Poema de agora: Brasil Novo/Universidade – (@cantigadeninar)

Brasil Novo/Universidade

Avistei você passando descontraída
Na calçada, do outro lado da rua,
E confesso que me senti traída
Ao te ver sorrindo de forma tão pura.

Acho que quando a gente sofre
Espera que o mundo em volta tenha um matiz escuro.
Mas nem tudo cheira a enxofre:
Seu par de jabuticabas continua maduro.

Você estava com minha roupa favorita
Enquanto eu já nem sei mais o que visto.
Pego a peça que estiver menos rota e encardida,
Combino xadrez com listras e é isto.

Só eu ando por aí, monocromática.
O universo ao redor ainda é colorido.
Porém, como sou ruim em Matemática,
Esqueci que na soma 1+1, um dos uns sempre sai ferido.

Vi coisas que não podem ser desvistas,
Tantas que me ceguei para o resto.
Com elas, fiz inúmeras listas,
Que guardo para mim e não empresto.

Mas mesmo assim, enxerguei você,
Pela janela do transporte público.
Meu coração quase parou de vez:
D(o)eu um pulo de súbito.

O ônibus arrancou de primeira
E a descarga jogou na atmosfera dióxido de carbono.
Mais uma sexta-feira
Do tom da substância lançada na camada de ozônio.

Lara Utzig

Poema de agora: Para um certo lugar atolado no Ontem. – Luiz Jorge Ferreira

Para um certo lugar atolado no Ontem

Planto chuvas como se Abril fosse bissexto.
Molho textos como se tardes nascessem do mar.
Amanheço em mim, assustado com a possibilidade de voar.
Mas não saio de ti, nem que o avesso apareça por traz da pintura de R.Peixe…ou esculturas de Rodin.

Enxerto pecados em virtudes, canto com Alaúde uma Ave Maria agnóstica, que na surdina do barulho infernal dos sapateios, finge ser muda.
Mas eu a traduzo para a linguagem gestual dos mudos, e ela fica lilás e sensual.

Com as lágrimas que pulam para a calçada…
Afogo rosas todas esculpidas em barro como o de Brumadinho.
E ponho em fila todas as vidas abortadas e nuas pelas valas espremidas.

Planto chuvas e as carrego sobre os ombros, que imagino largos, a Noroeste do Riacho que chamo de lama.
Da casa a céu aberto que chamo de alma.
Da imensidão de saudade, que chamo de drama.
Do paneiro cheio de palavras átonas e tônicas … que chamo de poema.

E se eu soubesse que viraria lama.
Teria atirado minha chuva na tua cara!

Luiz Jorge Ferreira

 

*Poema do livro “Nunca mais vou sair de mim, sem levar as Asas”.

Poema de agora: O Beijo – (@cantigadeninar)

O Beijo

Como se um pedaço de mim se esvaísse
Em cada suspiro que solto por ti,
Como se minha alma se bipartisse
Em cada saliva que entrego a ti,

Sinto meus pés se elevarem do chão,
Sinto-me flutuar como em meditação,
Sinto a taquicardia de meu coração,
Sinto o latejar de nossos sexos em pulsação.

Como se meu espírito fosse uno com o teu,
Nossos lábios se encaixam perfeitamente um ao outro.
Como se teu corpo fosse o mesmo que o meu,
Nossa respiração se mistura em sinal de bom agouro.

Sinto o clamar de nossas bocas sedentas,
Sinto o palpitar de uma troca sincera e lenta,
Sinto o rebuliço das partes outrora amenas,
Sinto nosso beijo da forma mais plena.

Lara Utzig

Poema de agora: BRAÇO DE RIO – Annie de Carvalho

BRAÇO DE RIO

Vou jogar-me num braço de rio
e agarrar as gotículas invisíveis
da imensidão, afogar meu clarão
de toda perseguição…
Sufrágio ao naufrágio da desilusão!
E lá nos braços do rio Araguari,
do rio Calçoene, do rio Oiapoque…
Esperarei um índio Waiãpi vim efluir meu juízo
com o júbilo abrigo da escuridão- redenção!

(Impelirei… partir-me- ei
no abraço da anaconda
que abriu a boca do rio.
Abraçarei a brasa de todo
rio até desembocar de mim).

Na nascente vou parir,
vou berrar no rio Jari.
Na força das caudalosas correntes
espalharei meu cerne afluente…
Embaçado e fértil das misuras
que a floresta espalhou nas criaturas.
Assomar no abraço quente de um
mururé e sangrar nas cabeceiras

espalhando meu sumo
expandindo meu bocado,
deixando em teus infinitos braços
todos os meus pedaços.

Annie de Carvalho

Poema de agora: Para o Mar – @ManoelFabricio1

Para o Mar

te imaginei cantando seminua
Desejo meu
Emanou vibrações
E tirei tua roupa daqui
só te olhando tocar
te tocando com os olhos em dê lírios.
Imaginei e queria ver imagem.
Queria do verbo passado
Quero do presente
Que é ver teu retrato futurista
Traduzido em tinta digital
Em tempo instantâneo
imediato
Da suavidade e do cheiro que corre em curvas de pixel
Da excitação longínqua
Da cor da retina que é capturada
Dos pelos arrepios
Tem cheiro de tempero
Cheiro Di pimenta de cheiro

Manoel Fabrício

Poema de agora: Transcriação – (@cantigadeninar)

Transcriação

Ereção a cada palavra.
O sêmen na caligrafia,
O desejo que escorre em fila,
Os dedos penetram uma linha.
Jorra e se espalha em cores,
A língua sem dissabores.
A preliminar veloz,
A escolha de um título feroz
Que resuma toda a cópula.
Eis que o processo de criação
Nada mais é que procriação
De uma espécie feita de tinta.


Na safadeza explícita,
Não me julgo prostituta
Pois ofereço-me gratuita
A serviço de um verso.
E nesse coito,
Papel-eu-pena,
Masturbo, com carinho, um poema…
E no ápice, sem aborto,
Gozo, enfim, uma estrofe:
– Engole ou cospe?
E orgulhosa, exibo minha cria:
Um orgasmo em poesia.

Lara Utzig

Poema de agora: INSPIRAÇÃO – Marven Junius Franklin

Arte de Marven Junius Franklin

INSPIRAÇÃO

a inspiração surge em mim
num relampejar de auroras setentrionais

amadurece num cardume
de supermassivos/densos quasares

e morre esbraseada
a colidir com extintas estrelas colapsadas [no fim do mundo]

a inspiração em mim
oh, é apenas poeira cósmica
que orbita universos paralelos [em que habito!]

Marven Junius Franklin

Poema de agora: O fim do mundo – @alcinea

O fim do mundo

Quando disseram
que o mundo ia acabar
Tia Lila pegou seu terço
e pôs-se a rezar.

O dono da venda
dividiu toda a mercadoria com seus funcionários
e distribuiu o dinheiro do caixa para os mendigos.

A recatada dona Clotilde
jogou-se aos pés do marido
e implorando perdão
confessou que o tinha traído com o compadre.

Seu Joaquim, um santo homem, ajoelhou-se no meio da rua
ergueu as mãos para o céu
e pediu perdão a Deus pelos assassinatos que cometeu
como matador de aluguel.

No dia seguinte
o dono da venda pedia esmolas,
a recatada Clotilde, expulsa de casa,
foi morar num velho puteiro,
Seu Joaquim foi preso.

Só Tia Lila continuou do mesmo jeito.
De terço na mão continuou rezando
e entre uma oração e outra murmurava:
– É mesmo o fim do mundo
– Dona Clotilde, hein, quem diria?
– Seu Joaquim com aquela cara de santo, hein!
É o fim do mundo!
É o fim do mundo!

Alcinéa Cavalcante

Poema de agora: A cidade submersa – Pedro Stkls

Foto: Floriano Lima

A cidade submersa

quando a cidade quase submerge
agarra-se numa bóia
um tronco de árvore sonâmbulo
que vagueia pelas águas
no mapa sublinho a palavra Macapá
que quer dizer:
senhora de óculos sentada de costas para o portão
com 261 primaveras floridas
em uma saia de marabaixo
a coisa mais bonita do mundo
aquilo que vem enfiado nos pés
uma ponta de madeira, uma dança
o meio do mundo
uma fortaleza nunca usada
lugar de muitas bacabas
boêmios, laguinho
por onde um trem nunca para
em nenhuma estação
há sempre de seguir viagem
é um trava língua pronunciar: buritizal
é inevitável sobretudo não dizer:
“cidade morena ou linha do equador”
desconfio que a palavra Macapá
não vem do tupi como dizem os historiadores
surpreendente seria se Macapá
tivesse sido extraída do barro escuro
que estranhamente se espreguiça
no rio amazonas.

Pedro Stkls

Poema de agora: MACAPÁ – @PedroStkls1

MACAPÁ

maria, bem no olho do mundo
há uma flor distraída
bebendo a chuva da goteira
como as vozes guardadas
das tribos que trouxeram o rio
pintaram um céu azul marabaixo
quando a chuva voltou pra casa
só ficou o perfume na lama
da saliva de um jambeiro
que veio fora de época
no inverno brincar de primavera
só pra confundir o nosso coração
acho que foi assim que a pedra sagrada
onde o padroeiro ergueu o seu quintal
onde o rio amazonas deixa florir
dilúvios e dilúvios em roda de batuque
foi assim que a pedra do rio veio parar
na beleza das marés
em dias onde o inverno vestido de primavera
sacoleja o jardim das águas o soneto do barro
no alumiar das lamparinas
maria, eu brinco de fazer banzeiro
na ponta da tua doçura
por você me contar três palavras
é como se o meu rio fosse o teu sentimento
olha, vamos atravessar esse mundo de água
que fica nas costas do padroeiro
vamos descobrir onde nasce a cidade
essa será nossa aventura
nosso pacto secreto de canoa
e se chover a gente descobre a chuva
e se der saudade a gente passa amor crescido
vamos você e eu descobrir por onde anda
a pororoca.

Pedro Stkls