o que quer
Três vias
Secretario da folia
Coração de puta
Só perde para o de mãe
Bicho
O amor mais fácil
Mais sutil
O toque
O cheiro
O gosto
O beijo
Nem que seja
Por um breve
Momento
Mas a vida
É isso
O mais importante
É lembrado
Não me interessa
Intervalos

Manoel Fabrício e Marcelo Guido – Amigos , foliões , parceiros … Pessoas “do bem” e não “de bem”

Poema de agora: Velho Albatroz – Luiz Jorge Ferreira

Velho Albatroz

Todos os dias, quebro-me ao meio
Como um albatroz cego de encontro ao vento
Giro ao teu redor, como um atônito cata-vento.
sedento de pó e luz.

Posso voltar a voar com uma das asas esculpidas pelo sol, que mergulhou no horizonte.
Para que não estranhes minha ausência, tens meu olhar.
Grafitado lilás no muro ressecado do final da rua.
Ficarei em silêncio, como muitas vezes fiquei.
Mesmo que os sons saídos da boca do rádio, lembrem o outono.
O mesmo em que colhemos frutos, embebidos em sal e mel.

Eu me lembrei dos danos, de rasgar os planos e do sufocar dos anos.
Amarrei a camisa ao redor da cintura e caminhei
Ainda comigo, a asa, agora como uma mordaça, me calando o sopro e sufocando aos sonhos.

Luiz Jorge Ferreira

* Do Livro “Nunca mais sairei de mim Sem levar as asas” – Rumo Editorial-SP- 2019.

Poema de agora: MEU JARDIM – Carla Nobre

MEU JARDIM

Já teve um dia
Que eu quis partir de vez
Mas eu decidi ficar


Havia tanta folhagem bonita
No meu jardim
Que eu nunca tinha olhado
Havia muita dor
Onde eu só tinha me lamentado
Beleza e dor
Alimentaram minha decisão de ficar
Chorei 600 dias
Em samambaias mortas
Eu já quis partir de vez
Para esse buraco
Que ainda existe fundo dentro de mim


Ele não é feio
Nem monstruoso
É apenas um buraco imenso
Lajotado de solidão
Já teve um dia
Que eu quis partir de vez
Mas eu decidi ficar
Acender velas
Tocar sinos


Mesmo sem vontade
Eu decidi cuidar do meu jardim
Deixar ele cuidar de mim
Arei a terra
Peguei em minhoca
Preparei uma horta
É muito triste cuidar de um jardim
Tão descuidado em memória ruim
Mas eu decidi ficar
Limpar as larvas de mim
Esse meu jardim é traiçoeiro
As vezes seca inteiro de novo
E eu me despedaço imediatamente
Mormaço, areia, pedra


Até que da lágrima descrente
Brotam sementes perdidas
Chicórias riem
Flores rosas brilham
Então o jardim ilumina meu buraco de solidão
Assim, em paisagens onde eu só morreria
Borboletas azuis enfeitam os dias
Há quem diga que isso é sorte
Eu prefiro acreditar
Que é simplesmente a vida verdadeira
Depois do casulo triste da morte

Carla Nobre