O Resgate

Por Fernando Canto

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Alguns verão em ti uma caricatura
E sedentos da carne voltam sempre o rosto
À anônima elegância da humana ossatura.
(Charles Baudelaire – Dança Macabra)

Quem és tu, mulher da noite úmida, azulada de semáforos clandestinos, arquetípica e idolatrada por todos os bêbados bisonhos de risos ortodônticos. Teu lugar é a resposta para os meus anseios ecológicos que ora jazem na pedra do IML, inertes e sem pronúncias de palavras, assim, clivadas no porradal de um dia de depressão e raiva que eu deslembro.

Teus pés outrora um ponto de apoio ficaram presos na grade da janela quando os rotwaillers te encurralaram no jardim que abriste após quebrares a tramela da cancela oculta, que só tu sabias depois de mim.

Nenhuma entrada é tão fácil de acessar no meu jardim se a vigilância for um policial dopado de angústia e solidão, penetrado de sóis artificiais na madrugada. E teimas, tu, mulher de ranço impregnado nas tuas veias, em lacerar meu coração outrora transplantado e agora retalhado a faca e costurado com a singela singer do subúrbio, em tempo de equinócio, com a linha do equador.

Ora, eu que cheirei as “Fleurs du Mal” e vi a destruição dos meus tentames literários ao constatar ainda hoje que “sans cesse à mês côtes s’agite le Démon”. Meus olhos eram os de Charles, que viera um dia de Mitilene e Lesbos, após poético colóquio com Terpandro, Arião e Safo.x1pN1mp8dKYgTEr4kzdQIRV6tFFHr6yDGHsFXTrFciIfYOtLuxoIFBqXj0OF1MihjS4tYvp4QBrusIjsGbLng5xM3PMTRzUBvIJvcGEltfAB3y-_TUnOgw0JQ

Ora, eu que fiz libações de vinho – um Charles Heidsieck Blanc, safra 1995 – e gestuei peripécias fesceninas no caneco dos generais (ainda que trague as marcas do peito lacerado, esfolado da tortura), hoje sou um enigma esfíngico/ paranoico à mercê dos binóculos, um eremita cadavérico que se transforma em relógio e vaga na escuridão que , ainda bem, já se dissipa no jardim onde estão os cães e a tua sombra na cancela. Fiz tudo por ti, eu juro. Eu juro. Não sou mais vigilante de mim mesmo. Refuto o ardor do Santo Graal e me embebedo de antigas memórias contemplando o inútil renascer de tua ternura, algo que me deves e não naturalizas em mim devido a tua fobia do Hades, ainda que me queiras Cérbero.

Ora, teu coração está cheio de peste, catorras pretas e joaninhas coloridas. Teu coração parece estar traspassado à espada, à ambição do ouro e a um avião de sexo, onde chupas testículos de chumbo e gozas com a penetração das asas de um serafim.alice-tim-burton

Quem és tu, mulher bendita, que regurgitas pelos poros sonhos inefáveis, que arrota preces e ofereces sexo em troca do amor fugaz – pérola trincada no mar do teu remorso?

Ora, um insight veio e eu me lembrei de que o amor tem a consistência do mercúrio, que é chuva em terra plena quando eu me separo ouro de ti. Eu avanço ao pólen, ao orvalho sobre tuas ramagens. Eu tenho pressa, eu vou, eu vou, eu vou. Eu vou dourado de manhãs jogando a sombra longa nos significados das lamas gulosas que deixei nas velhas trilhas. Resgatado pelas rutilantes luzes do equador eu vou. Eu vou, cônscio, amalgamado de poesia. Eu vou, eu-lírico e sem rastros.

Algo me espera.

Eu me visto, então, de branco e prata; amarro meus cadarços e vou. E só, sou líquido, sou água do Amazonas, sou vinho de bacaba, sou – às vezes – um açaí do grosso, farinha de estrelas na imensa nebulosa que avisto, pois é noite. Eu me preparo, desamordaçado e belo como nunca, para embarcar na nave que o Cósmico enviou e que pousou dentro de mim.

Égua-moleque-tu-é-doido: talvez o mundo acabe amanhã, mas pode ser até o dia 28, segundo mais um profeta

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Hoje, li sobre uma “profecia” de um tal Efraín Rodriguez que se alastrou na internet. O cara é membro de uma facção religiosa chamada “ de Deus Pentecostais em Camuy” e deu o papo que recebeu de “Deus” um aviso sobre a “queda de um asteroide ou cometa com 4km de largura em Porto Rico, o que causaria o fim do mundo. O apocalipse estaria na agenda celestial para entre os dias 22 e 28 de setembro de 2015, talvez no dia 24 (amanhã).download

Bom, como eu disse na virada de 1999 para o ano 2000, nos tempos do famoso “Bug do Milênio”, e em 2012, por conta do tal calendário Maia (a existência se extinguiria em 12/12/2012): se o mundo acabar, minha vida valeu a pena!fimdomundo

Escuto devaneios sobre o fim do mundo desde que me entendo por gente. De acordo com o livro mais famoso do mundo, já rolaram finais em fogo, enchente e agora querem reeditar a versão do meteoro, que fez todos os dinossauros dançarem.images (2)

Os boatos de 1999 e 2012 causaram muito mais furor do que o suposto apocalipse de Efraín Rodriguez. Mas se tudo for inundado, virar pó ou até mesmo fogo, posso dizer que nesses meus 39 verões vivi, no mínimo, uns 45 anos. Tudo de forma intensa, visceral e autêntica.

DSC_0084Nessa vida, que, segundo a profecia, está na reta dos boxes, curti, amei e honrei minha família e amigos; namorei muito; viajei bastante; bebi demais; comi mais ainda; amanheci com amigos incontáveis vezes; dei porrada em safados de todo tipo (verbal e fisicamente); assisti a shows de rock; escrevi e disse o que quis para quem gosto e para os que detesto; pulei carnaval; vi o Flamengo ganhar vários títulos e a seleção brasileira ser campeã do mundo duas vezes; trabalhei e fui reconhecido; fui amado e também odiado quase na mesma proporção.lima

Se for rolar apocalipse, sem temer as consequências, volte a fumar, não pague contas, faça festas diárias, transe e beba hoje. Ah, diga “eu te amo” para familiares e amigos de verdade.

resize-500x333_resize-500x333-10-27Tenho certeza que o tal de Efraín Rodriguez está enganado quanto à sua profecia, inclusive a Agência Espacial Americana (NASA) desmentiu o cara e disse que não “Não há base científica – e nenhum traço de evidência – de que um asteroide ou qualquer outro objeto celeste irá cair sobre a Terra nessas datas”.nasa

Se houvesse qualquer objeto grande o suficiente para fazer esse tipo de destruição em setembro, teríamos visto há muito tempo”, disse Paul Chodas, gerente do escritório NEO da NASA.

download (1)Mas se por um infeliz acaso esse doido estiver certo(sei lá, a terra tremeu no Chile dia desses e sentiram em São Paulo), que todos nós levemos o farelo. Pois, se ficarem uns gatos pingados pra contar vantagem, aí é sacanagem!

Enfim, se o profeta estiver certo, tenham um ótimo fim. Senão, amanhã este site voltará com sua programação normal. É isso…

Elton Tavares

O Equinócio de Primavera e o amigo Fernando Canto

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Foto: Márcia do Carmo

Hoje (23), aproximadamente ao meio dia, acontecerá em Macapá, o Equinócio de Primavera. O fenômeno ocorre duas vezes ao ano, em março batizado como Equinócio das Águas, por conta do aumento do nível das águas e em setembro. O solstício marca o início das estações e faz com que o dia e a noite durem igualmente 12 horas.

Em 2012, quando cobri o acontecimento, o Equinócio ocorreu exatamente às 11h49 do dia 22 de setembro daquele ano. A luz do sol ultrapassou a linha imaginária do Equador, por dentro do obelisco do Monumento do Marco Zero. O fenômeno é visualizado em Macapá, única capital brasileira cortada pela linha que divide a terra em dois hemisférios: Norte e Sul. É um belo espetáculo!

Além do calor, show de luzes solares e florescer da natureza, o Equinócio sempre me lembra do amigo Fernando Canto. O escritor, poeta, entre outras tantas coisas porretas, é apaixonado pelo fenômeno natural, como também morre por amores de muitas coisas da nossa Macapá. O Barbonez (apelido dele, uma pequena fuleiragem que aprendi com seus filhos) até escreveu um livro, em 2004, e o batizou de EquinoCIO.

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Eu e mestre Barbonez

Dono de frases como: “E cá estou: no mais profundo mar. Sem culpas. Mudando como o sol na manhã de um equinócio da primavera”; “Que o sol em seu esplendor, neste Equinócio de Primavera, nos dê energia para enfrentar o trabalho e iluminar nossos passos pela vida”, “Do outono ou da primavera. Depende de que lado do mundo você está. Escolha o meio” ou parte de um poema: “Ao meio-dia, assombro-me em segredo – Encolhidinho – no equinócio da alma”, Fernando Canto segue a descrever poeticamente o equinócio com mais luz que ele próprio.

Hoje, mais cedo, pela rede social Facebook, Fernando disse-me: “brother, um bom dia de equinócio pra você. Muita energia e sinta-se A-sombrado (sem-sombra ao meio dia). Constate isso. Acho que da mesma forma como os paraenses saúdam seus conterrâneos dizendo “Bom Círio”, nós, do Amapá deveríamos dizer “Boa Luz para você” ou “Bom equinócio, minha nega”.

Aí pensei: esse cara é mesmo porreta, fouuuu!

Ainda bem que temos muita beleza natural e fenômenos como o equinócio, que acontecem duas vezes ao ano. E ainda melhor que temos pessoas como Fernando Canto, que vivem a cultura e a magia do Amapá e que acontecem o ano todo. Portanto, boa luz pra você!

Elton Tavares

ADORADORES DO SOL(*) – Crônica de Fernando Canto

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Fotos: Manoel Raimundo Fonseca

Crônica de Fernando Canto

Os olhos espantados dos turistas aguardavam a penetração do sol no orifício do monumento Marco Zero. Os presentes se encantaram com o som dos tambores do Marabaixo que irrompeu subitamente no recinto. Adiante crianças, jovens e velhas negras balançavam as saias esvoaçantes. Acontecia mais um Equinócio da Primavera no Meio do Mundo. A energia do astro-rei fluía para o centro da terra e os novos adoradores do sol recebiam de mãos abertas os raios solares com gestos ritualísticos, esfregando-os pelo corpo, como se o lavassem com uma água invisível e perfumada. E dançavam e fotografavam apreendendo aquele momento. Seus óculos escuros refletiam a imagem do Marco Zero e das mulheres de roupas coloridas ao redor. Pessoas gritavam como se festejassem um fragmento religioso de sua tribo há muito perdido no tempo, mas que agora era encarnado em sua plenitude.

Turistas e nativos estavam embevecidos de luz. A claridade reinava irradiando mistérios sobre a cidade em mais uma data em que o arco do dia era igual ao da noite: um dia equinocial. Iridescente e translúcido no meio do planeta, aqui em Macapá, na Amazônia brasileira.

O sol que ilumina a todos, que traz a luz e rompe trevas está presente no imaginário de muitas religiões, porque todas as cosmogonias se relacionavam geralmente com as divindades da natureza. No antigo Egito, o Sol, o mais importante dos deuses, tinha diversos nomes. As interpretações dadas às suas funções eram extremamente variadas: chamava-se Rá, o deus supremo, quando estava no zênite. Como disco solar chamava-se Aten; como sol nascente tinha o nome de Kepri, um grande escaravelho que faz rolar à sua frente a bola de sol, assim como na terra o escaravelho faz rolar a bola de excremento em que pôs os ovos e da qual sairá nova vida. Também tinha o nome de Hórus. No Japão, Amaterasu é a deusa homônima. Já na África tropical a mitologia sobre o sol é escassa porque ele está sempre presente, não havendo necessidade de chamá-lo de volta no inverno, como os homens o faziam nos climas frios do norte da Europa ou do Japão. Na Babilônia, na época de Hamurábi (cerca de 1.700 a.C.), um dos deuses mais ativos era Shamash, o sol, também conhecido por Babar, “o Brilhante”. O sol era igualmente venerado pelos sumérios, particularmente em Larsa e Siippar, onde o adoravam sob o nome de Uru. Os Incas reclamam para si um relacionamento especial entre a nobreza e o deus Sol. O seu sistema social assentava-se no princípio hierárquico de monarquia divina e o prestígio de sua autoridade estava ligado ao culto desse astro.

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Foto: Márcia do Carmo

Há, ainda, uma relação interessante entre as grandes religiões orientais e os fenômenos solares: o ano-novo judaico inicia no Equinócio da Primavera (em setembro), da mesma forma que o “Nauroz”, o ano-novo do Afeganistão começa no dia 21 de março, para eles também Equinócio da Primavera, quando o dia e a noite tem a mesma duração (no hemisfério Norte). Segundo Asne Seierstand, autora do belíssimo O Livreiro de Cabul, os afegãos fazem grandes festas em todo o país, apesar de o Talibã, regime teocrático islâmico que por lá passou, tê-lo proibido por considerá-lo uma festa pagã, um culto ao sol, e por ter raízes na religião zoroástrica – Adoradores do fogo – originário da Pérsia do século VI a. C. Atividades como a celebração dos druidas do solstício de verão em Stonehenge (Inglaterra) podem ser considerados como uma sobrevivência da ideia do poder mágico, da força que se pode armazenar em “acumuladores materiais”, como os monumentos megalíticos ali existentes. Da mesma forma, as grandes pedras encontradas em círculo, recentemente, em Calçoene, também podem ser considerados antigos locais de observação do sol e de acumulação de energia deixados por alguma tribo indígena. Mas não basta apenas comparar, apesar de o sol estar presente em todas as culturas. Agora o turismo amapaense precisa apostar nesse segmento insólito, que encanta e que irradia a mágica das luzes do equador. Precisa ir além de agregar valor e partir para o desafio de celebrar a vida e sua magia com os futuros visitantes do Amapá.

(*) Do livro “Adoradores do Sol – Textuário do Meio do Mundo, Scortecci, São Paulo, 2010.

O pente niquelado (crônica porreta de Fernando Canto)

Por Fernando Canto
Nos tempos áureos do Morro do Sapo, no bairro do Laguinho, quando a sede do Sete de Setembro Esporte Clube disputava com a do América Futebol Clube para ver qual era a mais social, nem tudo era só tranquilidade. Crimes ocorriam. Eventuais, sem grandes consequências, e outros violentos, envolvendo jovens que se perderam na cachaça. Alguns deles eram jogadores e frequentadores desses clubes, que cumpriram suas penas no chamado “cajual”, do Beirol. 
Do pátio de casa acompanhei o movimento dos adultos, principalmente nas festas juninas realizadas no entorno da sede do Sete, com aquele arraial tão característico, onde o pau-de-sebo, o quebra-pote e a pescaria faziam a alegria da molecada. Vi, ali, “moças-donzelas” lindas que desfilavam nos concursos de “miss caipira” e que se tornariam moças casadoiras e objetos de desejo dos rapazes solteiros que já tinham uma “boa colocação” no Governo do Território. 
 
Num desses domingos de festa eu soube da história do Rubens que virara desafeto de um sujeito do Igarapé das Mulheres por causa de uma jovem miss. 

Por essa época a Rua São José era empiçarrada e cheio de capim alto nas suas margens, propícia para atos obscuros. Então, certo de que o Rubens viria para a festa, seu desafeto escondeu-se num capinzal da esquina com a Terceira Avenida do Laguinho, hoje General Osório, aonde iria surpreendê-lo. E assim foi: num átimo saltou sobre o Rubens e aplicou-lhe um golpe nas costas com um brilhante pente niquelado que parecia um canivete “Corneta”, muito usado pelos brigões da época. Rubens caiu no chão, levantou-se em seguida, cambaleando e pedindo socorro aos passantes, dizendo que fora esfaqueado pelo fulano, para em seguida desmaiar. Formou-se aquele deus-nos-acuda, pensamentos de vingança, chama-a-polícia-e-o-delegado-Olavo, vai-de-bicicleta-chamar-a-ambulância-que-o-Jagunço-vem-com-beira, etc. E eis que o nosso herói, ainda atordoado pelo golpe covarde acordou sem nenhum sangue esvaindo, um arranhãozinho de nada na costa e um enorme susto, que lhe marcaria a vida como a facada que não houve. 
 
Na central de polícia tiveram que soltar o agressor, que se derretia de rir, no dia seguinte, já que não houve vítima. Mas o pente niquelado ficou retido por muito tempo como uma possível arma branca. 
 
Enquanto o Sete de Setembro disputava o campeonato da segunda divisão no campo do América Futebol Clube (hoje Praça Chico Noé), o presidente Otacílio do Carmo, com suas eternas roupas de linho branco, dançava por horas seguidas sobre o assoalho encerado do clube com as moças de saias plissadas. Era um verdadeiro pé-de-valsa, imbatível na dança de boleros e merengues. Quando todos dançavam a molecada mais taludinha ia para embaixo do assoalho realizar suas primeiras experiências sexuais, olhando a paisagem pelas frestas. 
 
Muitas histórias aconteceram ali naquela sede. Coisas que marcaram as testemunhas ainda crianças de uma cidade em evolução, nos meados da década de 1960. É inesquecível, para mim, o movimento de uma briga que durou mais de uma hora entre dois jovens e fortes atletas. Ela ocorreu após uma partida de futebol entre o Sete de Setembro e o Tijuca Futebol Clube, do Igarapé das Mulheres. Foi a consequência do resultado de uma partida entre os rivais Saci, atacante do Sete, e Macaco, do Tijuca, que explodiu na frente da sede do Sete até os dois cansarem e alguém considerar a briga empate. A história ficou famosa, pois nem a polícia se meteu. 

Às vezes fico pensando nessas coisas incríveis do meu tempo de moleque. Incríveis mesmo, como o rosto brilhoso de suor do Otacílio, alcunhado de “Urubu Balado” por causa do seu jeito malandro de andar e de segurar a mulher para dançar; esta história da facada que não houve e da vítima desmaiada; da briga que não acabava e os oponentes já desprovidos de energia, combalidos, mas sorridentes e felizes com o resultado. 
 
Do Sete ficaram, Indelevelmente, as cores das festas dominicais e o murmúrio da chuva deslizando sobre a piçarra da Rua São José.

VOLTA À TERRA – Crônica de Fernando Canto

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Crônica de Fernando Canto

Os olhos são como câmeras atentas ao menor movimento. E estão à espreita junto ao vento que passa cinzelando nuvens brutas sobre a paisagem, deixada na geografia da memória há tanto tempo. Então passa na cabeça o sentido do adentrar à casa, há tanto tempo alugada para inquilinos desconhecidos.

A BR-156 realmente é uma artéria. E não só bambeia sangue para o coração. Ela sangueia um pote de desejos, contidas revoltas e o sonho que incorpora o ato de amar. Esta estrada que ora passo me leva à aventura estranha do silêncio, ao parto mecânico da obra humana e ao fulgurante farfalhar de galhos que me saúdam ao brotarem do cerrado. Estou em casa, creio.IMG_2334

Eu dialogo com a terra e com a topografia que margeia o asfalto, pois adentro a sala antiga pelas frestas, e piso o patamar que me deu o toque para a decisão de um dia ir embora. Lá dentro não há tanta luz porque as janelas ainda estão fechadas.

Carretas enormes cruzam a estrada. Levam toras e o ouro no oco do tronco. Levam as células róseas dos braços dos trabalhadores e o suor não remunerado misturado à seiva. Estou em casa, creio, porque além dessa dimensão sociológica subo as ladeiras espantando anuns. Adiante, carcaças de animais surgem sobre o asfalto para renascer lá atrás como uma foto que testemunha parte do meio ambiente a fenecer.IMG_2352

Estou apenas indo a algum lugar. A vegetação parece não mudar, mas muda. O cerrado dá lugar à homogênea plantação de “pinus” e à frente buritizais eclodem em cima de águas paradas como se estivessem solicitando socorro, porque descascam e perdem as palmas, esturricadas pelo sol do verão. Creio, estou em casa.

Voltar à terra é pedir que a terra volte à nós, que nos aceite e que haja reciprocidade nas ações e nos sentidos. Voltar é voltear ternura em torno dela e de nós. Voltar é retomar o peso da pedra, o húmus do chão e sentir o cheiro da água no gesto ritual de um novo batismo, pois a água espanta sortilégios e permite para sempre a relatumblr_lbh21hVNkb1qazl8jo1_500ção com o sagrado das entranhas da terra, que neste momento se abre em fendas e expele o gás do encantamento.

Aprendo pela relatividade da ciência, nesta viagem, que a terra gira, mas juro pela velocidade da terra que giro em prantos quando neste caminho acredito na certeza de chegar ao meu destino, voltar às origens e embebedar-me da luz que banha a gleba da emoção no meio do mundo. Estou em casa, creio.

*Imagens Googles e fotos da BRA-156: Elton Tavares

FESTA DO DIVINO EM MAZAGÃO – Por Fernando Canto

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Por Fernando Canto

A vila de Mazagão Velho, distante cerca de 60 quilômetros de Macapá, é um dos lugares mais pródigos de manifestações culturais do Amapá. Traz uma tradição de 17 festas anuais somente no ciclo santoral. Uma das mais expressivas é a do Divino Espírito Santo, que ocorre com intensidade nos dias 23 e 24 de agosto com diversos quadros durante a sua programação.

Começa no dia 16 de agosto com a trasladação da imagem do santo (na realidade é uma coroa de prata ornada de fitas e flores) para a vila do Carvão. Dia 22 retorna a Mazagão Velho e no dia 23, às 20h00 inicia com uma folia, realizada dentro da igreja e que depois se desloca para a casa dos festeiros, com os foliões cantando nas ruas. Depois disso o Marabaixo é praticado a noite toda.

Mas é no dia 24 que a festa atinge o seu clímax. Bem cedo explodem os fogos e os rojões da alvorada, acorfesta1dando a cidade e os japiins que fazem seus ninhos em frente à igreja de Nossa Senhora da Assunção. Às 07h00 é rezada a missa com a igreja lotada de fiéis e no seu término é procedida a “Coroação da Imperatriz”. É feito um ritual com cântico próprio na presença do padre que faz a coroação de uma criança escolhida para a função no ano anterior. Ela fica sentada numa grande cadeira, trajando um vestido branco ricamente ornado. Em seguida todos saem da igreja para organizar um cortejo onde mais onze crianças, também vestidas de branco, percorrem até o centro comunitário. A “Imperatriz”, juntamente com a “Trinchante”, espécie de Dama de Honra que segura a coroa da “Imperatriz”, e a “Pega-na-capa”, que segura o seu manto, são colocadas em um quadrado formado por quatro meninas que a conduzem sob o cerco de quatro varetas pintadas de tinta dourada, de aproximadamente 1,20m. Por isso são denominadas “Varas-douradas”. À frente da “Imperatriz” mais quatro meninas conduzem cada uma um bolo, enfeitado com pombas brancas. São as chamadas “Paga-fogaças” Um pouco adiante delas vai outra menina chamada “Alferes Bandeira” carregando a bandeira branca do Divino Espírito Santo, acompfesta11anhada de um porta-estandarte adulto, que leva uma grande bandeira vermelha com o símbolo do Espírito Santo. O séquito, formado pelas foliãs, os organizadores da festa e pelo povo, passa pelas ruas até o centro comunitário, onde será feito o sorteio das festeiras para o próximo ano. É uma espécie de competição que tem torcida e muita animação. Todas as famílias querem que suas filhas sejam algumas das figuras, sendo, porém, a “Imperatriz” a mais esperada e desejada.

Enquanto ocorre o sorteio é servido o chocolate com pão ou com beiju cica (feito de mandioca e trigo). O chocolate é produzido na comunidade após a semente do cacau ficar vários dias no sol, ser torrado e pilado. Depois é ralado e escoado com ovo batido e açúcar. Em seguida é feito o leilão dos donativos arrecadados junto à comunidade e o cortejo volta para a igreja e se desfaz.

images (1) (1)Só depois do meio-dia é que começa a tradição do Marabaixo de rua, quando os participantes tocam as caixas de madeira e couro e entoam cantos seculares pelas casas que adentram com o consentimento prévio dos proprietários e festeiros. Nessas casas são distribuídas as bebidas e as comidas, principalmente o caldo e a “gengibirra”, bebida típica que vai conduzida em um tonel sobre um carro de mão e fartamente distribuída aos que acompanham o Marabaixo. Às 18h00 é feita a “Derrubada do Mastro” em frente ao centro comunitário, e assim se encerra a festa do Divino Espírito Santo de Mazagão Velho.

Esta descrição que faço aqui tem por objetivo instigar estudantes universitários e os futuros pesquisadores da cultura a olharem Mazagão Velho como um manancial para estudos nessa área. Seria bem interessante que ao lado da realização desses estudos houvesse também a divulgação do material coletado e, sobretudo a “devolução” das imagens à comunidade, que sempre colabora com os pesquisadores, mas reclama, com junta razão, que nunca ninguém mostra fotos ou filmes, ou ainda os resultados práticos das pesquisas.

As nossas bênçãos diárias (minha crônica agradecida de hoje)

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Foto: Elton Tavares

Algo que é mentalizado e pedida no mundo espiritual e concretizado no mundo físico, seja material ou imaterial, é uma bênção. Isso, como li em um texto do amigo Fernando Canto, em todos os sistemas religiosos que se baseiam em categorias do pensamento mágico. Portanto, como descreveu Rubem Alves, quem benze ou bem diz é feiticeiro ou mágico.

Não benzo, somente peço a Deus bênçãos para mim e para os que me são caros. Esse “encantamento”, sempre invocado com as mágicas palavras “amém”, “que assim seja” ou simplesmente “se Deus quiser” costuma funcionar. E isso não é papo de carola não, somente pensamento positivo.

Quando posso peço a bênção de minha mãe e avó (sempre que vou pegar a estrada). Talvez esses bendizeres sejam o fio condutor de Deus, quem sabe?

Um desses poderosos encantamentos é uma bênção irlandesa que diz:

“Que o caminho seja brando a teus pés,
O vento sopre leve em teus ombros,
Que o sol brilhe cálido sobre tua face,
As chuvas caiam serenas em teus campos,
E, até que de novo eu te veja,
Que Deus te guarde na palma da mão”.

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Foto: Elton Tavares

Às vezes, quando estou triste, penso: porra! Tenho família, amigos, trabalho na profissão que escolhi e sou saudável, por isso sou abençoado. E quando o óbvio me dá esse tapa na cara, só agradeço.

Todo dia, pela manhã, peço a proteção de Deus para mim e para os meus. A bênção invocada é pelo apoio de Deus ao meu bem-estar e dos que amo. Dessa forma, peço bênçãos a eles também.

A saúde da família, o bom trabalho feito, nas recompensas pelo batalho diário, a vida confortável e feliz, essas coisas são bênçãos. Então pare de reclamar por bobagem. Que Deus e as pessoas com quem convivemos continuem a nos bendizer. Que a semana seja produtiva e feliz. E que Deus nos guie e proteja!

Elton Tavares

Futebol – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Fui um menino tímido, retraído. Por isso era maltratado pelos outros garotos. Não. Não era por isso. Era que aliado a isso eu era muito franzino. E naquela fase da vida quem não era forte ou não soubesse brigar tava lascado. 
 
Eu, por exemplo. Pra salvar o prestígio de alguém assim só sabendo jogar futebol. Os garotos que se destacavam no futebol ganhavam o respeito dos outros garotos. O cara se tornava popular, mesmo sendo franzino e tímido.
 
Agora pergunta se eu sabia jogar futebol! Sou aquilo que os cronistas esportivos e comentaristas amadores chamavam (e chamam ainda hoje!) de perna-de-pau. E isso era o mínimo que se chamava pra alguém desprovido de talento pra bola. A mãe do perna-de-pau sofria: “Passa a bola direito, filho da puta!”. E por aí ia. 
 
Portanto, se quiseres ganhar prestígio, precisas ter algum outro talento que possa ser reconhecido pelos outros garotos. Desenhar pode te salvar. Nem precisa saber desenhar bem. É que a maioria não sabe desenhar nada e admira quem sabe segurar um pouquinho o lápis e movê-lo com a mínima desenvoltura. 
 
Outro atributo que pode te angariar uns pontos a favor é ter irmã gostosa. Eles te denominam logo de cunhado e recebes uma aura de proteção. “Dá lembrança lá pra mana, cunhado!”. Aí eles não te darão a porrada que te seria reservada caso fosses filho único ou de uma família só de irmãos. Alvíssaras! 
 
Eu sabia desenhar e tinha irmã gostosa. Devia ser pra compensar minha falta de habilidade com a pelota. Os caras queriam fazer bonito para as meninas bonitas e livravam a cara do irmão magrela. Eu peguei carona nesse mito e só apanhei quando caí na besteira de jogar em lugares em que ninguém conhecia minhas irmãs. 
 
Nesses momentos, o desenho nem era cogitado. “Esse filho-da-puta perdeu um gol feito! Tira essa pereba do campo antes que eu quebre a cara desse escroto!”. O moleque me olhava com a maior cara de zagueiro argentino em final de copa contra o Brasil, doido pra me dar um pontapé inicial. Quando isso acontecia, eu saía de campo de cabeça erguida. Mentira! Saía era cabisbaixo, tremendo de medo, já correndo.
 
Em casa eu me vingava usando as minhas habilidades. Convencia minhas irmãs a não dar bola pra garoto encrenqueiro e desenhava histórias em quadrinhos em que eu era o grande astro do futebol. E namorava as irmãs de todos.

Um apelido pela metade (crônica de Fernando Canto)

Por Fernando Canto
 
Certo sábado o Hélio Pennafort chegou com aquele seu jeito de urubu balado no primeiro bar do Abreu e contou uma história de futebol ocorrida no Oiapoque. Hélio era oiapoquense da gema e da casca do ovo de bacurau, acostumado com o bafo do tafiá e a dança do turé.
 
Foi logo no início da década de 80,quando a França começou a se mostrar para o mundo como potência futebolística, com Michel Platini e tudo. Por isso mesmo os guianenses “tiravam barato” dos brasileiros nos jogos “internacionais” de pelada, ganhando sempre da gente. 
 
Mas ele contou também que isso não durou muito porque lá naquelas densas “brelbas” do Oiapoque fora revelado um atleta para recuperar a fama do nosso futebol e salvar a honra nacional. Em um importante jogo comemorativo ao Sete de Setembro, a “seleção canarinho” do Oiapoque perdia de três a zero para a França no segundo tempo quando o treinador o colocou em campo, faltando quinze minutos para terminar. Era o último recurso. Mesmo ele entrando como reserva havia uma grande expectativa da torcida. O jogador parecia ser a arma secreta do time. 
 
Segundo Hélio o tal atleta era um caboclo todo musculoso, entroncado e baixinho, desses que chamam popularmente de “caboco tureba”. Ele corria por todo o campo e não se cansava. Evitou um gol e correu para o ataque. Driblou dois adversários e fez o primeiro gol. A torcida incentivava chamando o nome do jogador: – Dirram, Dirram! 
 
Logo em seguida veio o segundo gol do baixinho. De cabeça. No meio dos zagueiros crioulos, que tinham fama de grosseiros e rudes. E a torcida gritava: – Dirram, Dirram! Na arquibancada a charanga caprichava na marchinha “se você fosse sincera/ ôôôô, Aurora”. 
 
Aos quarenta minutos ele fez um golaço de bicicleta ao receber a bola de escanteio, para o delírio da torcida que já cantava:- Dirram,Dirram! Mais um, mais um! No Último minuto Dirram tomou a bola do atacante francês e deu-lhe uma bicuda da linha da grande área no canto esquerdo da trave e fez um gol para ficar na história, se alguém tivesse filmado. 
 
A torcida brasileira ao ouvir o apito final do juiz, já gritava alucinada e bêbada, encantada com o talento daquele atleta baixinho, rápido e bom de bola, um verdadeiro herói nacional naquele extremo fronteiriço do Brasil. Ainda ecoavam os delírios quando o atleta foi interpelado pelo técnico guianense. Depois de elogiá-lo perguntou se não era descendente de francês, pois seu sobrenome parecia indicar isso. Como assim, já “antão”? Indagou o atleta. O treinador lhe informou que ele possuía um nome de origem francesa. Ah, disse o brasileiro. É por causa do meu apelido que só chamam pela metade. Como assim, já “entom”? Perguntou o técnico francês. Então o atleta disse humildemente que o seu apelido por inteiro era “Cu de Rã”, mas que só lhe chamavam de Dirram porque gostavam muito dele.
 
Essa história do Hélio ficou um bom tempo sendo reproduzida no bar. A abertura das piadas do dia era regada a cerveja e churrasco, pois o bar do Abreu há pouco deixara de ser a lanchonete RR (Ronaldo e Rodrigo, quando juntinhos), mas ainda funcionava como açougue. Pedro Silveira a tudo ouvia e morria de rir, enquanto a Maria Bê atualizava o “Taperebá”, nosso jornalzinho mural, e o Mário Gaúcho contava uma mentira cabeluda dos pampas, limpando as mãos nos vultosos bigodes, para depois ganhar rumo no seu carro importado azul.
 
Vez por outra o bar fazia lançamentos literários, pequenos shows musicais com o Grupo Pilão, Nonato Leal e Sebastião Mont’Alverne e o Hélio passava seus vídeos sobre aspectos paisagísticos do então Território do Amapá, que fazia pelo interior com o piloto Roberval Lavor. Sem grandes opções de lazer e cultura a turma do bar fazia os eventos e se divertia com tudo isso. Na verdade todos éramos boêmios contumazes pela metade, que nem o apelido do Dirram.
 
*Texto publicado em “A Gazeta”, 10.04.2009.

Roberto Carlos de Santana, meu louco favorito

Fernando Canto
 
Não sei bem em que jornal eu li sobre um maluco que morava numa praia do Rio de Janeiro, mas quem o deixou comigo foi meu amigo RT na volta de uma viagem à cidade maravilhosa. O texto o descrevia como um homem corpulento, negro e barbudo, que fumava maconha, mas que não incomodava ninguém. Cumprimentava a todos e fazia parte da paisagem urbana de Ipanema. Todo mundo o conhecia no bairro e o autor do artigo falava em uma espécie de reencontro com ele depois de muitos anos que passou fora do Brasil.
 
Em Macapá conheci algumas dessas pessoas alienadas, praticamente abandonadas por suas famílias. E foi exatamente na minha adolescência, quando era estudante do ginásio. Na saída das aulas os mais velhos instigavam os mais novos a fazerem chacotas com elas e apelidá-las quando passavam em frente ao colégio. 

Nunca esqueci a “Onça”, que possivelmente não era louca, mas viciada na cachaça. Quando convidada fazia espetáculos sensuais, levantava a saia rodada e dançava Marabaixo, sem se desvencilhar da garrafa de “Pitú’ equilibrava na cabeça, rebolando, para o delírio da turma, que a aplaudia sem parar, rindo e gritando com aquelas vozes de fedelhos em mudança, quase bivocais.
 
Ainda posso ver o “Cientista” lá pelas bandas do Mercado Central trajando seu paletó azul claro e um calção sujo e descolorido. A barba rala, as feições indígenas e o olhar sereno. Vez por outra procurava alguma coisa embaixo de uma ficha de refrigerante ou em uma pequena poça d’água, como se tivesse perdido algo muito valioso. À vezes anotava (ou fazia que anotava) alguma coisa em um papel de embrulho, daí as pessoas acharem que eram importantes fórmulas de um cientista, vindas em um “insigth”, um estalo de idéia. Eu o vi também trajando o pijama de interno do Hospital Geral, de onde fugia de uma ala reservada aos doentes mentais.
 
Quase decrépito, mas imponente, calvo e meio gordinho era o famoso “Pororoca”. Para mim é inesquecível a cena que vi dele descendo a ladeira da Eliezer Levy, no bairro do Trem, no sol quente do meio dia, bem embaixinho da linha do equador, quando os raios do sol pareciam rachar os telhados das casas e estalar a piçarra. Lá vinha ele, rindo à toa, descalço, de cueca branca e um imenso couro de jiboia enrolado no peito. Um figuraço!
 
Creio que todos os frequentadores do bar Xodó chegaram a conhecer o “Rubilota”, um senhor de aparência forte, que andava invariavelmente sem camisa, que pedia um cigarro e ia embora. Mas de repente surtava e começava a gritar pornofonias das mais cabeludas possíveis. Quando ficava violento era preciso chamar a polícia, mas com um bom reforço, pois ele era durão.
 
Quem sempre aparecia pela Beira-Rio era o Zé, cearense e empresário de sucesso, mas que enlouqueceu, dizem, de paixão. Ele me conhecia, e sempre que me via nos bares ia me cumprimentar ou pedir um cigarro. Os garçons tentavam expulsá-lo do ambiente porque andava sujo e com o pijama do hospital, de onde fugia igual ao seu colega “Cientista”. Porém eu não deixava que o escorraçassem. 
 
Havia um cara que eu conheci ainda sem problemas psiquiátricos. Ele tocava violão e cantava na Praça Veiga Cabral, ali na parada das kombis que faziam linha para Santana. Estudava, salvo engano, no Colégio Comercial do Amapá. Anos depois eu o encontrei pelo centro da cidade cantando sozinho pela rua as músicas seu ídolo: era o Roberto Carlos de Santana.
 
O pessoal da sacanagem do Xodó chegava a pagar R$1,00 para ele cantar o “Nego Gato” no ouvido de algum freguês desprevenido. O RC de Santana chegava por trás da vítima (normalmente um amigo que não sabia da onda da turma) e dava um berro que até o Rei da Jovem Guarda se espantaria. Cantava “Eu sou o nego gato de arrepiar…” em alto e bom som e em seguida saía correndo com medo da porrada até a intervenção dos gozadores que morriam de rir.
 
Esse era o meu maluco predileto. Não sei por onde ele anda, se morreu como a maioria dos aqui citados, se ainda recebe uma grana para cantar o “Nego Gato” ou se ainda canta acreditando que é o Roberto Carlos, lá em Santana. O interessante é que as pessoas sempre têm uma explicação para a causa da desgraça alheia. Dizem que todos eles tiveram desilusões amorosas, que foram vítimas de traições, e por isso surtaram, e assim viveram e assim alguns morreram. Mas com certeza viveram bem, imersos no seu mundo, sem se importarem com que os “normais” pensassem a seu respeito, sem se indignarem com os acontecimentos inescrupulosos dos políticos indignos, estes sim, os deficientes mentais que precisam ser recolhidos definitivamente da sociedade.

A decadência das manhãs de segunda-feira – Por @MarileiaMaciel

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O dia está claro e o clima é de 1º de janeiro. Pessoas amanhecidas nas ruas, embriagadas e esbanjando alegria; casais se beijam na praça; cadeiras na calçada são ocupadas por pessoas que riem de tudo e de nada; cheiro de bebidas no ar, misturado com fumaça de cigarro; uma pessoa espera o ônibus espichando o pescoço; a dona da lanchonete serve o último sanduíche; amigos se abraçam e dançam a coreografia da música da moda; uma pessoa passa caminhando com roupas de academia; lixo transborda nas latas; uma jovem que dormiu encostada, abana involuntariamente a mosca que rodeia sua boca; vendedores ambulantes voltam com riso no rosto, pedalando com as caixas de isopor vazias; catadores de alumínio com a cara de ontem, carregam imensas sacolas entupidas de latinhas vazias; cachorros sem raça, ratos e urubus disputam migalhas de pão; um senhor passa se benzendo na frente da igreja; a mãe arrasta pelo braço a criança, que ainda tira a remela no olho; o mendigo se espreguiça sobre o papelão, sonhando com meses de prosperidade; o carro circula no volume máximo tocando funk com o motorista de olhos arregalados e cabeça pra fora.

Mas não é o dia de dar boas vindas ao ano que inicia. É uma manhã de segunda-feira de abril, em uma praça qualquer de Macapá.

Mariléia Maciel

Rumo ao pó das estrelas (Fernando Canto)

Crônica de Fernando Canto
 
Como o silêncio é uma árvore dormindo e um oco à espera do desejo, expresso meu princípio e estratégia de beijar-te perante o fogo do amor e o som das palavras.
 
Não justifico esta vontade só pelo prazer de interpretar metáforas, pois tudo urge no rio em seu curso indômito, sobre o rosnar das águas que lhe arranham o dorso pétreo. É um compartilhamento perene de dons alimentados mutuamente depois de tantas estiagens e abruptas enchentes, desses vilipêndios que causamos pela nossa natureza, talvez humana.
 
Penso que um ciclo temporal da vida não satisfaz o beija-flor. Apesar da abundância de flores sequer ele dispensa primaveras.
 
O tempo abre caminhos que se estreitam ao sabor da gravidade. E os sulcos da epiderme onde outrora líquidos corriam, abrigam fótons de raios siderais e apenas lampejos de dores passadas.
 
O amor, então, não é fator de espanto, de risco ou substância para qualquer sobrevivência, antes é uma nítida energia que transforma as leis do tempo em furtivas estrelas.
Afirmo, pois, que o meu amor não é discurso que reduz insumos oriundos de sistemas prontos, não se mensura por linguagens de processos. Ele é fonte criadora, útil, nascida, morta e renascida da alquimia da alma, da música estelar que harmoniza a vida.
 
Eu beijo à reorientação do inesperado, porque o amor não colhe néctar diariamente nem se prende a primaveras ou solstícios invernais, é mais que uma tabela, uma equação, é a minha e a tua vontade em dois relógios atrasados na viagem que não planejamos ao rio, ao mar e às estrelas.
Eu conto com o cúmplice ardume do amor: a poesia. Eu trago a contemporaneidade do sonho: o pesadelo do futuro, o ambiente maltratado, a água impura. Eu vivo! Ora, eu canto a perplexidade da vida e a paradoxal ternura que há nesses caminhos que contigo andei e continuo andando, obstinado, rumo ao pó das estrelas.

O tempo (minha crônica para hoje)

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Há meses, após breve conversa com a amiga Camila Karina, ela disse: “o tempo também é burocrático. Nós é que sempre queremos tudo pra ontem”, comecei a devanear sobre o tempo. Verdade, nem sempre dá tempo.

Aliás, o tempo nos ilude quando jovens, em nome da inexperiência e da que nunca morre, a esperança. Sim, o tempo, com pouco tempo de análise, às vezes engana, confunde e conduz pelo caminho errado. Mas nunca omite, no final, sempre mostra quem é quem e como seria. É, o tempo.

A Bíblia, livro mais vendido da história (para muitos mitologia cristã) diz: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu” (Eclesiastes 3:1).

Desconfio há tempos que existe uma conspiração que faz do tempo uma espera quase interminável para os que sofrem e um período muito curto para bons momentos. Ah, tempo, dê um tempo!

O velho astro do Rock, David Bowie disse: ‘o tempo pode me mudar, mas eu não posso reconstituir o tempo’. Verdade! Afinal, tudo há seu tempo. O tempo costuma despachar lentamente quando queremos que seja rápido e o contrário, quando é o inverso disso.

O tempo traz méritos, vivências, leva e traz amigos, irradia e ceifa vidas. O tempo sabe coisas a gente não sabe. Sim, ele flui, voa e dá tapas com luvas, mas não de pelica e sim de boxe. Mas o tempo também faz esquecer e, às vezes, até cura dores. Sobretudo, o tempo nos ensina a entender mais sobre o amor.

Enfim, o tempo passa, nós aprendemos e mudamos com ele. Eu até poderia falar mais sobre a loucura e sapiência atemporal do tempo, mas agora não. Meu amigo Fernando Canto lembrou da filósofa María Zambrano, que dizia: “O tempo é o único caminho que se abre ao inacessível absoluto”. E a Camila, com quem o diálogo originou esse devaneio, falou algo que me faz encerrar aqui: “o tempo é o remédio e a agonia de todos nós”.

Ah, só mais uma coisa: é tempo de ser feliz e assim estou fazendo, enfim, em tempo. Pois não mais tenho tempo a perder.É isso. Ótima noite de sábado pra todos nós!

Elton Tavares