Poema de agora: O Elogio do Pé – (Fernando Canto para Ubiratan do Espírito Santo, o “Bira”, craque do futebol amapaense)

Bira – Foto: Camisa 33 ( no Facebook)

O ELOGIO DO PÉ

I
Ainda que a mão guie
O rápido correr do atleta
O pé equilibra a perseguição da pelota e seu couro
Tal como o ouro em seu brilho
Desperta e arrisca o assombro à cobiça
No fado de explodir a bola
Num voo atômico em direção à rede.

II
O atleta – certeiro – atinge o alvo duas vezes
Pé e cabeça se harmonizam nesse objetivo
E mais vezes, mais os olhos se guiam à rede – incansável,
Mistura de inseto, soldado, animal de testa larga
Arranca cem vezes o grito da torcida enlouquecida.

III
É azul, preto e branco, vermelho
O gosto da loucura ecoante
De rugidos da selva, de cantares da alvorada
E de sangue guerreiro de norte a sul do Brasil:
É Bira de Nueva Andaluzia, paraoara,
Dos pampas, das alterosas,
Do espiritu sancto do gol, das vitórias domingueiras
Das tardes ensolaradas, crepúsculos festivos
Da tela não-pintada de Michelangelo
(Alegoria de Deus que entrega a bola a Adão
No leve tocar de dedos)
Como um contrato entre as partes no Éden tupiniquim.

Foto: Camisa 33

IV
É Bira, príncipe da arte de chutar no gol
Viajante contumaz do oco da bola
Onde moram os querubins do futebol

V
No contato da chuteira e a bola
Centelhas rompem imperceptíveis aos olhos da torcida
Mas ali, na trajetória da pelota ensandecida
Girando em curva ou reta
Corre o chute mágico do atleta uBIRAtan
Que trave alguma, vento algum, goleiro algum,
É capaz de parar ante o fundo da rede, o seu destino.

Foto: site Memória do Inter

VI
É certo que o tempo, implacável como o goleador
Também abre ruas no rosto em movimento
Ventos empoeirados surgem abruptos dos logradouros
Como quem logra a vida em ciclos imemoriais.

VII
Onde se vê de novo o voo rasante dos quero-queros
Sobre verde do gramado?
Talvez no espelho da lembrança
Porque a fama, efêmera e fugaz
Faz da vida o templo da memória, onde se clama
O que ficou para trás
Onde os cantares se repetem em rituais
Para abençoar a glória dos que vencem
Em tempos que escrevemos nosso esquecimento.

Foto: site Memória do Inter

VII
A voz grossa dos que torcem e glorificam
Deixam grandes silêncios na alma
Cobram-se cobranças, cobram-se castigos
A falta, a mão, o pênalti
E o gol, que para sempre é objetivo
Resta, então, a festa da massa em labaredas
Em gritos, confetes e bandeiras
(ou o desterro infausto em outros horizontes)
VIII
Entretanto o pé-de-ouro arrisca
Em balés de pés-de-lã/ pés-de-moleque
Pés-de-pato sob as gotas de um pé-d’água na neblina
Nas estações mais aziagas das paisagens-penitências

E realiza seu trabalho de cerzir o tempo e as camisas coloridas

Foto: site Arquibancada Colorada

IX
Ora, a inveja é um olhar sinistro
Que se movimenta sobre a dádiva
Ofertada aos talentosos
É um ovo só
Saído das entranhas da serpente,
Para reduzir a alma que alimenta com seu ranço

X
Ora, o futebol não se limita a homens
Em seus campos de lama e de gramas aparadas
Há um árbitro, há rivais que se trajam de esperança
Oponentes opulentos em nervos eriçados
Quando a bola cintilante gruda ao pé do craque
E ele mergulha nas funduras do seu rio
Onde cardumes geram suas eternidades
E esperam uma coreografia não ensaiada
Para, enfim, soltar a voz contida em milênios de partida

Foto: O Canto da Amazônia

XI
Ah, a pira dos deuses parece penetrar em águas abissais
De onde irrompe o grito final do campeão

XII
Quem não viu não mais verá. Nem ouvirá
O clamor dos ribeirinhos do Amazonas, o eco da baía de Guajará
O som ferrífero da serra do Curral e o brado dos gaúchos do Guaíba.
Quem não viu não sentirá
A poesia refletida na potência do olhar, da mira
Da luz mágica do Bira e seu bólido de vidro e luz
Transformando-se em espelho pela última vez.

XIII
E nós aqui tal degredados em nossa própria aldeia
Apenas com as imagens do passado e nosso orgulho
Fomos os pés, os pés do Bira
Quando o chute governava a bola
E a noite vigorava um brinde
A mais um campeonato ganho na história
Pelos pés do nosso ídolo
De sonho e de memória.

Fernando Canto

 

* Poema para Ubiratan do Espírito Santo, o “Bira”, craque maior do futebol amapaense

Poema de agora: O OLHAR DO JOÃO – Bete Ramos

Foto encontrada no site Templo Cultural Delfos

O OLHAR DO JOÃO
(Para João Cabral de Melo Neto)

O Olhar do João
Passeia agora pelo sertão
Pelo Nordeste quente
Pelas pedras do agreste

O olhar do João
Vê aquele indigente
E não fica indiferente
À miséria de sua gente

O olhar do João
Pousa no cidadão (cidadão?)
Pousa no homem ossudo
Cliente da fome
Eterno viver à procura da sorte

O olhar do João
Não embaça com a lama negra
Com o pó da aridez
Com os detritos do rio

Esse olhar
Ele transforma em pedras
Atirando-nos sutilmente
Mandando a gente pensar.

Bete Ramos

* Poesia em homenagem ao poeta João Cabral de Melo Neto, que faria cem anos hoje (poema vencedor do I Festival Amapaense de Poesia, em 1998). 

Poema de agora: ASTRONAUTA DE ELASTÔMERO de Marven Junius Franklin.

Imagem: Katanaz

ASTRONAUTA DE ELASTÔMERO

Minutos após meu pai ter fenecido [carpido pelas unhas truanescas das sombras]
seus olhos indagaram-me e abarrotaram-se de temor.

Horas após meu pai ter fenecido [afundido por intensos vendavais] aguardei que naus assombradas o trouxessem de volta… indumentado como um rejuvenescido flibusteiro castelhano.

Dias após meu pai ter fenecido [levado para a região dos anoiteceres com sol] eu morri um pouquinho… absorvendo suaves porções de impassibilidade – sepultando anseios e veleidades em desmesuradas valas-comuns de medo.

Semanas após meu pai ter fenecido… eu fui com ele um bocadinho disfarçado de astronauta de elastômero para lhe auxiliar na tomada de posse [de seu novo condado].

Ó pai, mil invernos até que te ache!
vestido com paletó bem cortado… solvendo um apropriado bordeaux na calçada de um modesto café parisiense.

Marven Junius Franklin.

Poema de agora: CALENDÁRIO ANTIGO – Pat Andrade

CALENDÁRIO ANTIGO

dos meus anos primeiros
carrego memórias sutis
beijos tímidos em janeiro
mãos dadas em abris

nas minhas melhores lembranças
sinto saudades juninas
costas queimadas em julhos
e depois agostos de alegrias

também tive desencantos
à beira do rio Tocantins
vi meu coração partido
amanheciam novembros gris

saudade maior dos dezembros
mas o que se foi, já esqueci
parei de tentar lembrar
para poder brincar de ser feliz

PAT ANDRADE

Poema de agora: Pequeno instante de retorno a um lugar chamado passado – Luiz Jorge Ferreira

Pequeno instante de retorno a um lugar chamado passado

O som vem lá do Pecó. (*)
É a voz de Carlos Gonzaga cantando Diana.
Eu deitado, imberbe, na rede que fede a mim.
Balanceio entre o Trópico de Câncer e o de Capricórnio.
Em vão, procuro criar uma linguagem nova para conversar com as estrelas.
Cybelle, sob o sol tropical picha muros, ou apenas anda zigzagueando entre pedregulhos grávidos.
Atropelados por um pneu Firestone.
Portinari… Picasso… Dali… R. Peixe… Ray Cunha.
Estão por ali entre sombras da noite e fantasmas magros.
Todos gêmeos das paredes de madeira ruídas de cupins.
Copulam cores. Dentro do sol.
Dentro de mim a Babilônia se arrasta pela Ernestino Borges.
Vem da casa de Seu Paulino, Maiambuco, com Marabaixo, e Coló.
Eu em silencio, decorando a música de Carlos Gonzaga, vinda do Pecó.
Deitado na rede que tatua minha costa com listas e calombos.
Espreguiço entre a Fortaleza cicatrizada de tempo, e o tempo cicatrizado na Fortaleza.
Farto de azedos, gaguejo uma língua nova para a surda lua anciã.
Da alma ao ânus. Lavado de suor. Olho as unhas dos pés crescerem.
Sujas do chão do Pacoval.
Elas desnorteadas com o Norte mapeado aos seus pés.
Arranham em Si, o terceiro compasso.
Sou um homem negro. Pardo com duas orelhas. Páginas demais em branco.
Apaixonado por sereias. Versos de Drumonnd. Lendas do Isnard.
Refém do som do Pecó. Olhando as telhas.Dialogando com estrelas sujas de céu.
Xingo os tímpanos. Incomodado com o barulho da massa do pão lá na Padaria do Seu Osvaldo, ainda cru sendo esmagado na mesa.
Sobre bactérias indefesas. Gritando em Morse.
Vittorio Gassman. Zorro. Chaplin. Bardot.
Estimulam o diálogo das pulgas com o cão, em Braille.
Isto impede que eu decore a segunda parte da letra da música de Carlos Gonzaga, que vem do Pecó.
Que vem só. Respirando entre ruas e becos, lá do Igarapé das Mulheres, entre cheiros de peixe, e odores vaginais.
Quase amanhece debaixo do assoalho em que a música se esconde. Ernestino Borges. Odilardo Silva. Odilardo. Fernando Canto.
Nikita Kruschchev. Chefe Humberto. Cabralzinho.
Bongos… Uníssonos solfejam a semínima com que a música termina.
O barulho das tábuas estalando.
Impede que eu decore o resto.
Cuspo frases inteiras da música no saco de roupa, onde a camisa de ontem encharcada com um resto de chuva, não cabe mais em mim.
Mil e Novecentos. Outubro de 62.

Luiz Jorge Ferreira

(*) Pecó = prostíbulo em Macapá, cujo som emitido por vários alto-falantes inundava o silêncio das suas madrugadas na década de sessenta.
(**) O poeta Luiz Jorge Ferreira é amapaense, médico que reside em São Paulo e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

Poema de agora: SOBRE OS DIAS – Pat Andrade

SOBRE OS DIAS

há dias em que preciso traduzir-me
para mim mesma
mas não encontro
quem fale a minha língua

há dias em que o espelho não me vê
e não posso me olhar
de longe não me vejo
e de perto não me suporto

há dias em que o sol não me alcança
e não me aquece
e sou nublada e fria
como uma manhã de inverno

há dias em que me procuro em vão
devo estar perdida
em pensamentos náufragos
em ilhas de solidão

Pat Andrade

Poema de agora: MONARK – Luiz Jorge Ferreira

MONARK

Eu de bicicleta Monark Copa do Mundo
Pela Av. Ernestino Borges. Sob a luz mortiça da iluminação opaca da lua dependurada em um poste municipal.
O Mundo fosse circular ou plano, cabia sob centenas de pedaladas ímpares ou pares, que eu acionava sob uma chuva de saliva e suor.
Deus fizera um tapete de piçarra quase vermelha e decorara com uma poeira fina que voava das esquinas junto com Bem te vis e Curiós.
O barulho do Rio lá na baía vinha… vinha para chegar urtiga, ardendo no meu olhar míope.

Quando eu ia ao horizonte, ia ao Pacoval.
Ia ao lago dos índios, ia ao palco da Sede Escoteira, e cantava as Músicas de Andaluzia…
A noite eu flagrava a lua xixando próxima ao ofertório de Santos da D. Neusa.
Jogando Anambú… búbúbú… amarrei o amor na beira da camisa e fui a Missa… cantar o Angelus.

Eu de Sandália Japonesa pelo lado de dentro dos sonhos de pressa e avexamento.
Não trocava a rede de punho gasto, de embalo abortado, de esticamento estático…em que amarrava minhas noites entre dias quentes, e ventos pegando fogo.
Por nenhuma taça de Espumante Francês.
Os Gibis falavam de Tarzan… mostravam maçãs nos rostos das moças… heroínas de maiôs… coisas além de mim.
Mas eu possuía minha Monark Copa do Mundo, e o mundo adiante esticado entre o começo da Avenida Ernestino Borges, o sol no cimo da Rádio Educadora, e fé vestida de Organdi no meio do silêncio pesado da Capela de São José, lá no meio do horizonte que minhas pedaladas permitiam alcançar… era o Máximo Gorki.


O além, feito um reflexo, pintado por Da Vinci, benzido por Dorotéia, ou instigado pela Maria Moraes, queria a toda voltar numa boa.
Tinha medo que eu fosse ao hoje, comprasse sapatos de couro, relógio de ouro, óculos Ray Ban, Cds do Bee Gees, e o esquecesse.
Na minha garupa jamais!

Luiz Jorge Ferreira

* Do Livro “Defronte da Boca da Noite… ficam os dias de Ontem” – Rumo Editorial – São Paulo – Brasil.

Poema de agora: A Rosa – Pat Andrade

A Rosa

às vezes mudo de cor;
posso ser vermelha
quando estou cheia de amor.

fico boba e toda prosa
quando estou apaixonada
aí, visto pétalas cor-de-rosa.

se o mundo amanhece mais belo,
abro-me bem devagar,
vestida de amarelo.

quando o mundo precisa de paz,
purifico-me e me visto de branco.
mas já não aguento mais!

quero ser rubra, quero ser negra,
quero vestir ouro, vestir prata,
quero ser azul, quero ser lilás.

porque quero todas as cores em mim,
hoje abro-me furta-cor,
pra ser a rosa mais linda do teu jardim.

Pat Andrade

Poema de agora: O BERRO – Ori Fonseca

O BERRO

Eu não quero falar do perfume das flores
E não quero escutar o gorjeio das aves,
E tampouco saber se são brisas suaves
Os ventos que preenchem os campos de amores.

Hoje eu quero holofotes nos becos de dores,
Onde as solas das botas também são as chaves,
Onde a vida é um risco e esperanças, entraves;
Onde o horror é a aquarela de todas as cores.

Eu não quero cantar a poesia do esmero,
Nem fazer do meu verso a ilusão que cativa.
Hoje a minha palavra quer ser corrosiva.

Quando o choro ecoa na dor em exagero,
Quando a alma foge do corpo em desespero,
Onde a vida berra e lateja em carne viva.

Ori Fonseca

Poema de agora: Ano Novo – Andreza Gil

Ano Novo

Um ciclo.
A travessia entre o ano que finda,
e o ano que começa.
De realizações já passadas e das que ainda virão.
Faz-se a limpeza da casa de morada do corpo e da casa de morada da alma.
O ser renova-se, recomeça, ou continua.
Entre os medos e as angústias, as perdas e os ganhos.
Como o céu que um dia está vazio de estrelas
E no outro, tão cheio quanto as vontades dentro da gente.
Impulsionados pela dor e pelo amar.
A conquistar o outro e cada vez mais a si mesmo,
Como uma bela ilustração do que é a perfeição da missão viver.

Andreza Gil

Poema de agora: Todo dezembro chove em Macapá – Jaci Rocha

Todo dezembro chove em Macapá

Todo dezembro chove em Macapá
Mas as águas sempre caem diferente
Dentro da gente…

Tem vezes que a maré
Se ajunta à sinfonia da chuva
E o peito fica cheio da canção da água…

Havia um tempo que a gente corria pela rua
sonhar era fácil
E a gente soltava barcos de papel
só pra ver os pequenos riachos levarem

A beleza simples da vida escorria pelos olhos…

A noite chegava cedo
E a gente podia vencer o medo
do assobio do vento
Das chuvas de meia noite…

Agora, o tempo fechou…
Mas quem sabe amanhã sorri
E nas asas de um bem-te-vi
Caiam águas coloridas por um arco-íris…

Jaci Rocha