Fazendo contato

Crônica de Ronaldo Rodrigues
 
Sem ter muito o que fazer, estava escarafunchando meu celular e fui bater na lista de contatos. Fiquei passando os nomes que lá estão. De repente, deparei com um número que permanece lá, o do Ginoflex. Aí, me passou uma loucura pela cabeça, que é pra isso que cabeça serve:
 
– E se eu ligasse para o Gino? Pensei cá com meus botões. Meus botões não deram muita trela, mas é sempre assim quando apresento uma ideia absurda. Argumentei que nenhuma ideia é absurda quando envolve o Gino. Liguei e adivinhe o que aconteceu!
 
Pausa para o suspense. Finja ouvir uma trilha de filme de Hitchcock.
 
Não aconteceu nada. Achei normal, já que o Gino não está mais entre nós. Tentei outra vez e (agora sem suspense) adivinhe o que aconteceu! Ouvi, do outro da linha, uma voz cavernosa, típica de quem acabou de acordar:
 
– Alô? Quem ousa interromper meu sagrado descanso? Nem aqui a gente pode ficar em paz?
 

Fiquei mudo, é lógico! Aquela voz, com aquele bom humor ranzinza, era característica do Gino. Fiquei ali, parado, sem ter o que responder, dando razão aos meus botões e achando absurdo tudo aquilo. A voz se fez ouvir novamente, me confirmando que se tratava mesmo do meu amigo Ginoflex:
 
– Ei, Gabiru! Já que tu me acordaste, fala logo que eu tenho que partir pra uma missão. Tem vinte plécos aí pra me emprestar?
 
– O Gino continua o mesmo, falei com meus botões, que desta vez me deram crédito. Por falar em crédito, eu precisava falar logo alguma coisa. Crédito para o além deve cair com maior velocidade:

– Gino, tu não podes falar comigo, nem com ninguém. Muito menos pelo celular. Tu estás morto!
– E tu achas que eu vou parar de falar só por causa disso? Nem morto!
 
O jeito era continuar aquele insólito diálogo:
 
– E tu não sabes quem está falando?
– Claro que não, Gabiru! Quando eu tava vivo já não conseguia ler essas letrinhas no visor do celular, alvará agora! Agora mesmo é que eu não tô nem vendo!
– Aqui é o Ronaldo, teu amigo, que tá falando. Eu estava fazendo uma brincadeira e liguei pra ti só pra ver o que acontecia.
Aí, ele respondeu, no meio daquela gargalhada interminável:
– Porra, Curare! Que bom falar contigo, cara! Mas tu não para de fazer cagada!
– É que eu tive um excelente professor aqui em Macapá…
– Já que tu estás aí, e aproveitando que essa merda de telefonia aí da Terra tá funcionando, eu quero que tu dê um papo pra esse pessoal que ficou aí!
– Claro! Pode mandar!

– É uma coisa muito séria, muito importante!
– Fala logo! E não fica repetindo que a coisa que tu tens a falar é séria senão eu não acredito que és tu!
– É uma coisa que vai abalar todas as estruturas! Vai fazer acordar as pessoas! Vai abrir a cabeça de toda uma geração! A maior mensagem que a humanidade pode receber! É o seguinte…
 
Pausa longa.
 
– Fala logo, caralho! A ligação pode…
 
Tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu
 
– …cair! Alô? Alô? Gino! Responde! Responde, porra!
 
Voltei a falar com meus botões:
 
– Esse Gino é foda…

Pra enfrentar a crise só muito crazy

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Estava aqui pensando em crise, nessa crise que se abate sobre o mundo. A crise humanitária, que faz os refugiados andarem de lá pra cá, humilhados, esfomiados, com frio. E a crise econômica do Brasil. A crise política. A crise moral. A crise da seleção brasileira, com esse excesso de grana, que faz os jogadores ficarem com falta de futebol. Pensei também na crise do clima, com esse calor insuportável. Espero que o calor não seja tão insuportável assim porque acabou de dar uma pane no meu ventilador.

downloadÉ a crise mesmo. Já estava chateado (e endividado) devido ao desemprego, que me colocou em suas estatísticas. Estou desempregado há dois meses e sem perspectiva, já que a minha área, a propaganda, também está em crise.

O gás acabou há três dias. Ainda bem que não tem nada pra cozinhar. Os mantimentos também acabaram. E agora, como é que vou fazer o arroz e o feijão? O dono do mercadinho do qual sou (era) cliente anda à minha caça.

O seguro-desemprego tá emperrado. O meu ex-chefe tem que assinar um papel, mas ele viajou. Viajou na maionese, pelo visto, e me deixou inseguro no meu desemprego, cujo FGTS está no banco, em greve.

16frankSe eu adoecer nem vou ligar. Não tem dinheiro pra remédio. O remédio é deixar a doença se cansar do meu mísero corpo e ir embora sozinha. Nem posso ir ao hospital, porque, até ser atendido, posso estar morto.

Todas essas crises me deixaram em crise de imaginação. Ainda bem que o diretor/editor deste blog me deu uma chamada e resolvi reagir.

Taí a crônica, Elton. Obrigado pelo sacode.

Minha vida sempre foi um mar de rosas

Crônica de Ronaldo Rodrigues
 
Minha vida sempre foi um mar de rosas. Plantado no sertão de minhas noites. Fincado no coração de meus dias. Um mar de rosas que me afoga em suas mulheres. Desertos que atravesso e esqueço após o sono. Só para continuar um outro sonho, quando acordo.
 
Minha vida um mar de rosas. Rochas róseas, ígneas, indecifráveis. Perdido na infância doce dolorosa. Na tranquilidade das tormentas. Rasgando os versos que como com o pão matinal. Sorvendo a brisa que vem do mar de rosas que minha vida me deu de mão beijada e ainda me cobra o devido crédito.
 
Contando com o tempo que ainda tenho para melhor viver esse mar de rosas, que chega até a janela da casa que não possuo, no sítio que não habito, no tempo em que não me encontro, e bate e não obtém resposta.
 
Minha vida um mar de rosas pétreas, um mar de rosas revoltosas revoltadas devotadas, ainda não derrotadas, ainda não ceifadas, mas seladas com o timbre da morte que um dia/uma noite virá transformar esse mar de rosas em tempo nenhum. Minhas cinzas num cofre, meus olhos num horizonte de labirintos, minhas certezas e dúvidas passeando de mãos dadas num jardim completo de chegadas e repleto de despedidas. Minhas pegadas na areia que o vento leva para o espaço tempo talvez quando agora já onde porque como quando sei lá.

 

Nomes e nomes – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Depois da aula, levo a Suzana pra almoçar em casa. Apresento pra ela o Girafa:

– Girafa? O nome dele é Girafa?
– Isso mesmo! Girafa!
– Mas é um cachorro! Não tás vendo que é um cachorro?
– Claro que estou vendo que é um cachorro! É o meu cachorro! Só que o nome dele é Girafa!
– Tudo bem! Eu aceito que o teu cachorro se chame Girafa, mas que é estranho é! E ele nem tem pescoço longo!
– O pescoço longo só é preciso pra ser girafa, não pra se chamar Girafa! Já tive um cachorro chamado Beterraba e ele não era lilás. Nome é assim. Um amigo meu tem um cachorro chamado Cláudio e nunca teve problema com isso. O Cláudio dele é até mais legal que muitos Cláudios por aí!

Aí ela viu a minha tartaruga:

– Olha que legal! Adoro tartaruga!
– Que bacana que tu gostas! Dá um alô pra Suzana aí, ô, Dentuça!

A Suzana me deu aquela mesma olhada de quando apresentei o Girafa:

– Não vai me dizer…
– Que o nome da minha tartaruga é Dentuça? Pode acreditar!
– Assim já é demais! Por que tu não colocas um nome condizente com o bicho?
– Como é que eu vou colocar um nome condizente se eu nem sei o que é condizente?
– Condizente é assim: um cachorro chamado Rex, por exemplo.
– E o que é que Rex tem a ver com cachorro? Se ainda fosse um dinossauro, um tiranossauro, pra ser exato, Rex caía bem.
– Acontece que Rex é um nome tradicional de cachorro. Não sei quem colocou pela primeira vez esse nome, mas pegou. Assim como Totó ou Joly.
– Vamos fazer dessa forma: quando tu tiveres um cachorro, tu colocas um nome comum assim. O meu vai continuar sendo Girafa. E a minha tartaruga vai ser sempre Dentuça.
– Essa mania de contrariar…

Suzana já ia dizer pra gente mudar de assunto, quando viu o meu gato e eu tratei de apresentar o Gaveta.

– Ga… o quê?
– Deixa pra lá! Quero falar de uma coisa, já que o assunto é nome. Tu sabes qual é a cor da caixa preta dos aviões?
– É preta, claro!
– Claro que não! É laranja! E o minuto de silêncio, tem um minuto? Não tem mais do que 15 segundos! E o Chico Buarque de Holanda, que é do Brasil?
– Onde é que tu queres chegar?
– Só quero dizer que, às vezes, o nome não tem muito a ver com a coisa nomeada. O mundo é assim. Por isso eu coloco os nomes dos meus bichos sem essa necessidade de ser… condizente.

A Suzana de uma maneirada nas críticas e falou com ternura:

– Taí uma lição que eu aprendi. Acho até que vou aceitar o teu pedido de namoro…
– Aceita logo, que eu já tô sentido uma coisa aqui dentro que não sei o nome.
– Eu sei exatamente qual é o nome!
– Claro! É amor!
– Não, bobo! É fome! Vamos comer que é melhor!

VAMOS TODOS ESTOURAR PLÁSTICO-BOLHA! (Crônica)

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Putz! Que susto! Ainda bem!

Leio aqui num blog que o fabricante de plástico-bolha desistiu da ideia de deixar de fabricar esse tipo de embalagem, que serve de calmante pra muita gente. Pra mim, então!

Como seria a minha vida se deixassem de fabricar plástico-bolha? Num mundo cada vez mais fuleiro e escroto, como eu me desestressaria (que termo!) sem estourar plástico-bolha e ouvir aquele santo barulhinho?

Como eu chegaria à noite de um dia duro sem esse consolo, sem essa terapia? Como ouvir os Eduardos Cunhas e Bolsonaros e Malafaias e Felicianos sem essa forma de extravasar a raiva que esses senhores provocam?tumblr_lazbibg24V1qb4l3ao1_500_large

Como saber das novas merdas que os Lobões e Gentilis e Diogos Mainardis e Reinaldos Azevedos e revistas Vejas andam despejando? Como aguentar o papo de que a Ditadura Militar seria a saída para o Brasil? Como veria os telejornais com suas notícias sobre intolerância e preconceito e tanta coisa nefasta que está rolando por este mundo?

Como não posso jogar no lixo as pessoas que jogam lixo nas ruas, respiro fundo e vou estourar plástico-bolha. Quando vejo motoristas estacionando em frente à rampa destinada a deficientes físicos, respiro fundo e vou estourar plástico-bolha. Estourar plástico-bolha sempre impediu de estourar minha paciência e desviou minha vontade de estourar esses bolhas que estão espalhados pelo mundo, emporcalhando o planeta. Talvez eu seja um bolha por deixar os outros bolhas cometerem seus crimes diários contra minha consciência.11930607_10200821097247333_2107639505_n

Mas me deixem ficar feliz por essa notícia boa, que me vai permitir aguentar tanta notícia ruim. O plástico-bolha não corre o risco de desaparecer. Alguma coisa tem que combater a insensatez, que parece que despareceu há muito tempo, e o plástico-bolha é uma opção.

Vamos lá, pessoas que têm o mesmo hábito saudável que eu! Vamos cobrir o som dos idiotas com muito barulho de plástico-bolha! Vamos todos estourar plástico-bolha! E haja plástico-bolha!

MACAPÁ 18 ANOS

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos…

Setembro de 1997 chegou para mim junto com Macapá. Foi no dia primeiro que cheguei a esta terra, que me recebeu tão bem e cujos mistérios ainda estou a descobrir. O rio Amazonas me banhou, o marabaixo abençoou.

Alguma coisa acontece no meu coração, que só quando cruza a Cândido Mendes com a Padre Júlio. Ou a FAB com a Leopoldo Machado. No dia primeiro de setembro de 1997, ainda não havia para mim Ginoflex, a mais completa tradução de Macapá, que trazia em si a síntese de todos os loucos deste meio do mundo.

Sinto saudade do que não vivi em Macapá. Passear pelo velho trapiche, depois de uma sessão de cinema no João XXIII. Estudar no Colégio Amapaense e tomar os primeiros tragos no Xodó. Sentar numa mesa do Bar Caboclo. Virar noites etílico-literárias em companhia de, por exemplo, Alcyr Araújo. Frequentar o Lennon. Torcer pelo Boêmios do Laguinho ou pelo Maracatu da Favela. Saber mais de perto as histórias de Euclides Moraes, Obdias Araújo, Estêvão, Corrêa Neto, Chaguinha, Sacaca, Mestre Oscar. Tantos personagens que não caberiam numa crônica. Ou caberiam, caso eu não estivesse meio emocionado, sem conseguir pensar muito além do que já vai enchendo esta lauda.download (1)

Há 18 anos Macapá está aqui dentro e transbordando e me envolvendo. Há 18 anos, completados hoje, Macapá vem me brindando com sua brisa e seu sol, seu trânsito maluco, seu jeito de levar a vida boa, sumano, me ensinando e me dando mostras de muita generosidade. Obrigado.

Para compor esta crônica roubei a frase “Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos…”, da música Sol de Primavera (Beto Guedes e Ronaldo Bastos) e parafraseei a música Sampa (Caetano Veloso) e Vida Boa (Zé Miguel)

A fonte da velhice – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

– Como? Quarenta e nove anos? Nem parece!

Ele ouvia sempre isso quando o assunto idade vinha à baila.

– Tem cara de 32, por aí.

Quando tinha 15 anos, achavam que ele tinha 9. Aos dois anos de idade:

– Nossa! Parece recém-nascido!

Era barrado constantemente em festas. Nem mostrando a carteira de identidade se livrava do estigma:

– Você não pode entrar! Essa carteira deve ser falsa! Vá embora já, senão eu mando lhe prender! Falsificação de documento é crime!

Quando tinha 25 anos quis namorar uma menina de 18. Ela foi categórica:

– Não namoro com garotos de 14 anos. Não insista!

Aquilo já estava se tornando paranoico. Aos 49 anos, sem rugas, sem um fio de cabelo branco e com muita disposição, ninguém poderia supor que ele estava a poucos meses de completar meio século. Nem a barba, que deixava crescer de vez em quando, conseguia conferir à sua aparência um pouco mais de idade.images (3)

Foi então que, ao contrário de Ponce de León, navegador espanhol que partiu pelo mundo à procura da fonte da juventude, ele começou uma jornada a fim de encontrar um meio de aparentar a idade madura que tinha, o que ele achava que poderia atrair mais respeito para a sua pessoa.

Eis que, passados alguns meses longe dos amigos, ele apareceu com um visual bem diferente do que o havia marcado até então, com muitas rugas ao redor dos olhos, na testa e nas mãos, e os cabelos completamente brancos. E foi logo explicando, diante dos olhares de espanto:

– Algumas vezes, na história e na literatura, pessoas reais ou personagens da ficção fizeram pacto para manter eternamente a juventude. Eu fiz um pacto ao contrário, para me tornar mais velho, ou, pelo menos, que minha aparência fizesse jus à idade que tenho. Procurei um cirurgião plástico. A princípio, ele estranhou que alguém no mundo procurasse um cirurgião plástico com a intenção de envelhecer. A maioria, na verdade a totalidade das pessoas, quer rejuvenescer. Ele relutou em fazer a cirurgia e eu mostrei todos os argumentos e o principal deles era:

– Doutor! Eu estou de saco cheio de ouvir as pessoas falando que pareço ter menos idade do que realmente tenho!

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Falei isso com as mãos agarradas ao colarinho do médico. Mas o que o convenceu mesmo a fazer a cirurgia foi o reforço de capital que fiz, alguns reais acima do valor que ele costumava cobrar.

Foi então que o nosso personagem criou mais um mito em torno da questão do passar inexorável do tempo. Ele criou a fonte da velhice, uma fonte que ninguém quer encontrar.

Avenilda e Rualdo


Avenilda e Rualdo se cruzavam bem no centro da cidade. O bairro todo comentava o romance. Avenilda não se importava muito, mas Rualdo não se sentia à vontade. Propôs que se mudassem para o subúrbio. Avenilda argumentava:

 
– Rualdo, no subúrbio estaremos mais expostos aos comentários. Quanto menor o lugar, maior a fofoca. E, cá pra nós, estou me lixando pro disse-me-disse desta cidade!
 
Rualdo propôs que só se encontrassem na madrugada, quando a cidade estivesse deserta.
 
– Você está é com vergonha de mim, Rualdo!
 
– Nem pense nisso, Avenilda! Eu amo você! Por mim, namoraríamos o dia todo. Acontece que aqui no centro é esse corre-corre. É muita gente passando o tempo todo.
 
– O que faremos, então? Pro subúrbio eu não vou! A cidade cresceu em torno de mim!
 
– Eu lembro bem. Você demorou a notar minha existência! Pudera! Você é a avenida principal, cheia de importância!
 
– Ah, Rualdo! Acho que você tá é com dor de cotovelo, complexo de inferioridade. Você é uma rua legal, larga, arborizada.
 
– Tudo bem, Avenilda! Vamos ficar aqui mesmo.
 
– Isso, querido. E vamos nos encontrar sempre que quisermos.

 

– É mesmo! Dane-se quem quiser falar. Afinal, estamos numa metrópole, é hora dessa gente crescer também.
 
Avenilda e Rualdo consolidaram sua relação, que acabou anos mais tarde quando um viaduto os separou.
 
Ronaldo Rodrigues

Drops – Conto de Ronaldo Rodrigues

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Um submarino viaja atravessando os esgotos da cidade. Vez em quando, sempre que descobre um bueiro, mete por ele o periscópio e fica olhando cá pra fora. E vê que aqui fora tem muito mais lixo que dentro dos esgotos.

Sem sono/ sem sonho, atravesso a madrugada. Navego no ego, à deriva. Atravesso um oceano de insônia. Navego sem balsa, sem bálsamo, a nado, sem nada no bolso. Sem alcançar horizonte, sem alçar vôo. Amanheço a esmo. Permaneço o mesmo.

Um enfermo, um vampiro, um sábio chinês. Olhando-os rapidamente percebo serem as faces de uma mulher que se recusa envelhecer.

Papai Noel passeia pelas ruas desertas da cidade. Como/onde achar um bar aberto a essa hora da madruga?

Os dedos passeiam pelas cordas do violão. Pelo buraco saltam golfinhos verdes, azuis, brancos, laranjas… e ficam nadando na partitura.

Olhos atentos do cyborg na silhueta de Marilyn.golfinhos_da_natacao_escultura_fotografias-p153157469223354524bfr64_400 (1)

O balão estoura: bolhas de sabão no ar, cacos de vidro no chão.

A lágrima do olho esquerdo do palhaço cai no centro do picadeiro. Dela nasce uma flor gigantesca de onde saltam peixes e cristais.

Na mais movimentada avenida da metrópole os arranha-céus se movimentam em direção ao iceberg. O naufrágio é inevitável.

Em frente ao computador os dedos pressionam as teclas. As impressões digitais ficam impressas no monitor.

Ronaldo Rodrigues

Futebol – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Fui um menino tímido, retraído. Por isso era maltratado pelos outros garotos. Não. Não era por isso. Era que aliado a isso eu era muito franzino. E naquela fase da vida quem não era forte ou não soubesse brigar tava lascado. 
 
Eu, por exemplo. Pra salvar o prestígio de alguém assim só sabendo jogar futebol. Os garotos que se destacavam no futebol ganhavam o respeito dos outros garotos. O cara se tornava popular, mesmo sendo franzino e tímido.
 
Agora pergunta se eu sabia jogar futebol! Sou aquilo que os cronistas esportivos e comentaristas amadores chamavam (e chamam ainda hoje!) de perna-de-pau. E isso era o mínimo que se chamava pra alguém desprovido de talento pra bola. A mãe do perna-de-pau sofria: “Passa a bola direito, filho da puta!”. E por aí ia. 
 
Portanto, se quiseres ganhar prestígio, precisas ter algum outro talento que possa ser reconhecido pelos outros garotos. Desenhar pode te salvar. Nem precisa saber desenhar bem. É que a maioria não sabe desenhar nada e admira quem sabe segurar um pouquinho o lápis e movê-lo com a mínima desenvoltura. 
 
Outro atributo que pode te angariar uns pontos a favor é ter irmã gostosa. Eles te denominam logo de cunhado e recebes uma aura de proteção. “Dá lembrança lá pra mana, cunhado!”. Aí eles não te darão a porrada que te seria reservada caso fosses filho único ou de uma família só de irmãos. Alvíssaras! 
 
Eu sabia desenhar e tinha irmã gostosa. Devia ser pra compensar minha falta de habilidade com a pelota. Os caras queriam fazer bonito para as meninas bonitas e livravam a cara do irmão magrela. Eu peguei carona nesse mito e só apanhei quando caí na besteira de jogar em lugares em que ninguém conhecia minhas irmãs. 
 
Nesses momentos, o desenho nem era cogitado. “Esse filho-da-puta perdeu um gol feito! Tira essa pereba do campo antes que eu quebre a cara desse escroto!”. O moleque me olhava com a maior cara de zagueiro argentino em final de copa contra o Brasil, doido pra me dar um pontapé inicial. Quando isso acontecia, eu saía de campo de cabeça erguida. Mentira! Saía era cabisbaixo, tremendo de medo, já correndo.
 
Em casa eu me vingava usando as minhas habilidades. Convencia minhas irmãs a não dar bola pra garoto encrenqueiro e desenhava histórias em quadrinhos em que eu era o grande astro do futebol. E namorava as irmãs de todos.

Sessão Nostalgia (Crônica )

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Hoje senti uma coisa estranha aqui no peito. Um aperto, uma sensação, ainda que branda, de sufocamento. Procurei o dicionário de sentimentos e descobri o que era aquilo: saudade. Puxa! Há quanto t10726361_10200685325373121_1094556785_nempo eu não sentia saudade… Ainda mais na terça-feira. Não costumo sentir saudade na terça. Isso acontece mais no final da tarde de domingo. Mas saudade de quê? Aquilo ainda estava meio indefinido. Até que me lembrei de algumas conversas recentes com amigos e detectei: era saudade dos filmes que vi na TV, ainda menino. Tenho falado sobre isso, de como a programação televisiva de antigamente 11749417_10200685325893134_1003150848_n(bem antigamente, século, milênio passado) era legal. De como vi filmes nas Sessões da Tarde da vida, nas Corujas Coloridas das madrugadas, que nunca tive o prazer de rever. Alguns: El Cid, Os Canhões de Navarone, Casa de Chá do Luar de Agosto, Joaquim Murieta, Os Canhões de San Sebastian, O Santo Relutante, O Rato que Ruge, Ândrocles e o Leão, O Incrível Exército Brancaleone, A 25ª Hora. E os brasileiros Vidas Secas, O Cangaceiro, Meu Pé de Laranja Lima, os filmes do Mazzaropi. Passavam filmes assim na TV. O Planeta dos Macacos, por exemplo, com sua cena final clássica: Taylor (Charlton Reston) deparando com a cimages (9)abeça da Estátua da Liberdade caída na praia, mostrando que o astronauta esteve no planeta Terra o tempo todo. Tem um filme legal que vi numa madrugada e nunca mais revi: Hell’s Kitchen, com o Silvester Stallone (pasme!).

Lembro dos festivais temáticos, tipo: toda quinta-feira um filme de Jerry Lewis.  Outras vezes, sequências semanais de chanchadas. Vi Grande Otelo, Oscarito, Ankito. Todos em ótima forma. E o
impagável Zé Trindade. Putz! Que saudade! Até rimou…

download (5)E lá vêm lembranças boas: Tarzan, Jim das Selvas, Rin-Tin-Tin, Durango Kid, Roy Rogers, Os Waltons, Zorro, Buck Rogers, Bonanza, O Elo Perdido, Paladino do Oeste, Chaplin, Harold Lloyd, Abbott & Costelo. E não posso, não devo, não quero e não v
ou esquecer do meu primeiro super-herói: Batman. Aquele mesmo, meio tosco, com seu vilões bizarros e as onomatopeias dos quadrinhos explodindo na tela da TV.

As novelas também eram legais. Saramandaia, a original, de 1976, era fantástica. Fantástica mesmo, porque o autor Dias Gomes (desc81ctfjk7thr6zv76w2t6cr1u8onfiei eu, já grandinho) se inspirava, e muito, em García Márquez e o realismo mágico da literatura latino-americana. O Casarão, outra novela muito boa, se passava em três fases históricas e falava da paixão eterna do escultor boêmio João Maciel pela bela Carolina. A Escrava Isaura, primeira atuação de Lucélia Santos, arrebatava as multidões. Lembro de eu e meus amigos de infância torcendo pela heroína, sempre perseguida pelo malvado Leôncio. Edownloadstúpido Cupido era do escritor Mário Prata e trazia no elenco jovens atores: Nei Latorraca, Ricardo Blat, João Carlos Barroso, Françoise Fourton, Djenane Machado. E monstros já consagrados: Leonardo Vilar, Mauro Mendonça, Maria Della Costa. Na novela Pai Herói, Tony Ramos tocava trumpete e a música que ele tocava, nós, moleques da minha rua, aprendemos a tocar num instdownload (2)rumento de brinquedo. Na novela Duas Vidas, o personagem do Mário Gomes, em  certa fase, passou a ser cantor e usava um colar que virou moda. Todo moleque tinha o seu colar, bem coladinho ao pescoço.

Existem muitas lembranças, mas agora chega. Vou fechar o meu baú. Com muito cuidado, é claro. Já aprendi nesses anos todos que não devemos matar a saudade. Deixemos que ela, e nós, fiquemos vivos.

Chamando… Chamando… Chamando…

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Acordei com a campainha do celular tocando. Será apropriado dizer campainha do celular? Celular é moderno, mas campainha é tão antiga. De qualquer forma, foi assim que aconteceu. O celular me despertou. Mas como assim? Se o volume do meu celular era muito baixo. Eu vivi11358785_10200615936918453_1419432848_na reclamando disso. Como eu poderia ouvir o celular tocando se nem quando eu dormia na mesma cama que ele eu conseguia ouvir? Calma, vou explicar. É que eu fui condenado a ficar separado do meu celular. Eu estava numa penitenciária de segurança máxima, que ficava no centro de uma ilha. Meu celular estava preso em outra penitenciária de segurança máxima, no centro de outra ilha, a 300 quilômetros de distância.

E eu ali, ouvindo meu celular tocando. Outro mistério me ocorreu: eu nunca tinha sido acordado pelo celular. Ninguém ligava pra mim. Nenhum amigo. Nenhuma garota. Ninguém me convidando pra sair pela noite e correr perigo. Logo naquele momento alguém resolvia me ligar. Agora devo admitir um lapso: quando escrevi que ninguém me ligava, não era verdade. Eu recebia muitas ligações da operadora do celular, através de seus operadores de telemarketing, aquela gente que adora estar falando desta forma estapafúrdia de estar falando, tentando estar empurrando um plano miraculoso pela goela abaixo e pelo bolso adentro. Outra pessoa que me ligava, insistentemente, era uma mulher. Eu aproveitava o fato de a campainha do celular tocar baixo pra fingir que não escutava mesmo. Mas às vezes eu me descuidava e atendia. Era a advogada da empresa administradora do meu cartão de crédito tentando me lascar um processo violento em cima do lombo por atraso de pagamento. No meu caso, não era atraso. Era extinção.10846807_10200615937078457_1714495846_n

E o meu celular tocando. Consegui subornar os guardas e fugi da penitenciária. Consegui subornar o dono de um barco parado no precário porto da ilha. Cheguei à ilha onde estava o meu celular, preso e tocando como um louco. Subornei os guardas da penitenciária e cheguei ao celular justamente quando ele parou de tocar. Chegou a Morte, com aquele traje pretinho básico. Chegou assim, bem à minha frente, ao meu lado, por cima de mim. Essa eu não consegui subornar.

Uma hora pelo planeta

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sabe essas campanhas em prol da sobrevivência do nosso planeta? Tipo: fique uma hora sem usar ar-condicionado para diminuir a emissão de gases nocivos à camada de ozônio. Ou: fique um dia sem usar seu carro. Ou: fique um dia sem fumar. Pois eu acabo de criar a campanha que vai resolver definitivamente o problema deste planeta: fique uma hora sem respirar. Se todos os habitantes da Terra entrarem nessa, acabam-se as violações contra o meio ambiente, acabam-se preconceitos, bullying, violências, guerras. Sem ser humano, sem problema. O ser humano é responsável por tudo o que agride o mundo e outro ser humano. Ou você já viu uma vaca jogando lixo no canal? Ou uma baleia derramando óleo no oceano? Tem um filme aí que trata disso. Para salvar o planeta, é preciso que as pessoas sejam remanejadas para outro lugar no universo. Acho que esse filme é O dia em que a Terra parou. É bem isso. E para ninguém dizer que estou só de blá-blá-blá, a campanha começa por mim. Vou contar até três e ficar uma hora sem respirar. Tudo pelo bem da nossa mãe Terra. Sigam-me os bons. Um… dois… três… Já! Fui!