Um dia amante

Conto de Ronaldo Rodrigues
 
Uma vez, pelos idos de minha infância, fiquei apaixonado por uma garota. Falei isso para ela, propondo uma aproximação maior. Ela, entre risos de deboche, impôs uma condição: eu deveria levar-lhe o maior diamante que pudesse encontrar. Tal diamante deveria ser roubado de meu melhor amigo, a quem eu deveria assassinar. Depois disso, ela prometeu, nós voltaríamos a tocar no assunto. Falei que tudo bem.
 
Naquela época, as vacas estavam gordas. Todo mundo tinha muitos diamantes, encontrados facilmente pelos caminhos. Mas como roubar o diamante de meu melhor amigo se eu não tinha melhor amigo? Meu único amigo era meu avô, mas eu achava que não contava como melhor amigo. E seria loucura roubar meu avô. Ele tinha muitos diamantes, os maiores. Mas pensar em roubá-lo? Sei não…
 
Fiz o seguinte: admiti que meu avô, sendo meu único amigo, era também meu melhor amigo. Daí a assassiná-lo foi um passo. Já estava velho mesmo. Peguei o maior diamante que encontrei e levei para a garota imediatamente.


Sabe o que a garota me falou, na maior cara de pau? Que ela não gostava de homens que fazem tudo o que as mulheres pedem.
 
Nunca mais nos vimos. Entreguei o diamante a outra garota e fomos felizes para sempre até a semana passada.

O vendedor de mingau (Crônica bacana de Ronaldo Rodrigues)

 
–Mingaaaaaaaaaaauuu quieeeeeeeeeeeeeeente!
 
Havia quem dizia que seu Alfredo não morava em lugar nenhum.
Era um ser encantado que saía à noite com seu carrinho de mão. A garotada fazia a festa. As rodas do carro de mão rangiam sob o peso dos três panelões cheios do delicioso mingau de milho.
 
A voz de seu Alfredo enchia de poesia aquela rua suburbana, dentro da madrugada:
– Mingaaaaaaaaaaauuu quieeeeeeeeeeeeeeente!
 
– O senhor não tem medo de assalto, seu Alfredo?
 
Ele dizia que, por causa do seu grito, os anjos da guarda ficavam acordados e o protegiam.
 
– Até apareceu um ladrão uma noite dessas aí. Mas eu dei um pouquinho de mingau e ele desistiu de me roubar. Ficou meu freguês, não deixa ninguém mexer comigo e ainda livra a cara de todo vendedor ambulante, só por minha causa.
 
Seu Alfredo enchia a cuia. Para muitas pessoas, aquele mingau era o jantar, a ceia, o lanche da madrugada. Aquele subúrbio era lugar de gente muito pobre. Minha família não era a mais pobre entre elas e meu pai podia até bancar mingau para uns vizinhos que tinham menos que nós.
 
Íamos para a cama assim que terminávamos o mingau. E enfrentando o frio da madrugada, lá ia a voz de seu Alfredo, já por dentro dos nossos sonhos:
–Mingaaaaaaaaaaauuu quieeeeeeeeeeeeeeente!
 
Ronaldo Rodrigues

Asas pra que te quero – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

De tanto reclamar da demora do ônibus, foi lhe dado o dom de voar. Claro que é difícil explicar ou acreditar em algo assim. Ele mesmo não acreditou. Isso só aconteceu quando abriu os olhos e viu que estava flutuando a uma altura de 20 metros.

Quando a espera do ônibus passou dos 30 minutos, ele havia fechado os olhos e pensado: “Como seria bom se eu não dependesse de ônibus pra chegar ao meu destino, lá no centro da cidade. Quando abrir os olhos, quero estar voando”.

E agora, ele estava ali, flutuando, com suas grandes asas. Sentiu um pouco de vertigem e demorou a acreditar naquela nova condição, de homem voador. Na verdade, um homem flutuador, planador, já que ainda não conseguira nenhum deslocamento.

Depois que passou a vertigem, ficou pensando em como dar a partida. Nem dirigir carro ele sabia, imagine algo parecido com avião… Mas não foi difícil descobrir. Ao pensar em se movimentar para a direita, seu corpo tomou essa direção. “Legal! O voo obedece ao meu pensamento. Muito bem! Quero ir direto para o centro da cidade. Iupiiiiiiiii!”.

Num voo tranquilo, sem escalas, ele chegou ao centro. Como ainda estava se acostumando com aquela situação, teve problema na hora de aterrissar. Não calculou bem a distância e por pouco não se estabacou no chão.

As pessoas em volta ficaram maravilhadas com aquele homem que chegou de forma tão inusitada. Tiraram selfies e encheram o homem de perguntas. Deixou seu contato para quem quisesse dar uma volta pelos ares, assim que ele estivesse mais acostumado com aquilo.

Uma equipe de televisão estava passando pelo local e, claro, o convidou para participar do programa de entrevistas de maior audiência do canal. Ele recebeu um polpudo cachê referente à exclusividade, mas os paparazzi não perderam tempo e, naquele mesmo momento, a foto do homem-pássaro foi parar em milhares de blogs e sites. As redes sociais transbordaram de imagens. Os jornais impressos, dando sinal de resistência à hegemonia da mídia digital, noticiaram o fato e bateram recordes de vendagem.

E assim, de um momento para outro, aquele homem simples, que só queria chegar ao seu destino, foi transformado numa celebridade, num gigantesco furo de reportagem. Mas o grande espanto deste texto não é o relato de um homem que pode voar e, sim, o fato de eu ter desenvolvido esta crônica no tempo de espera de um ônibus da linha Zerão-São Camilo, um tema já visto anteriormente aqui.

Neste momento, ainda estou na parada, esperando o tal ônibus. Estou criando raízes, teias de aranha, rugas, mas nenhum sinal de asa apareceu até agora.

O Capitão Açaí e a tocha olímpica – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

O Capitão Açaí fez uma rápida pesquisa entre seus familiares e a legião de admiradores e chegou à conclusão de que a maior celebridade do Amapá é ele mesmo, o próprio, o fabuloso Capitão Açaí. Com essa constatação, que nem precisava de pesquisa, se viu em condições de concorrer ao cargo de carregador da tocha olímpica. Carregador é meio estranho, mas procurei no Google e é assim que se referem a quem vai pagar esse mico, ops!, a quem vai ter essa honra.

A comissão organizadora checou o curriculum e ficou muito satisfeita, declarando que o Capitão Açaí preenche plenamente os requisitos exigidos. E o nosso herói foi além: declarou que era, aqui no Brasil, o representante legal de seu colega de super-heroísmo, o Tocha Humana. Logo, não poderia faltar. Disse também que sua presença entre as personalidades que irão conduzir a tocha pelas ruas de Macapá afastará pessoas de má intenção, como, por exemplo, alguns dos nossos ilustres parlamentares. Algum deles pode roubar a tocha. O valor é simbólico, mas há muitos políticos em que não dá pra confiar. Declaração do Capitão Açaí:

– Eu não coloco a mão no fogo da tocha olímpica por esses caras!

Ainda usando de seu renome, solicitou à comissão organizadora que a passagem da tocha se dê no período da noite. Como tem muita queda de energia em Macapá, a tocha iluminaria, ainda que por alguns minutos, os lugares que sofrem com essas falhas na rede elétrica, o que deixa os moradores chocados. Outra reivindicação do herói, feita com todo o cuidado, pra não abusar de seu prestígio: que ele não seja colocado entre os atletas de elite (ainda os políticos oportunistas citados no parágrafo anterior), que, com toda a certeza, não perderão a oportunidade olímpica de aparecer nesse espetáculo de gosto duvidoso. Declaração do Capitão Açaí:

– Carregar o fogo olímpico ao lado desses caras será muita queimação!

As considerações do Capitão estão sendo avaliadas. Enquanto isso, ele se prepara com muito afinco para o evento. Corre todos os dias, observando o seguinte roteiro, que o mantém com um preparo físico invejável:

– Corrida pelas ruas esburacadas de Macapá.
– Corrida pelas calçadas irregulares e entupidas de carros e estabelecimentos comerciais.
– Corrida pra se livrar de assaltos.
– Corrida pra pegar ônibus. Se perder um, o próximo só dali a uma hora.
– Corrida pra fugir dos mosquitos que causam doenças.

Quando chegar o momento de carregar a tocha, o Capitão Açaí estará em forma, representando muito bem a nossa terra. Agora é só esperar o grande dia. Força, Capitão Açaí! Estamos contigo! Mas joga essa fumaça pra lá!

O Capitão Açaí é personagem do cartunista Ronaldo Rony

Com meus impróprios olhos – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues
 
Não paguei para entrar na vida. Pulei a roleta, subornei o guarda, falsifiquei o bilhete de entrada.
 
Estou aqui e tenho que prosseguir, respirando a fumaça das noites de luto, sem luta, ninado pelo ronco dos motores ensandecidos, absorvendo o mesmo ar dos hipócritas e assassinos.
 
Tudo me soa estranho. Luto a cada segundo para não abdicar do que me resta de autenticidade. E não me deixar atolar na areia movediça dos sonhos perdidos.
 
Com meus impróprios olhos posso ver a improvável paisagem que se estende por saaras intermináveis. 
 
Esperança, tolerância, bondade. Palavras que vão sendo banidas do dicionário tecnológico das almas enlatadas.
 
Não estou em desespero, me falta disposição para isso. Não estou em depressão, algo que considero refinado demais para minha figura em desalinho atravessando a praça ao meio dia, de um dia qualquer, qualquer dia.
 
Qualquer dia eu decifro a charada, recebo a mensagem das nuvens, me livro das correntes dos estereótipos.
 
Sinal fechado para o rebanho das ovelhas resignadas. Beco sem saída para quem ousou fugir do labirinto.
 
Chega de frescura, basta desse ranço intelectualoide, discursos sem futuro que lotam os bares e esvaziam a consciência.
 
Por falar em consciência, ei-la dobrando a esquina. Com um pouco de esforço talvez seja possível alcançá-la.

Banda estreita, espera larga – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Já li em algum lugar que Macapá é a única capital brasileira que não tem banda larga. Mas e daí? Daí que o meu amigo Ocrides estava muito empolgado com esse negócio de navegar na internet e ela falhou. De novo? É, de novo!

Ocrides passa o dia tentando navegar, mas o que ele consegue com mais frequência é naufragar. Quando consegue anexar algum arquivo, surge aquele abominável reloginho azul, que fica girando, girando até aparecer a mensagem, também abominável, dizendo que a conexão não foi possível.

Assim não é possível! Ocrides solta alguns palavrões, que é o mantra mais eficaz nessas horas, e começa tudo de novo. Liga, desliga, reinicia, mexe no roteador, mesmo sabendo que nada entende de roteador. Ainda ontem, Ocrides estava na pré-história da computação, na idade do chip lascado. Mas, como ele não pode perder o bonde da história (bonde, não: trem-bala), acende uma vela para a Santa Paciência até que a conexão se estabeleça do mesmo modo como foi embora: sem qualquer explicação.

Ocrides faz todo o ritual, afinal ele se orgulha de ser um homem afinado com seu tempo. Ele clica, novamente, no local que anexa o arquivo e – milagre! – a conexão funciona. E antes que o computador, o roteador ou que raio seja, resolva entrar em greve novamente, Ocrides se prepara para enviar o arquivo. É quando a energia elétrica é interrompida. Também algo corriqueiro na banda da cidade em que Ocrides mora. A internet, que não precisa de ajuda nenhuma para ser ruim, deixa de funcionar. Aí você pode perguntar: – Por que o Ocrides não carregou a bateria do computador? Ele tinha ligado o carregador, apareceu aquele ícone que diz que a bateria está carregada, mas faltou energia, faltou bateria. Ocrides já desistiu de entender isso tudo.

Outro dia, vi o Ocrides escrevendo uma carta a um amigo. Uma carta nos moldes antigos: manuscrita e colocada num envelope. Ocrides:

– Vou mandar uma carta pelo velho Correio. Esse tarda, mas não falha!

Digo ao Ocrides que um amigo meu mandou uma encomenda de Belém e até hoje, duas semanas depois, estou esperando. O Ocrides, que já ia sair para enviar a carta, retornou ao computador. Ocrides:

– Ah, não! Se é pra me comunicar dessa forma capenga, melhor fazer isso com ferramentas modernas!

E ficou lá, tentando mandar o arquivo. Tomara que tenha conseguido. A minha encomenda, que vem pelo Correio, ainda não chegou…

O decepcionista – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Fiquei sabendo de um programa de tratamento odontológico oferecido gratuitamente por uma faculdade de Macapá. Que legal!

Achando muito louvável aquela iniciativa, me encaminhei à faculdade a fim de pleitear uma vaga para o meu filho mais novo. O recepcionista da faculdade é que pareceu não estar encaixado no projeto ou ainda não entendeu o alcance da proposta. Não chegou a ser grosseiro, mas foi de uma indiferença que, se eu não fosse consciente do meu valor, estaria agora me sentindo o ser mais ínfimo da espécie humana.

O tal recepcionista me passou as informações como se estivesse pedindo que eu desistisse de cadastrar meu filho. Achei que era algo dirigido especialmente a mim, já que eu o vi tratando com muita atenção e gentileza outras pessoas que procuravam o mesmo serviço.

Pensei que aquele comportamento, de uma pessoa sentindo nojo de outra, poderia se dever ao meu visual, que ostenta uma considerável cabeleira. Mas, se foi isso, não será a atitude dessa pessoa que me fará pensar em passar uma tesoura nas minhas vastas madeixas. Deixei o recepcionista lá e passei a denominá-lo decepcionista, que caía melhor com a sua arrogância.

Continuo botando fé no trabalho social dessa faculdade e torço para que o tratamento realizado pelos dentistas seja melhor do que o do decepcionista. Que ele desça do seu pedestal e fique à altura do serviço que a faculdade oferece.

Obrigado, tolerância. Mais um episódio em que resisti à tentação de esganar alguém.

Telefonema – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ele foi acordado pelo toque do celular e seu bom-humor foi logo cancelado. Abriu os olhos sem acreditar que alguém estava ligando naquele dia e horário. Atendeu meio sonolento e ouviu a voz do outro lado:

– Bom dia, senhor. Aqui é da sua operadora e este telefonema está sendo gravado.

A sonolência passou na hora. Ele já tinha recebido esse tipo de telefonema outras vezes, em momentos também inconvenientes, mas daquela vez a coisa não ficaria por isso mesmo:

– Bom dia, só se for pra você! Que história é essa de me acordar no sábado, às 8 horas da madrugada?
– Calma, senhor…
– Calma é o cacete! Calma é a única coisa que não se consegue ter quando alguém liga pra gente numa hora dessas!
– Senhor, devo reiterar a advertência: este telefonema está sendo gravado.
– E ainda me vem com ameaça! Será que eu estou sendo investigado pelo Sérgio Moro? Será que foi aberto algum inquérito em que eu sou réu? Quem deu o direito de vocês gravarem a minha conversa? Isso é um crime!
– Isso é por motivo de segurança, senhor.
– Que segurança o quê? Isso é intromissão na minha vida! Isso se chama monitoramento, cerceamento, grampeamento! É invasão de privacidade!

O operador de telemarketing, ou que nome tenha isso, conseguia manter sua impassibilidade do outro lado da linha, como deve ter sido instruído nos mil cursos, oficinas e seminários que essas pessoas fazem para que fiquem bem capacitadas na arte de encher o saco:

– Peço que mantenha a calma, senhor. Daqui a pouco, o senhor vai estar sendo grosseiro e eu vou estar sendo obrigado a estar informando meu chefe…
– Dane-se, você e o seu chefe! Pouco me importa se você vai “estar fazendo” o que quer que seja! Eu quero é dormir! Será que um cidadão que acorda cedo a semana inteira não pode ficar dormindo o tempo que quiser no abençoado dia de sábado?

Houve uma pausa. O operador deve ter parado um pouquinho para tomar um gole de água. Sim, eles bebem água! Depois continuou, simulando um tom ofendido:

– Senhor, dessa forma não há como manter um diálogo civilizado.
– Civilizado? O que eu menos quero ser agora é civilizado! Pois saiba que você despertou os meus instintos mais primitivos, como disse o Roberto Jefferson a respeito do José Dirceu, na época do escândalo do mensalão!
– Não tenho conhecimento desse fato, senhor.
– Claro que não! Duvido que você tenha conhecimento de alguma coisa que não seja encher a minha paciência!
– Mas, senhor…
– E pare de me chamar de senhor toda hora! Que coisa irritante! Diga logo o motivo de você me ligar num sábado e a esta hora!
– A nossa operadora só ligou para lhe desejar um bom dia, senhor.

Aí, e com toda a compreensão da minha parte, não teve como segurar a explosão:

– Bom dia é o caraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaalho!

Quem dera ser um peixe… – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Quem dera ser um peixe… Se eu fosse um peixe, essa chuva que caiu por toda a madrugada e continua caindo agora pela manhã não me atrapalharia.

Como a cidade está toda inundada, pelo menos a parte em que circulo, eu mergulharia na correnteza desse rio em que se transformou minha rua e chegaria sem problema ao trabalho.

Alguns colegas aproveitariam a chuva para chegar um pouco mais tarde. O chefe esbravejaria, como de costume:

– Esses vadios não querem trabalhar! Basta uma chuvinha à toa pra todo mundo querer ficar em casa! Vão chegar aqui com a desculpa esfarrapada de que o tráfego dos peixes está congestionado! Eles esquecem que eu também sou peixe e sei que quando chove assim fica mais fácil a nossa locomoção, ao contrário dos seres humanos! Estes, sim, têm transtornos mesmo! E isso é bem feito, já que são eles que entopem os esgotos e jogam lixo nos canais!

Eu concordaria com meu chefe, mas isso não me deixaria mais feliz. E, acordando dessa divagação e voltando ao meu ser natural, eu constato que não sou um peixe, não cheguei a esse requinte de evolução. Sou apenas um ser humano que precisa chegar ao seu local de trabalho. Não sou desses que entopem esgotos e canais, mas passo pelos mesmos transtornos. Na verdade, penso que somente os que jogam lixo nos esgotos e canais deveriam sofrer as consequências. Mas não é assim.

Vou cumprir minha missão. Vou fazer o possível para chegar ao trabalho a tempo de realizar meus afazeres. Vou enfrentar a chuva, que não tem nada a ver com isso. É uma força da natureza e somos nós que temos que nos adaptar a ela.

Vou molhar os sapatos, a ponta da calça, me esgueirar por debaixo de marquises e tentar não morrer afogado. Vou ser alvo de alguns motoristas que passam jogando água para todo lado. Para eles, dane-se quem está na rua ou nas paradas de ônibus. O ser humano é assim, mas ninguém pode me impedir de ficar pensando, como vingança e consolo: quem dera ser um peixe…

Viver e respirar

Crônica de Ronaldo Rodrigues
 
– Será que consigo morrer SE parar de respirar?
 
Foi o que pensou Neurinha, adentrando os 19 anos e achando que, naquela idade, seria bom começar a pensar nessas coisas. Seria bom pensar em alguma coisa. Qualquer coisa.
 
Mas o pensamento mais louco mesmo ela teve depois:
 
– Será que consigo morrer SEM parar de respirar?
 
Seu cachorro respondeu que não, ao que o ursinho de pelúcia disse que sim:
 
– Viver e respirar são coisas completamente díspares, conflitantes. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Tenho dito!
 
O cachorro de Neurinha ponderou que aquela maneira de falar do ursinho de pelúcia deixaria Neurinha ainda mais sem entender nada.
 
Neurinha, por sua vez, continuou sem nada entender. Paciência. Era sua natureza. Não entender qualquer coisa era a única coisa ao alcance de qualquer coisa que Neurinha pudesse entender. Entendeu? Nem eu!
 
Neurinha procurou os sábios conselhos de seu antílope de estimação, Clodoaldo, que entendia muito bem dessas questões, quando não estava ocupado em beber, fumar e levar mulheres para o apartamento.
 
Clodoaldo passou a contar a história de um tatu que fez greve de respiração em protesto contra a proliferação de armas nucleares e morreu em poucos minutos, ainda a tempo de ordenar a seus seguidores que invadissem a Casa Branca e incendiassem a provisão de amendoim.
 
Claro que Neurinha não entendeu e parou de se questionar. Resolveu passar à ação e cometer o ato de parar de respirar.
 
Segundo o método dos ninjas, Neurinha girou o nariz como se fosse uma torneira e parou de respirar.
 
Você, caríssimo leitor, já sacou que Neurinha era bem tontinha. Pois é. Até hoje ela não sabe se morreu.

Insuportável Mundo Novo – Conto de Ronaldo Rodrigues

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Conto de Ronaldo Rodrigues

Estou sentado no banco dos réus enquanto se desenrola o meu julgamento. O juiz anuncia o veredito: estou condenado a assistir a vários trechos de filmes, para que eu possa compreender o meu país.

Sou colocado numa cadeira, em que fico totalmente preso. Algumas pinças mantêm meus olhos abertos, enquanto alguém pinga colírio (creio que seja colírio) a intervalos regulares. Quem já assistiu ao filme Laranja Mecânica pode fazer ideia do que estou dizendo.

As luzes se apagam e um projetor passa a ser acionado. Vejo o primeiro trecho de filme. Nele, o presidente da Comissão de D12939258_10201478429920239_1151002693_nireitos Humanos da Câmara dos Deputados aparece dizendo que os africanos são seres amaldiçoados. Em outro trecho, esse mesmo homem revela sua aversão a homossexuais. Continuo achando absurdo que o presidente de uma Comissão de Direitos Humanos tenha tais opiniões. Se a intenção dos meus carrascos é me fazer compreender os acontecimentos recentes do meu país, não está funcionando. Estou ainda mais confuso.

Outro filme passa. Desta vez, vejo o presidente da Câmara dos Deputados metido até o pescoço em transações fraudulentas e sendo aclamado como o baluarte da ética, da moral, da honestidade.

Em outro trecho de filme, uma autoridade incita o povo a pedir a volta da Ditadura, com uma grande parcela disposta a segui-lo. Eu olho assustado para os meus carrascos pensando até onde eles irão nessa tentativa de me fazer compreender esse poço sem fundo para o qual a política nacional está caminhando.

Finalmente, depois de tantos filmes passarem por meus olhos atônitos, pergunto timidamente:12980551_1114935811892782_1623297675_n
– Qual a causa da minha condenação? Esses filmes, esses episódios e esses personagens têm algo a ver com o fato de eu estar aqui, preso e obrigado a assistir a tudo isso?

Depois de longo silêncio, o juiz que preside a minha sentença responde, saboreando cada palavra:
– Sim. Todas essas cenas estão ligadas à sua condenação. Você acha abomináveis essas situações. Você não concorda com nada disso. Você torce contra esses senhores que apareceram nos filmes a que você está assistindo.
– Então… É por isso?

O juiz arregala os olhos enfurecidos e grita:
– Cale-se! Você im-jpg-1024x606não tem direito a se manifestar!

Eu penso (só penso, já que falar irritaria ainda mais o juiz): “Puxa vida! Acho que já estamos na Ditadura novamente… E agora?”.

O juiz continua sua gritaria:
– Eu nem sei por que estou aqui respondendo às suas perguntas, seu moleque! Só estou esclarecendo as suas dúvidas porque sou muito magnânimo! Pois eu vou lhe dizer qual o motivo principal, o grande pretexto, a causa imediata da sua condenação!

O suspense me sufoca. Receio não conseguir ouvir até o fim. E o juiz continua:
– Você foi condenado graças ao fato de…

Torço para ele falar logo e acabar com aquela tensão:impeachment
– Graças ao fato de você nunca ter conseguido pronunciar corretamente a palavra impeachment!

Fico mais confuso ainda. Que motivo mais fútil! Que loucura! Mais um absurdo destes novos tempos, que parecem tão velhos. Tomando fôlego, o juiz continua:
– Então, repita! Impeachment! Impeachment! Impeachment!

Os oito carrascos ao lado do juiz repetem aquela cantilena, formando um coro de altíssimo volume:
– Impeachment! Impeachment! Impeachment!

Ainda tento argumentar que não sou o único a não conseguir pronunciar corretamente essa palavra, mas sinto que estaria perdendo tempo. Repito à exaustão a palavra e espero que esta lavagem cerebral tenha algum efeito e eu possa, finalmente, entender alguma coisa.

Marieta (texto experimental & tal de Ronaldo Rodrigues)

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Marieta subiu na carreta nem se importando com as caretas das ninfetas que ficavam à tarde no maior alarde com suas lambretas pretas estacionadas na sarjeta.

Avistou o monge lá longe, sozinho no caminho de espinhos.

Notou seu cansaço e seu passo lasso em descompasso.

Ele atravessava o deserto com seu andar incerto, espantando os insetos.

Marieta ofereceu uma carona e o monge aceitou na hora sem demora.

Ele que não era ingrato, de bom grado, dizendo obrigado, embarcou naquele caminhão grandão que transportava gente carente pelo sertão.

Marieta seguiu então em direção ao rio, cruzou a ponte e o mirante, descortinando um novo horizonte e embarcou mais três pessoas que andavam à toa, ao léu, tendo por testemunha só chão e céu.

Marieta desde menina franzina cumpria aquela sina de peregrina transportando gente de todo lugar sem nunca cansar nem pensar em parar.

Um dia haveria de parar e como o povo iria se virar?

O caminhão percorria o chão do sertão e estava quase para deixá-la na mão.

Quando o caminhão então de supetão parasse de vez, Marieta continuaria a pé, ela e sua fé, que nunca deu marcha-ré, carregando gente pela mão.

E se seu corpo cansasse e cessasse sua respiração não faltaria inspiração.

Continuaria na outra vida ajudando a multidão a encontrar a direção.

Seria uma santa dirigindo uma jamanta giganta carregada de boa intenção.

Ronaldo Rodrigues