Crônica sem nome – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Meu nome é Logan. Meu nome é Kuntá Kintê. Meu nome não é Johnny.

Fico procurando algo que ainda não tenha nome, mas não encontro. Tudo já foi nomeado, catalogado, ordenado.

Gente, bicho, rio, planeta, bacilo, vírus, doença, comida. Não há nada no mundo virgem de nome. Eu bem que gostaria de nomear uma estrela, um tipo de rocha, uma droga, uma árvore. Poxa. Cheguei tarde ao batismo das coisas.

Tem lances curiosos a respeito de nomes. Doença, por exemplo. Médicos como Hansen, Parkinson, Alzheimer e Carlos Chagas são pessoas que passaram grande parte de suas vidas pesquisando, procurando a cura de uma doença e o que acontece? Ela recebeu o nome de quem tentou vencê-la. Vide mal de Hansen, mal de Parkinson, mal de Alzheimer, doença de Chagas…

Outra coisa intrigante a respeito de nomes é o nosso nome. É algo que nos marca para sempre e sequer participamos de sua escolha. Eu tive algum problema com meu nome. Até gostar dele, eu achava que deveríamos receber um nome provisório e escolheríamos o nosso nome quando chegássemos a certa idade. Afinal, é aquilo que nos acompanha por toda a vida e vai além da morte. Hoje já aceito o meu nome, não me imagino com outro e acho estranho alguém mais se chamar Ronaldo. Mas que é uma arbitrariedade o nome de uma pessoa ser escolhido sem que sua opinião seja levada em conta, isso eu vou pensar sempre.

Quando comecei a ler e sacar os nomes dos escritores, eu tinha certeza absoluta de que jamais obteria sucesso sendo Ronaldo Rodrigues. Pensava que, para ser escritor, poeta e tal, tinha que ter nome pomposo, tipo Machado de Assis, Monteiro Lobato, Castro Alves. Foi uma barreira, até entender que poderia inventar um nome, um pseudônimo, um codinome, uma senha, um nome artístico e tal. Então resolvi usar o meu nome mesmo, ainda que não seja um nome como Carlos Drummond de Andrade, Dalcídio Jurandir, Franz Kafka ou Manuel Bandeira. E confesso que tem dado certo resultado.

Há duas histórias de nomes de que gosto muito e vou relatar aqui: quando estava grávida, a mãe de um cantor/compositor sonhou que estava na beira do cais e passou um navio. Ela leu o nome do navio e não vacilou, colocou o mesmo nome no menino, que veio a ser um dos nossos artistas mais talentosos: Djavan.

Outra história, que creio que deva ser mais conhecida, é a do nome de um grande escritor, cartunista, teatrólogo, poeta e por aí vai. O nome escolhido era Milton, só que o escrivão do cartório tinha uma letra meio garranchosa e, quando anotou o nome do garoto, o t ficou sem o traço, que foi parar em cima do o, semelhante a um til, e o n ficou parecido com um r. E deu nesse nome originalíssimo, como era o seu dono: Millôr. Será que era o Todo Poderoso que estava ali fazendo freela de escrivão? Porque é uma confirmação perfeita do dito popular: Deus escreve certo por linhas tortas, já que o garoto passou para a história da arte com esse nome criado ao acaso (se é que acaso existe).

Agora digo tchau, voltando ao início deste texto, em que reclamava do fato de tudo já ter nome. Mas se aparecer algo assim, precisando ser nomeado, será que eu consigo pensar em alguma coisa? Pois não consegui colocar nome nem mesmo nesta crônica…

Brasil. Ou será ilusão? – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ainda é assunto esse negócio da carne podre? Claro que sim, afinal vai demorar um tempo ainda para o Governo Foderal arrumar um escândalo para desviar as atenções deste.

O que devo dizer é que acordei como se estivesse me tocando que minha vida não passa de ilusão. Tipo Show de Truman, saca? Pois é. De uma tacada só, fico sabendo que a carne que eu como, que já me dá câncer por si só, segundo um amigo cigano vegano, agora vem recheada com papelão. Antes disso já estava rolando a tal reforma da previdência me dizendo que JAMAIS irei me aposentar. E a terceirização veio para acabar comigo de uma vez, me afirmando, com todas as letras, que o povo brasileiro não existe como trabalhador. Que se vire, que não fique doente, que não peça aumento, que aceite as condições dos que impõem as condições. Aí eu fui pensar e saquei que tá tudo errado. Tudo é corrupto, tudo é de segunda, tudo é pirata, tudo é máfia, tudo é falso, tudo é ilusão. A começar pela Presidência do Brasil, uma farsa. Depois vêm todos os escalões lotados de gente escrota. É ministro, é senador, agora é a galera do Judiciário. Todo mundo envolvido em alguma armação. Tá foda!

Hoje eu olhei no espelho e não soube quem era aquele cara olhando para mim, do lado de lá. Claro que sou eu, mas será que sou eu mesmo? Será que tudo isso não é um pesadelo do qual vou acordar daqui a pouco? Tudo está tomando contornos de falsidade, de miragem. Impunidade, parcialidade, foro privilegiado… Aaaaiiii!!! Socooooorro!

Vou mudar de canal por enquanto, preciso me distrair, pensar em outras coisas, senão eu piro. Vou contar o quadro de humor que escrevi, para não deixar esta crônica com baixo astral. Pois bem, vamos à piada:

Sujeito acorda e se dá conta de que tudo ao seu redor é falso. Seu filho é um robô, sua esposa é uma boneca inflável, seu cachorro, uma imagem holográfica. “Devo estar no Brasil. Nada existe de verdade. Preciso tomar uma atitude”, pensa o nosso personagem. E parte para tomar a tal atitude, mas, no meio do caminho, resolve tomar outra coisa: veneno. Compra uma dose de estricnina e mete goela abaixo. Nada acontece, o veneno está adulterado. “Vou me jogar do alto deste edifício”, pensa novamente o nosso amigo. E se joga mesmo. Nada acontece, pois o asfalto se desmancha com a chegada do corpo do sujeito ao chão, como se tivesse caído num colchão de espuma. Aí ele desiste e volta ao seu mundo de mentirinha.

Ele desiste, mas eu não. Eu vou acabar com tudo isso agora mesmo! Adeus, mundo falso, país falso! Adeus, ilusão! E me dou um tiro no meio da testa. Se você chegou até aqui na leitura já sacou que o revólver não funciona. Pudera! É de chocolate! Topa um chocolate aí?

Quem sofre é o dinossauro – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sentimento de vingança é algo terrível. Não gosto quando ele vem, mas o deixo ficar, caso venha. A vingança pode atingir pessoas e coisas que não têm nada a ver com a nossa chateação. Por exemplo, esse dinossaurozinho que aparece quando a internet cai.

Demorei a saber que esse dinossauro se move, corre, pula. Trata-se de um jogo, você já deve saber disso há muito mais tempo que eu, que vou tateando nesse campo minado que é a informática, computação e tal.

Pois bem, é esse dinossauro digital que está pagando por esse serviço capenga de internet que assola a nossa amada terra tucuju.

Em vez de fazê-lo pular os cactos, faço o dinossauro dar de cara com eles. Depois do game over, disparo novamente e lá vai o dinossauro outra vez colidir com os cactos.

Para diversificar um pouco, aperto a tecla que o faz pular alguns cactos e só depois de saltar o quinto cacto deixo o dinossauro bater no cacto seguinte.

Há uns pterodátilos que aparecem lá pelo final da estrada e deve significar alguma mudança de fase. Gosto também de fazer o dinossauro se chocar com alguns desses pássaros. E assim vai até que a internet volte (coisa mais rara que avistar um dinossauro de verdade), que pode acontecer dentro de três horas, se a gente estiver com sorte.

O dinossaurozinho já está quase para entregar os pontos e ser nocauteado por mais uma batida. Deve pensar lá com seus botões: “Putz! Desse jeito, vão me extinguir mais uma vez!”.

O que pretendo com isso? Além de passar o tempo, quero expressar minha insatisfação atingindo o que estiver mais próximo de mim e, claro, não tenha condições de revidar. Também creio que essas sessões de tortura – que a Sociedade Protetora dos Animais Pré-Históricos não me processe – possa fazer com que as operadoras se compadeçam do pequeno dinossauro e ajeitem logo essa merda de internet. Ih! Lá vem o sentimento de vingança de novo! Mas agora o para-raios foi o teclado, que destrocei jogando na parede.

Deixo o dinossaurozinho tomar fôlego e lá vamos nós outra vez ao jogo. Game over.

ATENÇÃO, PASSAGEIRO DESTA SEGUNDA-FEIRA – Ronaldo Rodrigues

ATENÇÃO, PASSAGEIRO DESTA SEGUNDA-FEIRA:

Estamos voando em velocidade de cruzeiro.

O tempo é bom, se consideras, como eu, que chuva é tempo bom.

A visibilidade é boa. Acabei de pingar um colírio de novo horizonte.

Estamos sobrevoando Macapá, que promete se comportar bem este dia.

Estamos sujeitos a turbulências, mas, caso haja alguma emergência, daquelas bem foda mesmo, serás inundado por sentimentos de amizade e esperança.

Este avião – a segunda-feira – promete – e cumpre! – que atravessará o tempo e o espaço e pousará no aeroporto do paraíso. Mas aí tu terás que embarcar no próximo avião – a terça-feira – , onde a viagem já será outra.

Bom voo para nós.

Ronaldo Rodrigues

A última cruzada do Zerão/São Camilo – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Olha eu aqui outra vez esperando o ônibus Zerão/São Camilo. Se você não é usuário dessa linha, meus parabéns. Esta é a terceira crônica que escrevo esperando o tal ônibus. Prometo que será a última. Eu já não aguento mais, nem esperar o ônibus nem esse assunto. Não vou ficar enchendo a paciência dos meus leitores com mais uma lamúria. Na verdade, vou mudar o enfoque. Chega de palavrões destinados à empresa. Chega de culpar o funcionário encarregado de traçar os horários. De agora em diante, passo a reconhecer publicamente o grande serviço que o Zerão/São Camilo está prestando à minha carreira artística.

Graças à espera, estou escrevendo mais uma crônica. Isso deve ser entendido como uma coisa boa. A espera me inspira a escrever, me dá assunto e tempo suficiente para desenvolver um texto. Também já criei frases e roteiros nessa espera. Já resolvi páginas e páginas de palavras cruzadas, o que sempre me ajuda a relaxar e descolar uns temas legais. No campo do desenho, esperar o Zerão/São Camilo também já me rendeu boas ideias, que rascunhei esperando o ônibus e desenvolvi depois. A leitura também está ganhando impulso com essa espera. Acabei de ler um livro de trezentas e cinquenta páginas. Garanto que pelo menos trezentas dessas páginas foram lidas enquanto eu esperava o Zerão/São Camilo. Outra coisa que a espera possibilita é o papo com os outros passageiros. Fica-se tanto tempo esperando que algumas amizades se iniciam e outras vão se fortalecendo.

Pronto. Retiro tudo o que disse de ruim sobre essa linha e atribuo a ela o título de patrimônio cultural de Macapá. Quase patrimônio imaterial, já que está cada vez mais difícil avistar um ônibus.

Por falar nisso, lá vem ele, o agora maravilhoso Zerão/São Camilo. “Viva!”, gritam todos os meus companheiros de espera, arrebatados pela emoção. É hora de guardar papel e caneta e ficar esperto para não perder esse ônibus, que pode ser o último, pode ser o único. Caso eu não consiga embarcar, nunca se sabe quando poderei contar com ele novamente. Talvez só no próximo eclipse.

Obrigado pela paciência. Ponto final neste assunto.

Meus amigos ETs – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Esta crônica é uma homenagem aos meus amigos ETs. Eles mesmos, que estão por aí curtindo a sensação que deve ter alguém que quase todo mundo afirma que não existe. Alguns amigos deste mundo, de vez em quando, vêm com esse papo: a existência de vida além deste nosso planetinha tão maltratado. O assunto é muito bom, mas as pessoas costumam transformá-lo em coisa chata, rasteira, uma monótona repetição de ideias.

– Ah, que nunca foi comprovado nada sobre a existência de vidas alienígenas!

– Ah, que não se pode acreditar em extraterrestre e em Deus ao mesmo tempo!

– Ah, que os extraterrestres são maus, querem nos escravizar!

– Ah, que só o nosso planeta, no universo infinito, reúne condições para que um ser possa se desenvolver, respirar, essas coisas.

– Ah, que isso ainda não apareceu no Fantástico!

– Ah, que saco! (digo eu).

Eu era adolescente de outro século e essas coisas já eram ditas. E elas, no século XXI mais ainda, continuam fora de qualquer raciocínio razoável.

Vou aproveitar que meus amigos ETs estão passando o carnaval aqui em Macapá e montar um bloco só de amigos de outras galáxias. Só para mostrar a todo mundo que gente de outro mundo existe. Na certa, nem serão notados. O pessoal vai pensar que se trata de fantasia.

Meus amigos ETs não precisam mesmo ser notados. Meus amigos ETs não precisam se juntar à maioria da população da Terra. Meus amigos ETs não entendem como os humanos conseguem fazer e pensar tanta merda. Meus amigos ETs jamais usariam termos como “sapatão” e “viado” para se referir a um outro alguém. Meus amigos ETs não fazem a menor questão de saber com quem o vizinho dorme.

Na passarela, o bloco dos seres terrestres. Eles se acham a espécie mais evoluída, mais desenvolvida, mais inteligente de todo o universo. Esse é o enredo da escola de samba da vida deles. E nem respirar da forma correta eles conseguem. E mordem a própria língua, pisam nos pés uns dos outros, dirigem máquinas mortíferas de forma irresponsável, dão porrada em quem não se vê na obrigação de atender às suas expectativas. Julgam, condenam e executam.

Meus amigos ETs acabaram de me mandar uma mensagem. Por telepatia, lógico. Esqueçam celulares, satélites, redes sociais e tais quando quiserem falar com um ET. Eles dizem para que eu pare de falar assim, um tanto duro, sobre os humanos. Eles, os humanos, podem se melindrar. Ser humano adora um melindre. Eles podem se vingar, têm sede de vingança. Digo aos meus amigos ETs que existem humanos legais também. Conheço vários. Que dão bom dia às outras pessoas com a vontade e a energia de quem deseja do fundo da alma que haja realmente um bom dia. Pessoas que praticam bom dia sem precisar postar “bom dia” e caretinhas sorridentes no Facebook. Pessoas que, para que se sintam vitoriosas, não precisam da derrota de ninguém.

Deixo para os meus amigos terrestres a discussão sobre vida fora da Terra, o debate sobre a existência de seres inteligentes em outras galáxias. Abro mão, com muito entusiasmo, das teorias, dos compêndios e dos filmes sobre o tema. Me despeço e vou à procura dos meus amigos ETs. Com eles o papo é sempre sério porque é muito divertido. Ninguém fica blá-blá-blá falando sobre blá-blá-blá a possibilidade de vida inteligente blá-blá-blá na Terra blá-blá-blá.

Mas deixemos de papo que os meus amigos ETs estão aqui para curtir a folia. Quem quiser vê-los é só esperar a terça de Carnaval. Estaremos todos na Banda.

Cicuta-beer (crônica de Ronaldo Rodrigues)

Acordo bêbado.

Ato ao pescoço minha corda-gravata rosa de bolinhas azuis e vou encarar meu sórdido e rentável emprego: espantalho das plantações de eletrodomésticos de Madame Nero.

Nas horas vagas, vou alimentar a coleção particular de Madame Nero, seus bichinhos de estimação: quinhentos e vinte e oito rinocerontes prateados que se alimentam exclusivamente de algodão doce.

Volto para casa cansado, mas cantarolando.

Vejo muitas pessoas na Praça Transcendental.

Entre mendigos e bêbados, encontro Morfeu dormindo num banco de mármore, abraçando uma garrafa quase vazia de cicuta-beer. Está coberto por vários jornais futuros que deixam ler, em manchetes imensas, a abolição dos ponteiros e dos relógios, dos arquivos e dos escritórios e anunciam A Grande Libertação do Dia.

Respiro aliviado a fumaça do rush e ciscos voadores invadem meus olhos. Mas nada mais tem importância. A vitória da Fraternidade Cósmica está garantida e seremos todos felizes.

Jogo meus tênis e tédio e temores na lata de lixo, me misturo aos bêbados e mendigos e passo a esperar o grande show dos Incendiários das Nuvens.

Ronaldo Rodrigues

A Loja de Produtos Abstratos – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Acordei às quatro horas da madrugada, tinha perdido o sono. E eu teria que me levantar às sete e meia para iniciar o ritual de ir ao trabalho. Ou seja, eu dispunha de um tempo considerável para aproveitar entre as cobertas, ainda mais que estava caindo uma chuvinha gostosa, propícia para ficar na cama entregue a Morfeu. Mas quem disse que eu conseguia pegar no sono outra vez?

Depois de rolar na cama por algum tempo, entendi que não adiantaria tentar voltar a dormir. Lembrei de um empreendimento surgido há pouco tempo, inaugurado como uma grande sensação, um conceito totalmente novo de negócio. Era a Loja de Produtos Abstratos, que atendia a qualquer hora e comercializava artigos como coragem, esperança, vontade, esse tipo de mercadoria. Eu não sou de embarcar em qualquer novidade, ainda mais quando ela é muito comentada, mas venci essa minha tendência e liguei para a loja:

– Alô. Eu gostaria de saber se vocês têm sono para vender. Eu acabei de perder o meu e não consigo fazer com que ele volte. Podem me ajudar?

A voz do outro lado respondeu, entre um bocejo e outro. Vi logo que eles tinham sono:

– Temos sono, sim, senhor, mas só para consumo próprio. Sono para venda acabou. Sinto muito, senhor.

– Mas nem um pouquinho de nada? Eu não preciso de muito sono, só até sete e meia da manhã.

– Só tenho o meu sono, que vou usar assim que encerrar o atendimento ao senhor. Meu expediente já está no final. Se o senhor tivesse ligado meia hora antes, teríamos um estoque novinho de sono.

– E o que aconteceu com ele?

– Foi comprado por um cidadão que sofre de insônia, senhor. Ele estava há três dias sem pregar o olho. Encomendou o carregamento todo.

Fiquei desapontado, mas continuei aquele insólito diálogo:

– E o que você me aconselha para recuperar o sono?

– Ligue a televisão. Para mim, é infalível. Sempre que ligo a TV, dentro de cinco minutos já estou roncando.

– Não tenho paciência para ver televisão. Por falar nisso, vocês não teriam paciência para vender? Estou muito necessitado.

– Paciência é um produto que não fica muito tempo na prateleira. É uma das mercadorias mais procuradas. Deve ser por causa da situação política e econômica do país, que deixa todo mundo sem paciência, precisando repor a toda hora. Mais alguma coisa, senhor?

– Bom… Já que estou no meio da madrugada e daqui a pouco terei que me levantar, preciso de muita disposição para encarar o trabalho. Tem disposição?

– Sim, senhor. Finalmente, vamos poder atendê-lo. E já que os dois artigos que o senhor procurava estão em falta, vamos fazer uma promoção especial para compensar: um pacote com porções generosas de disposição + ânimo + entusiasmo.

¬– Legal! Gostei! Uma espécie de combo!

– Exatamente, senhor! Vamos entregar agora mesmo. Diga lá o seu endereço.

E foi assim que me tornei cliente da Loja de Produtos Abstratos. Eu recomendo.

a última canção de susana san – Conto de Ronaldo Rodrigues

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• ela está parada sentada na pedra em frente ao mar
• ela ouve o som do vento, do vento, do vento que entra pelo labirinto da concha de sua orelha
• ela e o violão antigo deixado de herança por um tio-avô excêntrico, esquisitão mesmo, que morava numa caverna
• ela, susana san, canta uma canção, um trecho ouvido no dia do enterro de sua mãe
• ela toca o violão e algumas gotas d’água (e de lágrima) chegam às suas pernas
• susana san sente a pedra afundar, ou melhor: o mar subir
• ela esquece a música, depois lembra, ela esquece o namorado que partiu pra guerra, depois lembra, ela esquece o pai, não poderia ser diferente, já que ele nunca voltou de uma viagem interminável
• ela esquece tudo, depois lembra, mas agora é tarde para lembranças e esquecimentos
• o mar já chega aos seus seios10866923_4982667982073_2072246637_n
• o violão vai ficando cheio d’água e ela perdeu a vontade de ir embora
• ela sabe que não adianta tentar se salvar, já que nada detém o mar (mas esquece)
• hoje sou eu que estou na pedra à beira do mar pensando ouvir a última canção de susana san trazida pelo mar, pelas gaivotas, pela lembrança daquele portão velho de madeira do fundo do quintal
• ouço a última canção de susana san e me despeço da pedra
• agora já é amanhã, ou seja: hoje
• retornei, sempre retorno na esperança de que o mar e o vento tenham aprendido a última canção de susana san para fazer o mundo aprender
• e se libertar

Pequeno Donald – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Pequeno Donald sempre foi temperamental, mimado, cheio de vontades. Aos três anos, cismou de botar fogo em Roma, só de farra. Mas foi dissuadido da ideia quando soube que outro louco já tinha feito isso, há muito tempo. Aos oito anos, Pequeno Donald entrou numa de invadir a Polônia. Outra vez apareceu um estraga-prazeres a dizer que aquilo também já tinha sido realizado pelas mãos de outro louco, o que deu na segunda guerra mundial. Claro que Pequeno Donald se vingou das duas pessoas que o alertaram sobre a impossibilidade de consumar seus propósitos. Criou uma pena de morte particular e acabou com a carreira daquelas pessoas. Pequeno Donald não queria conselheiros que o desaconselhassem a realizar suas atrocidades.

Pequeno Donald sempre foi topetudo. Ainda moleque e já abusado. Aos 14 anos, submetia os empregados de seu pai magnata a todo tipo de humilhação, espancava seu melhor amigo por achar o garoto educado demais e castigava duramente sua primeira namorada sempre que esta se recusava a beijar aquele sapo metido a príncipe. Aos 20 anos, no auge de sua maturidade intelectual, ele se transformou nisso que vemos hoje, mas vou continuar a chamá-lo de Pequeno Donald porque aqui no meu texto quem manda sou eu.

Pequeno Donald fez pós-graduação em estupidez e virou especialista em fazer/falar merda. Esse currículo o levou a imaginar que poderia começar sua carreira política já pelo topo, ele que nunca foi candidato a qualquer cargo público.

Não deu outra. Falando bobagem por cima de bobagem, ofendendo quem encontrasse pela frente, fazendo galhofa de seus adversários e mesmo de seus aliados, Pequeno Donald foi agraciado com o trono do império. O novo ocupante da Casa Branca está disposto a infernizar a vida de mulheres, homossexuais, negros, islâmicos, hispânicos, imigrantes…

Pequeno Donald, o homem menos iluminado e mais poderoso do pedaço, comandante-em-chefe da maior máquina de guerra da atualidade, dono de um estilo debochado e autoritário, pretende dar vários passos para trás na questão dos direitos humanos e já começa seu mandato construindo um muro para isolar o vizinho, impondo a este o pagamento pela construção.

Ainda veremos muitos descalabros dessa figura nefasta no decorrer do período. Por enquanto, vamos torcer para que o nosso combalido planeta suporte essa barra. Já passamos por muitos sinais do apocalipse e podemos alimentar a esperança de que Pequeno Donald fique logo enjoado do brinquedo novo e deixe o mundo em paz.

Talvez seja só rabugice minha – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

– Zumbis invadem o mercado publicitário!

Acordei com essa manchete dada pelo apresentador do telejornal do sonho que estava rolando na minha cabeça. Aquela frase soou tão real que ficou me perseguindo enquanto eu me banhava, tomava café e esperava o ônibus para ir a uma agência de publicidade.

O sonho tinha a ver com a minha situação de publicitário que, após um ano e quatro meses fora do mercado de trabalho, enfrentaria uma entrevista de emprego naquele dia.

O sonho – na verdade, um pesadelo – tinha me mostrado uma agência de publicidade cujos trabalhadores, de ar entediado, estavam colocados em seus aquários virtuais, conectados aos guetos de suas redes sociais através de aparelhos ultramodernos, ostentando o poder de falar com o mundo todo, apesar da falta de assunto ou do excesso de assunto sem relevância. Uma equipe insípida, inodora e incolor de robôs formados em marketing ou coisa parecida e pós-graduados em arrogância.

Talvez seja só rabugice minha, que venho de um passado cada vez mais distante, quando as agências de publicidade eram redutos de pessoas realmente talentosas e autênticas. Quase nenhuma formada, mas todas muito bem informadas sobre as maravilhas e as tragédias da vida, o que rendia um belo trabalho.

Os formados (pelo menos, a maioria) precisam provar que são da publicidade através de seus diplomas e não de suas competências, não de seu brilho criativo. Para estes, eu tenho o prazer de dizer que a fama da propaganda brasileira, reconhecida no mundo inteiro, foi feita por não formados, como Washington Olivetto, Nizan Guanaes e outros que não davam muita bola para esse negócio de diploma. Hoje, em plena vigência da Ditadura do Canudo, a grande façanha dos trabalhadores de criação é procurar referências na internet, o que leva à triste conclusão de que ninguém cria mais nada e a mediocridade, se ainda não tomou conta, vai fazer isso em pouquíssimo tempo.

Talvez seja só rabugice minha essa implicância com a publicidade de hoje. Rabugice de um dinossauro que começou a carreira construindo seus textos em máquina de escrever. Que viu os anúncios sendo feitos na prancheta, diretamente sobre o papel. Que sentiu o cheiro de cola de sapateiro nas salas de arte. Que teve, entre seus companheiros de trabalho, feras do texto e do layout como Oswaldo Mendes, Chico Cavalcante, Sérgio Bastos, Cacá Farias, Federico Spitale…

Voltando ao presente: fui bem na entrevista e consegui o emprego, o que me causou alegria, por voltar à ativa, e surpresa, já que estava quase convencido de que redator publicitário fosse uma profissão extinta por estas bandas. Já achava que ideias, e pessoas que as tenham, fossem coisas dispensáveis em agências de publicidade deste novo milênio.

A agência que me contratou me parece disposta a manter a possibilidade de vida inteligente no mercado publicitário e ir além do que se produz nos dias atuais. De minha parte, enquanto meus neurônios suportarem, vou continuar lutando bravamente para que as agências de publicidade jamais sejam invadidas por zumbis.

O primeiro poema do ano – Por Ronaldo Rodrigues

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Conto de Ronaldo Rodrigues

O tinteiro, a pena e o papel estavam lá, à minha frente, sobre a pequena escrivaninha, herança de meu avô. Eu estava tranquilo e os ruídos que chegavam da rua não me perturbavam. Eram os fogos recebendo o ano novo. Eu tinha marcado encontro com a solidão e estava ali no meu quarto, sozinho no mundo, com a firme intenção de escrever o primeiro poema do ano.

Eu procurava uma maneira de iniciar o desafio que me foi imposto pela vontade de extravasar os sentimentos por tanto tempo guardados no peito. Naquela madrugada de festa para o mundo, eu iria escrever um poema.

Eu nunca havia escrito um poema antes e aquela súbita ideia me pareceu absurda. Ela me atingiu no ônibus que vinha lotado de passageiros suados e cansados, assim como eu. A única diferença entre eu e os outros passageiros é que eles iriam tomar um belo banho e se preparar para a festa do ano-novo. Eu não. A minha intenção era me trancar no meu quarto de miséria e ficar só, irremediavelmente só.1600072_3790929309351_1861746970_s

A vontade de escrever um poema mudou um pouco o meu estado de espírito. O ônibus era trepidante e barulhento, mas o desejo de escrever um poema me fez flutuar ao som de uma linda sinfonia e nem notei se a viagem foi longa.

Tomei um banho demorado, curtindo as bolhas de sabão que dançavam à minha volta, e observei, pela primeira vez, os desenhos herméticos que as idas e vindas das formigas formavam no branco do azulejo.

Saí do banheiro e vesti a roupa mais simples. Fui ao minúsculo quintal e reguei a única planta que eu cultivava. Pela primeira vez, também, conversei com ela. Depois, alimentei os cães e gatos vadios que, à vezes, me visitavam. Eram as únicas visitas que eu recebia. Mudei a disposição dos poucos móveis do quarto e coloquei uma cortina na janela.1598414_3790928949342_1697756337_n

Dispensei computador e essas parafernálias eletrônicas. O meu primeiro poema seria escrito como se fazia antigamente, com tinteiro, pena e papel.

Lá fora os foguetes espocavam e as pessoas se cumprimentavam. E eu estava ali, em total solidão, com a firme determinação de escrever o primeiro poema do ano. O primeiro poema da minha vida.

Desenhos (conto)

Conto de Ronaldo Rodrigues

Ele estava sempre com aquela pasta preta carregada de desenhos e as pessoas nos bares diziam, quando o viam se aproximando:

– Ei, lá vem o velho desenhista com aquela pasta preta, grande e suja.

Ele chegava à primeira mesa e perguntava se alguém poderia pagar uma cerveja, sempre ameaçando:

– Ou vocês pagam a cerveja ou eu vou abrir a pasta e mostrar uma infinidade de desenhos. Vai levar a noite toda. É melhor alguém pagar. Aí eu vou embora e vocês poderão continuar a falar essas bobagens que falam todo dia.

Alguém sempre pagava uma cerveja e ele ia embora. Bebia devagar, sentado na sarjeta. Quando a cerveja terminava, ele jogava a latinha no lixo e partia pra mais uma abordagem em outra mesa do bar. E assim ia até o amanhecer, quando os bares fechavam. Acho que nunca chegou a mostrar os desenhos a alguém. Pelo menos ninguém que eu conhecia, naquele conjunto de bares, tinha visto os desenhos. Eu me perguntava se eles existiam mesmo. Até quem numa noite eu quis ver os desenhos. Ele deu um pulo:

– Como? Quer ver os desenhos? Há quanto tempo você bebe neste bar?
– Uns três anos.
– E ainda não sabe como é o esquema?
– Que esquema?
– O meu esquema. Eu digo que vou mostrar os desenhos e as pessoas nunca querem ver. Acham que isso vai atrapalhar o papo. E atrapalha mesmo, são muitos desenhos. A galera prefere me pagar uma latinha pra eu ir embora.

– Tudo bem. Eu pago a cerveja, mas quero ver os desenhos.

Ele ficou um pouco indeciso, mas abriu a pasta gigantesca e já ia me mostrar os tais desenhos, quando eu disse:

– Pode ser que eu goste de algum desenho e compre.

Ele fechou a cara, fechou a pasta, pegou a cerveja que eu já tinha dado e saiu caminhando pra longe de mim:
– Comprar um desenho meu? Aí já é demais! Adeus!

Tudo bem, leitor. Eu também não entendi. Só sei que a minha curiosidade pra ver os desenhos aumentou mais ainda.

*Ilustração: Ronaldo Rony / Foto: Maria Lídia Cunha

2017, só te digo vem! – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Primeiramente, fora 2016!

Calma! É só mais um desabafo! Eu sei que o ano em si não tem culpa de nada. Mas é preciso encontrar um bode expiatório para canalizar toda a raiva que sentimos no decorrer do ano.

O final/começo de ano sempre me intrigou. A solidariedade protocolar, com data marcada, nunca me entrou bem. Ainda mais quando a humanidade, que nesta época do ano fica tão emotiva, festeja o nascimento de Jesus e alguns meses depois, já dentro do novo ano novo, crucifica o aniversariante na maior selvageria e depois, sem o menor remorso, vai aproveitar o feriadão.

Papai Noel já saiu de cena, mas prometeu voltar nos próximos anos, já que, para poder se aposentar, vai ter que ralar ainda por muito tempo. A reforma da previdência foi um golpe duríssimo para o Papai Noel e todos os bons velhinhos do Brasil.

O ano está se despedindo e levando uma porção de celebridades. Nem a princesa Leia escapou, ela que era o lado mais bonitinho da força. Teve até piada fora de hora do jornalista Jorge Pontual, que foi pontualíssimo em sua falta de tato. Ao comentar as reações à morte da atriz Carrie Fisher, o idiota global imitou o som da fala de Chewbacca e ganhou o Prêmio Chewbabacca do Fim do Ano.

Mas este texto é para festejar o ano que está indo embora e não lastimar. Porque se formos dar terreno para as lamúrias, o fim do mundo se dará novamente através de um dilúvio, agora não de chuva, mas de lágrimas.

Vamos festejar a… Ops! Falhou a memória. Já sei! Vamos festejar o… o… Ah! Acho que não há mesmo o que festejar, a não ser o fato de estarmos vivos, mas nós somos brasileiros e não desistimos nunca de tentar encontrar motivos para uma boa farra.

Sobrevivemos a eleições, lava-jato, golpe, intolerância, conservadorismo, guerra, terror. E estamos prontos para enfrentar 2017. Isso se sobrar alguma coisa depois que Donald Trump, a besta quadrada do apocalipse, sentar no trono da Casa Branca no dia 20 de janeiro.

Pensei até numa dobradinha de Trump e Temer na virada do ano. Os dois, de mãos dadas, falando ao mundo e à nação brasileira:
– Atenção, imbecis, para a contagem repressiva: 5…, 4…, 3…, 2…, 1… Fogo no rabo de vocês!

Mas esse não é um jeito legal de concluir esta crônica. Melhor terminar com Chico Buarque cantando para os dois monstrengos aí de cima:
– Apesar de vocês amanhã há de ser outro dia.

E vai ser! Feliz 2017!