Querido Papai Noel – Conto de Natal de Ronaldo Rodrigues

Conto de Natal de Ronaldo Rodrigues

– Deixa de coisa! Vamos embora! Papai Noel não existe!
– Claro que existe! E ele vai aparecer hoje pra deixar o presente que eu pedi!
– Espera sentado! Eu vou dormir. Papai Noel pode até existir, mas ele nunca lembra da gente!

O mano maior disse aquilo ao mano menor e entrou para dormir. O mano menor ficou ali, no quintal, sob o orvalho da madrugada, só pensando: “Poxa. Bem que o Papai Noel poderia aparecer aqui com o meu presente. Eu ia correndo acordar o mano maior pra dizer que ele tava enganado pensando que Papai Noel não existe”.

O mano menor desistiu de esperar Papai Noel e entrou no quarto onde dormia na cama de cima do beliche, enquanto o mano maior dormia na cama debaixo. Teve uma surpresa quando viu um embrulho em cima da cama. E acordou o mano maior:
– Olha só! Papai Noel teve aqui e deixou um presente pra mim!

O mano maior, bocejando e reclamando por ser acordado, falou bruscamente:
– Só se ele entrou quando eu tava dormindo, porque eu não vi nada!

O mano menor, abrindo o embrulho:
– É que Papai Noel é mágico! Ele entra nos lugares sem que ninguém veja.
– Tudo bem! Agora me deixa dormir.

O mano menor olhou para o mano maior com um olhar de compaixão:
– Poxa! Ele não deixou nada pra ti, né?
– É que eu já sou grande.

O mano menor falou com um certo ar de reprovação:
– É que tu não acredita nele…

O mano maior respondeu, já se virando na cama:
– E não acredito mesmo! Boa noite!
– Boa noite! E Feliz Natal!

O mano maior ficou ouvindo a oração que o mano menor fazia na cama de cima do beliche:
– Obrigado pelo presente, Papai Noel! Esse carrinho é o brinquedo que eu queria mesmo. O senhor acertou! Só quem sabia que eu queria esse carrinho é esse meu mano maior aí embaixo. Ele não acredita no senhor, mas ele é bacana. Perdoa ele! Agora eu vou guardar o meu carrinho, dormir e amanhã bem cedo eu vou brincar com o presente que o senhor me deu. Boa noite, Papai Noel!

Desligou a luz sem ver o brilho dos olhos do mano maior, que comemorava o fato de continuar mantendo no mano menor aquela chama de fantasia que embala tantas crianças por tantos anos.

Brasil na primeira divisão – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

O ano está de despedindo. Eu ia dizer se demitindo, mas achei que seria um trocadilho cruel. De cruel basta a vida e o mercado de trabalho repleto de demissões.

Dois mil e dezesseis se prepara para tirar o time de campo, sair de cena, deixando um rastro de destruição: inflação, desemprego, briga de poderes e corrupção escancarada em todos os escalões. Isso para não me estender muito sobre as mazelas que 2016 nos deixa.

Tudo tem seu tempo, mas 2016 já vai tarde. Espero que ele se encerre e que o próximo ano não seja a continuação deste. Se houver continuação, sugiro um nome para esse filme de terror: 2016 – Parte 2, A Destruição Total.

Como não participei de nenhuma falcatrua, não me envolvi em nenhum escândalo, também não tenho ninguém para delatar, o que me renderia uma premiação. A única premiação é a minha consciência limpa, mas, como preciso sobreviver mais do que simplesmente subviver, estou colocando minha limpa consciência à venda. Quero ser corrupto e ganhar as benesses que os corruptos ganham, mas ninguém se interessa em me corromper. Que droga!

Perdão! O parágrafo acima é só desabafo. Eu acredito na honra, na moral, na boa intenção e sei que a honestidade fará a grande diferença na hora da verdade. Mas é tanta desgraça que a gente acaba por deixar vazar a ironia. É inflação crescente, é parcelamento de salários, é redução de direitos, é onda de conservadorismo…

A sensação é de que todos nós caímos para a segunda divisão no campeonato da vida. O Brasil terá remédio, com todas essas doenças que se candidatam e se elegem em todos os anos eleitorais? O Teatro dos Vampiros continuará armado em Brasília? Mais aviões sem reserva de combustível, carregados de irresponsabilidade e ganância, cruzarão o ar do Brasil, levando para uma morte anunciada todas as nossas esperanças?

Por falar em esperança, este é um dos sentimentos de que mais gosto. Associo a palavra esperança a algo maior do que simplesmente esperar, mas buscar meios para que aconteça aquilo que é esperado. Pouco antes de encerrar esta crônica, sem achar motivos para alegria, eis que recebo uma mensagem de whatsapp. É uma resposta que esperava há um tempo. Esperava como o semeador espera o brotar da semente. Tratava-se de uma chamada para entrevista de emprego.

Era a tal luz no fim do túnel para mim, que engrosso as estatísticas do desemprego há alguns tenebrosos meses. Era o que eu precisava para fortalecer minha crença de que ainda vamos ralar muito, mas jamais entregaremos os pontos. O que eu precisava, mais do que palavras de consolo e otimismo, para comprovar que nada vai tirar nossa capacidade de reagir, com a alegria e a força que nos mantêm vivos até hoje, suportando golpes e armações.

Sim, nós somos mais! E vamos passar por cima de todas as previsões e ações ruins. Em 2017, estaremos lutando juntos. E vencendo! Até voltarmos a brilhar na primeiríssima divisão.

Anacrônica crônica (Ronaldo Rodrigues)

minha vida é mais interessante dentro da minha cabeça

Crônica de Ronaldo Rodrigues

A vida é uma merda. Algumas pessoas, como tu, devem pensar isso, de vez em quando. Ainda mais neste clima de fim de ano, de promessa de fim do mundo.

Concordo contigo, amigo, amiga, camaradas. A vida é uma merda. Mas imagina-te sofrendo um acidente daqueles bem escrotos, de moto ou carro. Ou uma bala perdida achada na tua coluna vertebral. Ficarás tetraplégico e fodeu-se. Tu vais pensar então:

– Porra! Não é que a vida nem estava tão ruim assim?

Tudo isso pra dizer que tudo isso é um grande mistério. Mas isso o quê? Do que estávamos falando mesmo? Coisa terrível é essa coisa que um dia se chamou memória. Ainda mais agora que os insetos do inverno estão chegando. O inverno, propriamente dito, nem sinal de chegar. Enquanto isso, vou fritando meu cérebro a 36 graus à sombra.HEEADER2

Dentro do meu aquário de segurança máxima vou apascentando minhas ovelhas negras, alimentando minha fome de justiça e saciando minha sede de vingança. Fome de justiça e sede de vingança. Eis um bom tema. Fica registrado, portanto, para ser desenvolvido em futuras crônicas.

Procuro um canal de TV, um canal de esgoto, um canal arterial. Sei lá o que a madrugada comporta. É preciso estar prevenido: camisinhas, cigarros, cerveja. Ou algo assim. Drogas ilícitas no cardápio.

Preciso também mudar de figurino. Não fica nada bem andar assim com esses trapos, a afirmar aos jornais especializados que essa é a minha moda. Que a minha moda não segue moda. A minha moda é assim. A minha moda é foda.viva_la_vida

Bobagens gratuitas na tela. Manchetes espirrando sangue. Quando foi que tudo isso começou? No dia em que o primeiro ser deu o primeiro suspiro? Pode ser. Aliás, tudo pode ser. Inclusive usar a palavra inclusive quando não há muito o que dizer. Pra ganhar tempo. Parece aquele tipo de gente que está falando muito bem e de repente enfia um a nível de… Que merda!

Por isso vou escrevendo. Tem gente que lê essas coisas que escrevo, sabias? Tem gente pra tudo neste mundo. Gente capaz de ler um poema, gente capaz de escrever um poema. E gente capaz de entrar numa escola e sair atirando a esmo. Loucura esse mundo, louca essa gente.

Ah, sim! Lembrei do que estava falando no início deste texto. A vida é uma merda, mas nem está tão mal assim. Merda serve pra adubar o terreno. Quem sabe outras flores brotarão?

Papo superlunático – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

A lua se estendeu grandona no céu, fenômeno chamado de superlua pelos astrônomos e outras pessoas que gostam disso.

Muita gente saiu pra rua pra ver a lua. Outros nem saíram pra ver a lua, saíram por sair, mas duvido que alguém que estava na rua naquela noite ia poder ficar imune à lua prometida.

Não tava tão super assim, como foi anunciada, mas a lua tava porreta, moleque! Égua! E eu acho que essa luazona me deixou meio leso. Como assim? Veja bem.

Essa lua, depois de ter boiado do rio Amazonas, resolveu dar meia volta e mergulhar no mesmo rio. De repente, sem avisar. E sabe o que aconteceu? Quando fui tomar a última garrafa da bebida que tava rolando naquela noite, adivinha quem tava dentro da garrafa?

Quem foi aí que disse que era a lua? Tedoidé? Como é que a lua, que tava porruda, maior do que ela é normalmente, ia caber na garrafa?

Tem cada uma! Só porque eu sou escritor, mexo com esse negócio de imaginação, eu vou me danar a escrever qualquer coisa?

Pois acertou quem disse que era a lua que tava dentro da minha garrafa de bebida. A lua tava lá. Lua, luona, luazona, superlua.

Me deu uma vontade de escrever, de me jogar no rio, de sair gritando, de beber a lua junto com a bebida. Nem sei que bebida era, só sei que era forte. Bateu saudade da família, de outros amigos, me vieram à cabeça outras noites de lua.

Aí resolvi cantar, com a minha voz bêbada, que deve ficar pior ainda do que quando estou sóbrio. Acho até que é por isso que eu só fico sóbrio de vez em quando. Fiz uma versão de uma música, um samba conhecido, e mandei pra uns grupos do whatsapp. Era assim:

Superlua, superlua
Você é meu bem-querer
Eu vou falar pra todo mundo
Vou falar pra todo mundo
Que eu só quero vocêêêê

Eu fiquei meio envergonhado quando voltei ao normal, no dia seguinte. Fiquei pensando, que é um negócio que a gente faz quando tá de ressaca moral: “Poxa… Enchi o saco do pessoal! Eu não devia ter feito isso”.

Mas todo mundo achou engraçado, ninguém achou que eu tinha enchido o saco. Disseram até que a versão da música tava boa. Aí eu pensei, aliviado: “Poxa… Não enchi o saco do pessoal! Vou fazer outras vezes! Rá! Rá!”.

Eu fiquei meio doido, sabe? Acho que esse negócio de que lua mexe com a cabeça da gente é verdade mesmo. Mas pode muito bem ter sido a combinação lua + bebida. E também teve aquele cigarrinho. Será?

51, visitas sem birita e a perda de amigos – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Ronaldo Rodrigues deve ter fator de cura, pois o maluco não fica velho

Relato de Ronaldo Rodrigues

Estou caminhando para os 51 anos e já começo a pensar nesse negócio de perder amigos.

Como as coisas estão acontecendo bem antes do que aconteciam tempos atrás, a gente vai visitar um amigo que sobrou da última investida da Dona Morte por estas bandas, com a proposta de beber alguma coisa, e esse amigo não pode beber:

– É que eu tô me recuperando de uma cirurgia.

Aí a gente vai à casa de outro amigo e este também não pode beber:

– É que eu tô me preparando para uma cirurgia.

Ao leitor pode até parecer que é obrigatório beber alguma coisa quando se visita um amigo, mas quem bebe e tem amigos sabe do que estou falando.

Pois bem. Resolvo ir visitar outro amigo. Este não estava se recuperando de uma cirurgia nem se preparando para uma. O problema aqui foi que ele não lembrou de quem eu sou. Assim fica difícil.

Mais um dia: Ronaldo Rodrigues se sentindo um pouco Charles Bukowski

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Mais um dia. Acordo com uma puta vontade de mandar tudo à merda. Vontade de abrir a janela e mandar todo mundo se foder. Mas é muito esforço para minha combalida figura. E a humanidade, decididamente, não vale a pena. A humanidade vai continuar aí, venerando dinheiro, trabalhando duro para meia dúzia de filhos da puta. A humanidade vai continuar fedendo pelo longo dos anos. Até acabar a merda da areia da ampulheta. Foi assim por todos esses malditos anos. Será assim pelo terceiro milênio afora. Duvido que haja um quarto milênio para a humanidade purgar.
 
Mais uma cerveja na companhia desses idiotas que infestam a festa nefasta deste bar. Um bar cheirando a mijo. Mas é preciso ser social (leia-se hipócrita) de vez em quando. Tanto faz morrer de tédio em casa ou na mesa do bar. Posso até fingir que assisto a uma decadente sessão de cinema.
 
Poesia para todos! Pérolas aos porcos! Os especialistas de coisa nenhuma estão pontificando. É impressionante. Eles conseguem me provar que não basta saber coisas interessantes para se tornar alguém interessante. Todos têm algo a dizer, muito a dizer. Só que suas palavras rebuscadas e, geralmente, equivocadas não têm nada a dizer. Antes que tudo isso me enlouqueça, aperto o gatilho na minha testa e descubro que o outro lado da vida é do mesmo jeito que este. Então era isso? A condenação já tinha começado? Droga!
 
Ronaldo Rodrigues

As mínimas coisas – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

E aquele pequeno, bem pequeno mesmo, fiapo da camisa, da calça, que escapa do tecido e sai esvoaçando pela casa, pela rua? Quem dará conta dele no final das contas, no findar dos dias, no apagar das luzes?

E aquele pedaço de unha, bem do cantinho do dedo, aquele que deixa um fiapo de sangue e uma ponta de dor no lugar onde estava esse pedaço de unha? Quem estará registrando tudo isso que vai saindo da gente para mostrar no balanço das coisas que se desgarram de nós?

O fio de cabelo que, se juntasse a todos os fios de cabelo que se soltam do couro cabeludo, daria uma imensa peruca. Será resgatado cada fio de cabelo perdido?

Fico analisando essas coisas, aproximando meu pensamento daqueles que acham que tudo o que fazemos nesta vida passará por um julgamento e servirá de atenuante ou agravante para nossa absolvição ou condenação.

Mas a maioria das pessoas só pensa que os grandes feitos terão relevância ou os grandes segredos serão revelados no final de tudo. Pouca gente pensa no mínimo, na coisa miúda, no que é considerado insignificante.

Será que, no balanço da vida terrena de todas as criaturas que aqui vivem, que por aqui já passaram e que por aqui passarão só terá espaço para as grandes causas, os crimes hediondos, o heroísmo levado às últimas consequências, o retumbante fracasso, o sucesso estrondoso?

Eu não gostaria que este texto se constituísse apenas de perguntas, mas não consigo encontrar respostas para estas questões. Na verdade, devo estar apenas provocando, cavando, levantando pontos de discussão. Creio mesmo que isso não vai dar em nada, só me fazer adentrar mais ainda, e em maior confusão, em querer saber se as pessoas e as ideias que foram descartadas ao longo do caminho serão devidamente avaliadas em algum momento. Ou virão cobrar a falta de tato com que foram tratadas. Será explicado por que amei esta mulher e não aquela? Por que deixei escapar as muitas oportunidades? Por que não tive coragem de cortar os pulsos?

Gosto de crer nas possibilidades e imagino que haverá algum tipo de ajuste de contas com os nossos destinos quando tudo isto que chamamos vida terminar. E que, depois de tudo computado, verificado, esclarecido e cobrado, iniciaremos novo ciclo e ficará a lição de que devemos prestar mais atenção nas mínimas coisas.

Bom pra cachorro – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

O que leva um ser humano a gostar de cachorro? E o que leva um ser humano a não gostar de cachorro?

Fico pensando nisso quando vejo o carinho, a atenção e – por que não dizer? – o devotamento com que é tratada a cadela que mora aqui em casa. Vejo isso em outras casas também. Pessoas que não imaginam suas vidas sem o chamego descompromissado de um gato ou a presença forte ou delicada de um cão.

Assim como, para mim, é difícil acreditar que existam pessoas que gostem tanto de animais, para essas pessoas deve ser também difícil, quase impossível, compreender que existam pessoas como eu, sem afinidade com animais.

Às vezes, penso que, entre a independência de um gato e a subserviência de um cachorro, estou perdendo alguma coisa. É do conhecimento geral que, para uma criança, a convivência com animais desenvolve a afetividade. Deve ter faltado isso na minha educação sentimental. Freud explica. Ou não.

Mas essa distância que mantenho de animais não significa que eu não goste deles. Não tenho o menor jeito com cachorros, por exemplo, mas me incomoda o fato de vê-los maltratados e já tomei atitudes diante disso. Aqui vão duas ações deste estranho defensor da existência confortável dos animais:

– Certa vez, vi um cachorro preso por uma corrente. Isso não seria uma grande novidade ou algo para provocar revolta. Acontece que a corrente era curta demais e o cachorro não conseguia pousar a cabeça sobre as patas, como eles fazem para descansar. A corrente também impedia que o cachorro chegasse até a água e a comida.

– Outra vez, vi um pastor alemão enorme dentro de uma jaula em que só cabia ele mesmo. Nenhum espaço para se espreguiçar, muito menos fazer os movimentos que um cachorro desse porte exige.

Nas duas vezes, fiz a devida denúncia, que é o que todo mundo deve fazer nessas ocasiões.

Algumas pessoas (eu disse algumas) amam bichos, mas eu me pergunto: que tipo de amor é esse? A pessoa corta o rabo do bicho, corta a orelha do bicho, impede que o bicho transe por sei lá qual motivo. Isso sem contar os donos que castram (ui!) seus pets. Deus me livre de ser amado assim! Isso eu não entendo.

Cheguei à conclusão que eu amo cães e gatos (afinal, sou fã de São Francisco de Assis, que os tratava como irmãos), assim como amo as baleias, os ursos, os camelos, os elefantes, os rinocerontes, as focas, os ornitorrincos e toda a fauna terrestre. Mas eles lá, cada um no seu habitat, e eu cá no meu. E assim a gente vai se entendendo.

Agora, dá licença que eu vou dar uma volta. Vou levar o meu lado animal para passear.

Cartum de Dia dos Pais do Ronaldo Rony

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Cartum é o desenho de humor que não tem data de validade. Este que fiz há alguns anos continua atual. Como o amor entre pai e filho, que é eterno. Quer dizer, não sei se é assim para todo mundo, mas é para mim e espero que seja para o maior número possível de pessoas. Eis aí a minha homenagem, desde já, aos pais e aos filhos que vão curtir o Dia dos Pais neste próximo domingo.

Ronaldo Rony

C a f a r n a u m – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Trechos de uma entrevista de Elias Cafarnaum, filósofo que, segundo o próprio, jamais existiu.

Assim falou Cafarnaum:

• Nascemos nus. É a gloriosa mecânica da vida. Nascemos nus para que venham o Estado, a Igreja e a sociedade nos obrigar a vestir roupas, valores, credos, ideologias…

• Acredito que, em vez de acumular coisas, as pessoas deveriam ir, ao longo do caminho, se despojando das coisas que já possui.

• Comecei a fumar aos 14 anos. Mas, profissionalmente, somente aos 19.

• Certa vez fui à farmácia comprar camisinha. A atendente perguntou se eu queria uma camisinha com mais ou menos lubrificante, com esse ou aquele odor, e muitas dessas pirotecnias aí. Respondi que bastava uma camisinha, uma simples camisinha. Os efeitos especiais ficariam por minha conta.

• Desconfio de qualquer comida que, por um motivo ou outro, não se pode colocar farinha.

• Quem nunca se viciou que atire a primeira pedra. De crack.

• Não é difícil acreditar na existência de Deus, mas é impossível acreditar em sua bondade. Só uma mente pérfida e uma total falta de sentimentos poderiam criar algo tão repugnante quanto o ser humano.

• O artista é antes de tudo um forte. Um forte candidato ao anonimato e à frustração.

• Quando a morte se apresentar não quero ter um centavo sequer no bolso.

• Você acorda de um sonho magnífico, se levanta no maior astral, toma o seu banho com imenso prazer e sai disposto a partilhar sua fraternidade com o mundo. Aí vem um serzinho qualquer e estraga tudo. Que merda!

• Uma vez li a frase ama-te a ti mesmo, de Sócrates. Achei que se tratava de masturbação. Estou nessa até hoje.

• Sou imune à decepção. Ninguém me prometeu nada e eu não espero nada de ninguém.

• O que eu acho das pessoas? Quando eu conhecer alguma eu digo.

*Cafarnaum virou esta crônica, mas é também um vídeo experimental.

 

Alguns escritos de Ronaldo Rodrigues

Textos de Ronaldo Rodrigues

AmazonasCheio

Quando o Amazonas enche, invade a minha casa. Quando seca e vai embora, só deixa lama. É um acordo que fiz com ele. Na lama do Amazonas, planto sementes de girassol. Quando os girassóis brotam, desligo todas as luzes da casa e deixo a plantação iluminando tudo: a casa, a rua, o bairro, a cidade, o país e o mundo. Você poderá pensar que só os girassóis não são suficientes. É verdade. Os vaga-lumes também ajudam.

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cadeira de balanço

A cadeira de balanço tem um ar sombrio, preocupado. Parece temer que alguém, numa sentada brusca, a destrua.

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Chapéu, boné, boina, quipá.
Barrete, capacete, turbante, filá, cocar.
Gorro, tiara, véu, solidéu.
E todo tipo de chapéu.
Tanta coisa pra colocar na cabeça e você aí com essas ideias tolas.

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ESCÂNDALO!
A secretária eletrônica fugiu com o criado-mudo!

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PRECAUÇÃO

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Sempre levo comigo uma agenda, um livro, algo assim. Se vier um vento muito forte, terei no que me segurar.

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Atrás de mim meus passos deixam impressos seus ecos: sombras nos muros dos becos.

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ANONIMATO
ESTRELATO
Tudo é questão de ATO

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ESSE É DE FÉ!
– Cadê Zumbi?
– Foi ali fundar um quilombo e já volta!

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STRIP-TEASE
– Gosto do jeito que essa mulher se veste.
– Precisas ver o jeito que ela se despe.

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Abelhas se comunicam.
Pássaros se comunicam.
Golfinhos se comunicam.
Pessoas falam.

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Dentro do osso tem tutano. Pela espinha corre uma tal de medula. Por todo o corpo corre sangue e água. E sem perceber somos atravessados por uma imensidão de líquidos que vamos, aqui e ali, desaguando para absorver mais líquido quando cai a chuva.

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QUE DESÁFORO!
O motorista taropelou o semáforo!

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O corpo tem uma porção de janelinhas chamadas poros. De alguns poros saem pêlos. Como se das janelinhas (poros) saíssem braços (pêlos). O corpo é um edifício de milhões de janelinhas com braços acenando para o vento.

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Ronaldo

TE OFEREÇO MEU PEITO CHEIO DE PAIXÃO E NICOTINA

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A sombra que me segue – O sol que me cega – Sina de vida cigana – Que siga enquanto se engana – Que chegue enquanto me despeço – Que se faça enquanto me desfaço – Que passe enquanto me disperso

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Noite alta, lua mansa. Eu e você. Eu acordado, você acesa. Nesse amasso, nesse remanso, nessa dança. Brincadeira que não cessa, tarefa que não cansa. Até que já velhinhos, cheios de ruga e tesão e esperança, voltemos a ser o que nunca deixamos de ser: crianças.

Papo de jacaré – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

– Sabia que eu tenho um jacaré?

“Ah, não! Lá vem esse cara com o papo de jacaré!”, pensou a moça encostada ao balcão do bar. Era a quinta noite seguida que ele puxava o mesmo assunto, com seu jeito bêbado de falar, meio tropeçando nas palavras. Mas ele não era mais chato que a maioria dos frequentadores do bar e ela topou dar trela daquela vez:

– Como é que é? Você tem um jacaré?

– Isso mesmo. Eu tenho um jacaré. Um grandão. Um jacaré-açu.

– E onde é que você aloja esse jacaré, aqui nesta cidade?

– Lá em casa.

– Mas eu sei onde você mora. É um apartamento pequeno, uma quitinete.

Ele sentiu que estava conseguindo, finalmente, emplacar uma conversa e tentou ganhar terreno:

– E daí? Só por isso eu não posso ter um jacaré? É um apartamento pequeno, mas dá pra agasalhar o jacaré direitinho. Se você duvida, vamos lá ver o meu jacaré.

– Olha, cara, eu recebo cantada toda noite aqui neste bar e essa sua história de jacaré é a mais esquisita.

– Que cantada? Eu estou falando de uma coisa séria. Eu tenho um jacaré lá em casa e preciso que alguém vá lá comprovar, pra que as outras pessoas não pensem que é mentira ou loucura minha.

– Eu estou começando a pensar na hipótese de ir ao seu apartamento, mas para com esse papo de jacaré, vai.

– Tá legal. Eu não vou falar mais nada. Mas que eu tenho um jacaré, eu tenho!

– Supondo que esteja falando a verdade, como é que você acomoda esse jacaré numa quitinete?

– A quitinete tem uma sala pequenininha e uma cozinha menor ainda, tudo junto. Eu durmo na sala, num sofá velho, e o espaço mais amplo é o quarto, que fica todo pro jacaré. Você precisa ver como ele fica satisfeito com um quarto só pra ele. Chega a abanar o rabo quando eu apareço, que nem cachorro.

A moça pegou o copo e, de um gole só, matou a bebida. Desceu do banquinho do balcão e fez o convite:

– Eu sei muito bem que esse jacaré é só uma desculpa pra você me levar pra sua quitinete, mas fique sabendo que funcionou. Vamos lá!

Ele, muito satisfeito, conduziu a moça pelas ruas escuras que levavam ao prédio pobre onde ficava a quitinete. Ao chegarem, ela foi logo se jogando no sofá e começou a tirar a roupa. Ele estranhou aquilo e falou meio irritado:

– O que você está fazendo?

– Tirando a roupa, mané! A gente não vai transar? Ou você acha que eu vim aqui pra ver jacaré?

– Foi isso mesmo! Eu lhe trouxe aqui pra você ver o meu jacaré. Eu falo pra todo mundo que eu tenho um jacaré e ninguém acredita. Agora você vai ver que é verdade.

Abriu a porta do quarto e lá estava o jacaré abanando o rabo, que nem cachorro, como ele tinha dito. Ela olhou horrorizada para aquele jacaré enorme – um jacaré-açu – que ocupava todo o minúsculo quarto. Ele, bastante nervoso, quase babando, com os olhos acesos, se dirigiu à moça:

– Agora, você vai dizer pra turma do bar que eu tenho mesmo um jacaré! Que eu não sou doido, como todo mundo diz! Entendeu? Entendeu?

– Tá legal! Eu entendi! Você não é doido coisa nenhuma! Calma!

Ele atendeu ao pedido e se acalmou, falando com a moça com muita gentileza:

– Faça o favor de se vestir. Se quiser ficar, pode dormir aí no sofá.

¬– Mas e você? Onde é que vai dormir?

– Não se preocupe. Vou dormir com o jacaré. Boa noite!

As cadeiras – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

As duas cadeiras caíram do caminhão de mudança e ficaram lá, no meio da rua, frente a frente. E ficaram naquele lugar por muito tempo, sem nada falar. Sim, elas tinham o poder de falar, mas não falaram nada e ficaram esperando os acontecimentos. As duas cadeiras, cada uma por si, pensavam no que fazer para matar o tempo e não morrer de tédio e aflição naquela espera.

Uma cadeira ficou recordando as pessoas que nela se sentaram. Lembrou-se de uma menininha que se sentava de manhã e ficava até o meio-dia revirando na cadeira e mexendo no celular. A outra cadeira, bem mais antiga, recordou-se de uma senhora que se sentava no fim da tarde e ficava até umas oito horas da noite lendo livros, jornais e revistas.

Uma cadeira era mais velha que a outra. Poderia ser esse o motivo de agora estarem ali, deslocadas, sem nada dizer. Conflito de gerações entre cadeiras? É possível que isso aconteça. Assim como pode haver esse choque de temperamento, idade, identidade entre todos os eletrodomésticos e utensílios e ferramentas e objetos e coisas de uma casa.

A mais nova não tinha dúvida de que seria resgatada. As pessoas da casa e os funcionários da empresa de mudança iriam dar por falta e todo esse batalhão viria em seu auxílio. Achava que a cadeira mais velha ficaria ali mesmo ou seria levada até um terreno baldio onde seria devidamente abandonada.

A cadeira mais velha também pensou que seria desprezada. Tudo bem, já tinha vivido bastante e servido àquela casa com toda a disposição possível. Nem daquele gato que gostava de amolar as garras no seu estofamento a cadeira guardava rancor. Mas não se importava que a cadeira mais nova fosse conduzida ao lugar que ela achava que merecia. Não se incomodava nem com o fato de ir parar no fundo de um porão.

A cadeira mais velha, cuja vivência já lhe havia ensinado a ser mais tolerante em relação às diferenças e vendo que as duas estavam na mesma situação, tentou um diálogo. A cadeira mais nova se mostrou avessa a essa tentativa de aproximação e balbuciou umas palavras de má vontade que deixaram claro que ela não se rebaixaria a falar com um artigo que já considerava peça de museu. Seria como conversar com uma múmia. Ou um dinossauro.

A cadeira mais velha abriu mão de qualquer tentativa de travar contato e continuou só pensando: “Eu, como tenho mais experiência, gostaria de consolar essa cadeirinha e dizer que tudo vai ser resolvido. Mas deixa ela ficar aí, com essa arrogância toda. É bom mesmo evitar a companhia de seres assim”.

Eis que, enfim, o caminhão da mudança retornou e a família desceu do carro fazendo um grande alarido. Todos se dirigiram à cadeira mais velha, que parecia ser a que tinha feito mais falta. Cercaram-na de carinho e dengo e colocaram-na com muito cuidado no caminhão. A cadeira mais nova? Também foi colocada no caminhão, mas não com a mesma festa que envolveu a cadeira mais velha. Seguiram para a nova casa e as cadeiras tomaram seus lugares. A mais velha, em posição de destaque, ganhou até uma capa novinha. A cadeira mais nova foi colocada num canto obscuro da casa. Dizem que, depois dessa, ela ficou bem mais humilde.

Apenas umas palavras sobre Ali – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

O campeão Muhammad Ali morreu neste último 3 de junho, dia do aniversário do meu filho Pedro. Ali tem essa coincidência de datas comigo, pois nasceu num dia 17 de janeiro, como eu, claro que há muito mais tempo.

Sempre fui seu admirador e sempre serei. Além da sua eficiência como pugilista, ele extrapolou os limites do ringue. Com seus punhos e seu bailado, destruiu adversários colossais. Com sua metralhadora verbal, mostrou a cara de uma América racista, preconceituosa, hostil. Com suas atitudes, fez o mundo ver, por exemplo, o quanto a Guerra do Vietnam era um absurdo e se recusou a ser envolvido nesse erro. Pagou caro por suas opiniões e nunca retrocedeu. Usou a oratória inflamada para provocar seus oponentes e foi precursor dessa espécie de marketing.

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Ele é, realmente, o maior, como disse inúmeras vezes. Com essa frase, no meu entendimento, toda vez em que ele a pronunciava estava berrando aos outros negros que eles também eram grandes e precisavam lutar por sua autonomia. Até sua arrogância esteve do lado do bem.

Em 1974, no então Zaire (hoje, República Democrática do Congo), Ali enfrentou George Foreman, também negro, mas que fazia o jogo do stablishment, preferindo não se envolver em polêmica e se omitindo em relação às condições em que vivia a população negra. Ou seja: o oposto de Ali.

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Ali ganhou a simpatia do povo africano com uma saraivada de palavras contra seu oponente, não hesitando em usar termos insultuosos. E venceu a luta depois de ser brutalmente castigado por Foreman. A esquiva de Ali e sua resistência foram fundamentais para suportar os golpes; sua paciência e inteligência o levaram a atacar no devido momento para nocautear Foreman e arrancar o título de campeão mundial. Esse combate e a tensão que o cercou estão descritos no livro A Luta, de Norman Mailer, escritor expoente do New Jornalism, gênero surgido nos EUA nos anos 1960 que associava narrativa jornalística à literatura. No livro, Mailer, também um rebelde, simpatiza francamente com Ali.

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Sempre um combatente, Muhammad Ali travou uma batalha contra o mal de Parkinson que agora teve seu desfecho. Siga em paz, campeão. Considero a sua vida como um round que os negros venceram numa luta que ainda está muito longe de terminar.