Iara

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

A madrugada toda foi de chuva. As ruas ficaram alagadas. Quase toda a cidade ficou paralisada, esperando as águas baixarem. Eu acordei cedo, como todas as manhãs, para ir ao trabalho, mas tive que esperar até 10 horas para poder sair. Quando abri a porta, vi um peixe enorme estirado no pátio. Revirando aquele peixe, vi que ele ainda estava vivo, se debatendo levemente. Examinando melhor, constatei que não se tratava de um peixe. Era uma sereia.

Levei a sereia para dentro, agasalhei-a, esquentei uma sopa e dei para ela que, muito debilitada, talvez pelo esforço de nadar entre a maresia que o temporal tinha provocado, sorveu bem devagar.

Ela foi, aos poucos, recobrando a consciência e perguntou onde se encontrava. Eu disse que ela estava numa cidade à beira de um grande rio, que ficou maior ainda por causa da chuva forte. Falei que eu precisava ir ao trabalho e que ela poderia ficar em casa, descansando. Na volta, nós pensaríamos numa maneira de devolvê-la ao rio.

Quando voltei, encontrei a sereia no sofá da sala, assistindo a uma novela na TV. Ela tinha varrido, espanado e arrumado a casa toda, que estava brilhando, muito diferente de quando eu saí. Ela disse que aquilo era um agradecimento pela forma como eu a tinha tratado.

E a sereia foi ficando, ficando. Depois de três dias, já dormíamos juntos, ela tomava conta da casa, fazia comida, tudo com muito esmero. Até que senti ameaçada a minha resolução de eterna solteirice. A convenci a voltar para a sua casa, fosse lá onde fosse, imagino que nos recônditos do imenso rio.

Ela compreendeu, se despediu, muito educadamente, e partiu. Mas, sempre que o temporal e a saudade vêm mais forte, ela me faz uma visita.

Minha história

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Conto de Ronaldo Rodrigues

Ei! Deixa eu te contar a minha história. Uma coisa que aconteceu comigo quando eu era criança. Foi lá na cidade onde nasci…

Ele me interrompeu, muito delicadamente:

– Você se importaria de deixar pra depois? Não é por nada, não, mas estamos sendo bombardeados pelo exército inimigo. Está chovendo bala e você, em vez de se proteger, fica tentando me contar a sua história. Se você não se cuidar, pode ser hoje o fim da sua história.

Me abaixei para não ser alvejado por alguma bala inimiga e dei razão a ele. Mas eu queria tanto falar daquilo, queria tanto contar a minha história. Insisti:download (2)

– Acontece que se hoje for o fim da minha história, se a gente morrer aqui nesta guerra, eu vou morrer com tudo isso que preciso falar pra alguém. Vou morrer com a minha história engatada na garganta. Seria o mesmo que uma bala atravessasse a minha garganta agora.

– É, mas pode ser que a gente não morra, se você se calar e cuidar de salvar a sua pele, como estou fazendo com a minha.

Me abaixei mais ainda, admirando intimamente a sua forma de falar, mesmo naquele tiroteio dos infernos.

*** *** ***

6fd3e66d69e77206ba780ed4915ffcdfPerdemos aquela batalha, fomos aprisionados e ficamos à disposição da corte marcial, que decidiria nossos destinos. Não vi mais aquele soldado com quem travei aquele diálogo sobre a minha história. Fui amarrado a outro soldado e aproveitei para falar a este:

– Tem uma coisa que eu preciso contar. Quando eu era criança…

Este outro soldado me interrompeu, sem a delicadeza do primeiro:

– Ô, cara! A gente tá aqui, amarrados, com fome e sede, a poucos minutos de uma decisão dessa corte marcial que pode nos mandar pro paredão de fuzilamento ou para a forca. Você acha que eu tenho cabeça pra ouvir alguma coisa?

Aproveitei a deixa:

Mas é justamente por isso. Se a corte marcial nos condenar, eu posso morrer em paz com a minha consciência, por ter falado pra você isso que eu quero falar. Você falou que está sem cabeça pra pensar alguma coisa e, por falar em cabeça, creio que, se formos condenados à morte, deverá ser por enforcamento. É pra economizar munição.tom_hanks_cast_away_006

Ele agradeceu a informação e pediu para que eu ficasse em silêncio. Depois que olhou mais atentamente para a minha aflição, me disse pra eu falar com o padre:

Se formos condenados à morte, acho que temos direito a um padre pra ouvir nossas confissões, dar a bênção final, essas coisas. Aproveita e conta a tua história pra ele.

Achei boa a ideia, mas eu achei que não seríamos condenados à morte. Ainda não seria daquela vez. No máximo, nos deixariam presos até o fim da guerra.

Foi o que aconteceu. Fomos libertados dois anos depois, com o fim da guerra. Esse tempo todo eu segurando a história que tinha pra contar. Nesses dois anos, tentei falar várias vezes, com vários companheiros de prisão, mas não encontrei ninguém disposto a ouvir.

*** *** ***

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O tempo passou pra mim (e pra todo mundo, claro) e nunca encontrei alguém que quisesse ouvir a minha história. Tinha desistido de contar, até que ontem, no meu aniversário de 98 anos, a minha netinha de seis anos olhou bem lá no fundo dos meus já enevoados olhos e perguntou se eu tinha alguma história pra contar.

Meus já enevoados olhos ganharam brilho e me preparei para contar o que aconteceu quando eu era bem pequeno, da idade da minha neta. Só que eu já havia esquecido, tanto a história quanto a vontade de contá-la. E minha voz já não saía. Mas aquela atenção da minha neta para a minha história me fez mais feliz, disposto a suportar mais alguns anos de guerra.

Peixe-Tabaco – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ele colocou a cabeça pra fora d’água e pediu um trago do meu cigarro. Achei bem estranho um peixe pedindo um trago de cigarro. Olhei para os lados para me certificar que estava sozinho na sala e que aquele peixe estava falando comigo mesmo. Encostei o cigarro em sua boquinha de peixe de aquário, esses peixinhos ornamentais que você juraria que fumar jamais passaria pela cabeça de um ser que irradia tanta pureza.

Ele tragou suave e longamente, curtindo aquele momento com muita intensidade. Quando a última baforada saiu e a fumaça já se dissipava, ele mergulhou rapidamente, pressentindo a chegada de alguém, e continuou com seus graciosos movimentos. Esse alguém que entrou na sala foi a minha amiga, a dona da casa em que eu estava. Dona da casa, do aquário, do peixe. Ela me sentiu um tanto desconfiado, como alguém que foi interrompido fazendo algo errado, e me perguntou:

– Você não deu nada pra esse peixe, deu?

Respondi que não, enquanto ela me mostrava uma placa, que eu não tinha visto ainda, acima do aquário. A placa dizia “não alimente os vícios do peixe”.

– É que ele sempre pede alguma coisa para as visitas.

Ah, bem.

Olhei para o peixe, que tranquilo estava e mais tranquilo ficou, me lançando uma piscadela de cumplicidade.

Três escritos para continuar vivo

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

O gato atravessa a penumbra. Eu vejo seus olhos brilhando no espelho. E vejo sua vida se estendendo para além da minha. Eu sei que ele vai vencer, mesmo sem saber se estou em algum embate, mesmo sem saber se foi lançado um desafio. Só sei que ele se move pelas sombras daquilo que parece ser a minha vida. Vejo o gato cruzar a sala e se atirar pela janela. Sigo seus passos, sigo sua vida, me jogo, também, pela janela… E o encontro do outro lado do espelho.

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Tulipas vermelhas sempre me atraíram. Quando eu for assassino serial só matarei mulheres brancas e deixarei sobre seus corpos nus a minha assinatura de serial killer: uma tulipa vermelha. Em contraste com a pele clara, o rubro intenso da tulipa vai saltar aos olhos, compondo um belo quadro. Quando a polícia chegar ao local do crime, já posso ver aquele policial veterano ranzinza falando: – Ele atacou novamente! Que filho da puta! Posso ver, também, o policial novato, sempre menosprezado pelo veterano, querendo mostrar serviço: – Precisamos detê-lo! E me vejo ocupando as manchetes dos jornais: O Tulipa Vermelha Faz Mais Uma Vítima. Os jornais me batizaram, sou alguém na história, um personagem das crônicas policiais, o anônimo mais famoso do país, procurado e temido. Vou à floricultura e encomendo um buquê de tulipas vermelhas. Nunca se sabe quando poderemos dar início a uma carreira de psicopata.

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É sempre isso. Bate uma vontade louca de escrever justamente nos momentos mais estranhos. Como agora, na hora da transa. Uma transa até bem movimentada, uma garota bacana, colaborativa e disposta. Mas se a vontade de escrever bate, devo obedecê-la imediatamente. Sei lá o que aconteceria se eu não obedecesse. É ela que domina a minha vida. Fazia um certo tempo que essa vontade de escrever não baixava no meio de uma transa. Já perdi muitas transas por causa disso. A garota da vez não entende, nenhuma entende. Ela se veste e vai embora. Eu fico escrevendo, escrevendo, escrevendo. Até gozar.

Cicuta-beer (crônica de Ronaldo Rodrigues)

Acordo bêbado.
 
Ato ao pescoço minha corda-gravata rosa de bolinhas azuis e vou encarar meu sórdido e rentável emprego: espantalho das plantações de eletrodomésticos de Madame Nero.
 
Nas horas vagas, vou alimentar a coleção particular de Madame Nero, seus bichinhos de estimação: quinhentos e vinte e oito rinocerontes prateados que se alimentam exclusivamente de algodão doce.
 
Volto para casa cansado, mas cantarolando.
 
Vejo muitas pessoas na Praça Transcendental.
 
Entre mendigos e bêbados, encontro Morfeu dormindo num banco de mármore, abraçando uma garrafa quase vazia de cicuta-beer. Está coberto por vários jornais futuros que deixam ler, em manchetes imensas, a abolição dos ponteiros e dos relógios, dos arquivos e dos escritórios e anunciam A Grande Libertação do Dia.
 
Respiro aliviado a fumaça do rush e ciscos voadores invadem meus olhos. Mas nada mais tem importância. A vitória da Fraternidade Cósmica está garantida e seremos todos felizes.
 
Jogo meus tênis e tédio e temores na lata de lixo, me misturo aos bêbados e mendigos e passo a esperar o grande show dos Incendiários das Nuvens.
 
Ronaldo Rodrigues

Quinta-feira – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

O office-boy entrou na ampla sala que era o escritório e foi logo anunciando:

Pessoal! Ninguém pode esquecer um acontecimento muito especial: amanhã vai ser quinta-feira! Quinta-feira, ouviram bem? Quinta-feira!

Todos os funcionários ouviram o aviso do office-boy, que repetiu:

Quinta-feira! Não esqueçam e não digam depois que eu não avisei! Quinta-feira! Quinta-feira! Amanhã vai ser quinta-feira!

Os colegas de trabalho se olharam por alguns segundos e voltaram às suas tarefas. Eles deviam estar acostumados a esses comunicados dados com tanta ênfase. Só a secretária novata ficou intrigada, olhando sem entender para o office-boy, que se dirigiu à mesa de seu chefe e pegou os documentos que deveria levar para serem copiados e entregues nos lugares devidos, as contas que deveriam ser pagas e o dinheiro do lanche que deveria trazer ao retornar. Antes de sair, voltou a anunciar, com o mesmo entusiasmo:

– Amanhã vai ser quinta-feira! Não esqueçam! Quinta-feira! Quinta-feira!

Quando voltou ao meio-dia, com suas tarefas da manhã cumpridas, e saiu para o almoço, o office-boy não se esqueceu de avisar a todos:

– Já falei pra vocês que amanhã vai ser quinta-feira? Quem ainda não ouviu é melhor prestar atenção: amanhã vai ser quinta-feira! Quinta-feira!

Os colegas já nem se olharam mais diante daquela esquisitice do office-boy, mas a secretária novata não resistiu e perguntou ao colega do lado:

– O que vai acontecer amanhã?

– Espere e verá! – respondeu o colega, deixando a moça ainda mais intrigada.

O office-boy voltou à tarde e pegou mais serviços para desempenhar na rua. Ao chegar e ao sair, não deixou de avisar:

– Quinta-feira! Quinta-feira! Amanhã vai ser quinta-feira!

No final do expediente, o office-boy voltou, prestou conta do que havia feito na rua e se despediu dos colegas, num tom solene, exigindo atenção:

– Vão em paz, meus queridíssimos companheiros de trabalho, e não esqueçam aquilo que falei. O que foi que eu falei?

– Amanhã vai ser quinta-feira! – responderam em coro os queridíssimos companheiros de trabalho.

– Isso mesmo! Amanhã vai ser quinta-feira! – falou, muito satisfeito, o office-boy.

Na manhã seguinte, na tão anunciada quinta-feira, o office-boy entrou mais esfuziante do que nunca e foi logo disparando:

– Estão preparados para o grande dia? Hoje é quinta-feira! Finalmente chegou! Quinta-feira, galera! Quinta-feira!

Arrumou as suas coisas e saiu, não sem antes bradar aos colegas:

– Quinta-feira, pessoal! Quinta-feira! É hoje! É hoje!

A secretária novata falou ao colega do lado:

– É aniversário dele! Só pode ser! Vocês não vão fazer uma festinha? Talvez ele esteja dando esse recado!

– Não esquenta! Espera o que vai acontecer. Mas posso afirmar que não é aniversário dele. Foi semana passada.

O dia transcorreu sem nada de especial, a não ser o office-boy, a cada vez que entrava na sala, avisar quase berrando:

– Hoje é quinta-feira, hein! Quinta-feira! Vou logo dizendo! Quinta-feira!

Em sua volta, no final do expediente, o office-boy chegou, falou que era quinta-feira no mesmo tom de antes, prestou conta com o chefe e saiu sem dizer nada. A secretária novata, sem conter a ansiedade, já ia levantar para ir atrás dele saber do que se tratava, quando o office-boy abriu a porta e meteu a cara:

– Vocês se prepararam? Hoje é quinta-feira! Quinta-feira!

E prosseguiu seu caminho pelo corredor, falando alto:

– Quinta-feira! Quinta-feira!

A secretária ficou ainda mais confusa, com aquela quinta-feira fazendo cócegas na sua curiosidade. Foi embora para sua casa achando que só ela, entre os funcionários, tinha ficado interessada no que estaria para acontecer, ou já acontecendo, sem que ela soubesse, naquela quinta-feira.

No outro dia, o office-boy chegou com a mesma alegria dos outros dias, se dirigindo a todos os funcionários da sala, no tom mais alto possível:

– E aí, galera? Viram só? Eu avisei! E não foi só uma vez! Foram várias vez! Espero que vocês tenham compreendido! Você também, mocinha, que é novata aqui neste escritório! Espero que todos tenham compreendido que ontem foi quinta-feira! Quinta-feira! Quinta-feira! Eu avisei! Eu avisei! Quinta-feira! Quinta-feira!

E saiu correndo, os olhos brilhando. Passou pelo corredor, saiu do prédio, ganhou a rua, gritando cada vez mais alto:

Quinta-feira! Quinta-feira! Ontem foi quinta-feira! Eu avisei! Eu avisei! Quinta-feira! Quinta-feira! Ontem foi quinta-feira! Ontem foi quinta-feira! Quinta-feira! Rá! Rá Rá! Eu avisei! Eu avisei! Rá! Rá Rá! Eu avisei! Rá! Rá Rá! Eu avisei! Quinta-feira! Quinta-feira! Rá! Rá Rá!

Que venha o mar

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Conto de Ronaldo Rodrigues

Devemos seguir, prosseguir. Cabeça erguida, passos decididos. Devemos seguir até que nossas forças cessem e encontremos novas forças para prosseguir. Digo isso para me convencer, já que não há outra maneira de suportar a caminhada. O cachorro ao meu lado está exausto. E ele não tem nada a ver com isso. Poderia ter ficado no conforto de sua gruta, caçando seu alimento.

Encontramos duas setas, uma indica a direita, outra a esquerda. Olho para o cachorro esperando que ele decida aonde ir. Ele pode recorrer ao faro ou simplesmente ao seu milenar sentido de orientação que o vem mantendo vivo até hoje.

O cachorro escolhe a direita. Eu escolho a esquerda e nos despedimos. Eu já trouxe muitos infortúnios para ele nesse meio século que caminhamos juntos. Deixo que ele siga seus próprios erros. Eu sigo os meus, até que aquele que decide sobre a vida e a morte apareça e resolva de uma vez por todas o enigma da minha caminhada.

Encontro uma mulher que me diz algo que não consigo escutar. É como se ela estivesse falando na televisão e eu tivesse baixado totalmente o volume. Prossigo, sabendo que aquilo que não ouvi deve ser uma coisa muito importante. Logo, outra mulher vem em minha direção. Ela fala muito e eu escuto tudo num volume altíssimo, um som que me deixa enlouquecido. Saio correndo da presença dessa mulher ouvindo suas inúmeras palavras que para mim não fazem o menor sentido. Corro pela planície, corro por muito tempo e a areia vai se estendendo pelas horas até o dia em que avistarei o mar.

Enfim, avisto o mar. Está diante dos meus olhos como se nunca tivesse se ausentado. Devo tê-lo visto no dia em que abri meus olhos ao nascer. Ele fugiu de mim por toda a vida até hoje. Hoje deve ser o dia da minha morte. Me aproximo do mar e ele vai se afastando, ficando sempre fora do meu alcance. Mas a minha decisão está tomada. Foi fácil tomar essa decisão, já que é a única que resta.

Me deito na areia, sob o sol. Me transformo em areia e o vento me leva. Sempre em direção ao mar.

Amanhã será o dia – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Enterro meus dias nesta pequena cidade. A cidade tem duas ruas. Numa rua fica a minha casa. Só ela. Na outra rua, duas casas e a igreja. Tem sempre uma igreja onde se juntam duas casas e algumas pessoas. É a marca de Deus? Não, é a marca dos homens. Eles assinalam seu lugar no mundo, mesmo um lugar como este, de três casas apenas.

Passo meus dias a olhar a rota do sol no céu. Já li que é o deus Apolo quem comanda o carro do sol nesse trajeto. Acho essa história legal. Vou lê-la para meu filho, quando ele vier. Primeiro preciso encontrar uma mulher para acasalar. Para isso, terei que sair da cidade, ir para outras cidades, onde haja mais casas, mais ruas, mais possibilidades de encontro.

Passo os dias a pensar que posso fazer tudo isso que descrevi acima, que posso largar tudo aqui e ir embora. Há o consolo de que o tudo aqui é o outro nome do nada. Não tenho amigos que sintam minha falta. Não tenho também coragem para empreender a retirada. E nem precisaria de tanta coragem. Muitos já arrumaram suas malas e partiram. Muitos não tinham roupas para encher as malas. Partiram com a roupa do corpo, roupa que já quase não existia. Ninguém voltou. Ou se deram bem nas cidades que encontraram ou morreram no caminho.

Amanhã eu levantarei desta velha cadeira para ir embora. Amanhã será um dia de mudança, de tomada de decisão. Amanhã começarei uma nova existência. Amanhã a vida vai começar a sorrir pra mim. Amanhã talvez eu consiga. Amanhã talvez eu desista.

Sangue – Conto de Ronaldo Rodrigues

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Conto de Ronaldo Rodrigues

O céu amanheceu sangrando. Isto não é uma força de expressão, um floreio literário, um reforço da imaginação. O céu amanheceu sangrando mesmo. A chuva de sangue banhava a cidade. As autoridades competentes estavam perplexas. Pelo menos, era o que parecia. As autoridades competentes estavam sempre fingindo dar importância às calamidades pelas quais passava a população. Esta, sim, estava perplexa mesmo. Afinal, era ela que sofria as consequências da falta de planejamento das autoridades competentes. A população estava a ponto de ser tragada por aquela tempestade de sangue.

Subi ao topo do edifício mais alto, junto com uma pequena multidão. Pequenas multidões ocupavam todos os edifícios. Grandes multidões já haviam sucumbido ao dilúvio de sangue. Eu fazia força para acordar, já que acreditava que aquilo não passava de um pesadelo.

A chuva aumentou mais ainda. Agora não eram mais gotas, eram cortinas de sangue se derramando sobre nós. Fiquei buscando na memória o aviso de que aquilo iria acontecer. Sempre fui muito ligado na previsão do tempo, não por me interessar pelo clima, pancadas de chuva, umidade relativa do ar, essas coisas. Eu era apaixonado pelas moças que apresentavam a previsão do tempo nos telejornais. Vai ver até que alguma moça do tempo anunciou aquele temporal de sangue e eu não prestei atenção, já que estava muito concentrado olhando para sua boca, seus seios, seus quadris.

Agora eu estava ali, com o rio de sangue subindo vertiginosamente, já atingindo a cobertura do edifício. As pessoas ao meu lado gritavam desesperadas. De repente, uma senhora olhou para mim como seu fosse o Salvador. Devia ser por causa dos meus cabelos compridos e minha barba. Ela devia acreditar que eu era Jesus e implorou para que eu fizesse alguma coisa. Muita gente acredita que Jesus é um super-herói e pode resolver qualquer parada. E eu fiz alguma coisa. Me joguei do edifício naquilo que já era um oceano de sangue.

Depois da minha morte, minha alma ficou perambulando pela cidade, talvez tentando entender tudo aquilo. Olhei pela janela e vi uma televisão ligada e uma moça do tempo falando daquela chuva de sangue. Logo em seguida, entrou a imagem de uma autoridade competente dizendo para que ninguém se preocupasse. A previsão da chuva de sangue tinha sido um engano. Não havia motivo para alarme.

Dois textinhos para eu não perder o emprego neste site (crônicas de Ronaldo Rodrigues)

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Crônicas de Ronaldo Rodrigues

Sabe aqueles macacos que são usados como cobaias de experiências científicas? Zé Chimpanzé era um desses, um dos mais procurados por cientistas malucos de todos os quadrantes. Ele era um superstar da categoria. Seu cachê era o mais alto. Zé Chimpanzé ganhou tanta notoriedade que sua agenda vivia lotada. Zé Chimpanzé era uma celebridade, sua fama atravessava fronteiras, sua fuça era vista com muita frequência na National Geografic. Mas um dia, cansado de tanta bajulação a que os grandes astros são expostos, entediado com os holofotes e já sem paciência com os paparazzi, Zé Chimpanzé isolou-se em seu castelo à beira-mar e nunca mais quis saber de ser11139583_10200353094787564_362736756_n cobaia de cientista maluco. Imitando Greta Garbo, Zé Chimpanzé repetiu a célebre frase da diva – “ I want to be alone!” – e entrou numa reclusão que dura até hoje.

*** *** *** *** ***

Sempre qu11139609_10200353094907567_348303774_ne Mona Lisa sorria enigmática, Leonardo errava a pincelada. A cada retoque, a Mona Lisa, a pintura, se parecia menos com a Mona Lisa, a mulher. Após dar por terminada a tela, uma das mais famosas do mundo, Leonardo teve que fazer uma cirurgia plástica na modelo, usando sua perícia como grande estudioso da anatomia humana, para que ela ficasse parecida com a figura retratada na pintura. Foi tanta a euforia de Leonardo com a experiência que ele passou a se dedicar a retratos femininos, como o que fez de Marilyn Monroe, deixando para que Andy Warhol, já no extinto século 20 assinasse. Coisas de gênio.

Jesus era boleiro

Crônica de Ronaldo Rodrigues
 
Mais uma descoberta de textos apócrifos da Bíblia revela lances nunca antes imaginados da vida de Jesus. Sabe-se agora que o Homem de Nazaré foi um grande futebolista.
 
Ele tinha 12 anos apenas quando deixou os sábios do templo de queixo caído com tanta sabedoria sobre futebol. Foi essa a última vez que Jesus foi visto. Até então nunca se soube o que tinha feito até os 30 anos, quando retornou como o Rei dos Reis da Cocada Preta, o Cara, o Bam-bam-bam, o Messias e tal.
 
Os textos revelam que Jesus passou parte desse tempo treinando com os essênios, donos da melhor escola de futebol da época, que vislumbraram no menino um enorme talento para jogadas milagrosas e dribles fora do comum. Grandes estrategistas da pelota, os essênios usavam técnicas revolucionárias, como ioga e meditação.
 
Depois de passar por pequenos times hebreus, Jesus conseguiu uma vaga no Estrela de Davi Futebol Clube, time da elite judaica. O desempenho do jovem atleta logo chamou a atenção do todo-poderoso treinador Zagalo, da Zagalileia (ainda novo, com 147 anos), e se firmou como astro da equipe.
 
Jesus levava uma vida de atleta exemplar. Não fumava, não fazia sexo antes dos jogos (nem depois) e a quem lhe oferecia bebida ele dizia:
 
– Afasta de mim esse cálice!
 
Jesus estava em plena forma quando foi escalado para jogar contra a Seleção Imperial Romana, cujo cartola-mor, Euricus Mirandas, queria a cabeça de JC, como já tinha feito com João Batista, irmão de Júlio Batista e Léo Batista.
 
O jogo era de vida ou morte e Jesus era considerado o salvador da pátria. Depois de dar seu sangue e suor e não conseguir marcar um gol sequer, a arquibancada em peso passou a torcer contra Jesus, responsabilizando-o por todos os pecados da humanidade. Torcida de futebol é muito exagerada e quando o time está perdendo quer pegar qualquer um pra Cristo.
 
No final da partida, depois da surra que levou, Jesus ganhou como troféu uma coroa e foi levado ao Calvário. O final da história todo mundo já sabe.

Malhando os malhadores (Crônica de Ronaldo Rodrigues)

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Semana Santa. Sempre que chega esta data fico pensando no sentido de justiça de certas pessoas. Elas pegam Judas e fazem o diabo com ele. Malham o cara de todo jeito. Dizem que é a única forma de fazê-lo pagar pelo crime de ter traído Jesus. Isso é o que mais me preocupa. Se tudo já estava escrito, segundo a própria Bíblia, qual é a culpa de Judas? Se há culpa, é de quem escreveu.

Prefiro acreditar que Judas foi um elemento para que a história se cumprisse da forma que se cumpriu. Judas foi um aliado de Jesus e agiu daquela forma para que tudo saísse segundo o roteiro do Todo (Todo é como chamo o Todo-Poderoso na intimidade). Ora! Parem com esse negócio de associar o nome de Judas à traição. E parem de fazer essa justiça esquisita que comporta todo tipo de torpeza que vocês veem no cara, que condenam nos outros, mas que em vocês é aceitável.JUDAS (1)

Traidores são vocês! Traidores da palavra de Deus! (vocês são quem vestir a carapuça). Na verdade, sou a favor da reabilitação de todas as figuras malditas da Bíblia, pelo mesmo motivo: não foram elas responsáveis por seus destinos. Como dizem os árabes: maktub! (estava escrito!).

Portanto, Judas, Caim, Lúcifer, Barrabás, Pilatos, Herodes etc. devem ser vistos como personagens desempenhando seus papéis. Aí algumas pessoas dizem que há o livre-arbítrio, que esses personagens poderiam ter tomado outro caminho. E como ficaria a palavra do Todo?

religiãoIINa verdade, os cristãos (a maior parte deles) confundem tudo. Esse papo de dizer que Jesus morreu para nos salvar acho exagero e injusto com o cara. Cada um tem que fazer por si, pela sua salvação, e não achar que está tudo bem, bastando ir à igreja rezar que – abracadabra – estamos salvos. Muito confortável, não acham?

Agora vou me despedir porque tem uma multidão de fanáticos correndo atrás de mim querendo me linchar. E olha que eles nem leram esta linhas. É que estou com barba e cabelo grandinhos e estão me confundido, claro, com Judas. Por que não me confundem com Jesus Cristo? Ah, daria no mesmo! Só que, em vez de me linchar, eles me colocariam na cruz. Ó my God!

Ronaldo Rodrigues

De Nazaré (conto de Ronaldo Rodrigues)

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De Nazaré estava passando em frente ao bar e os outros estivadores assoviaram alegremente, chamando-o para um trago.

Bom de copo como de trabalho, De Nazaré pensou um pouco e concluiu que um convite feito com tanta sinceridade e alegria não poderia ser recusado.

Deixou a pesada cruz encostada ao lado do bar e abriu os braços para os amigos.

Todos gostavam de ouvir De Nazaré cantar, mas ele só fazia isso quando estava bastante embriagado. Então bebeu, de uma só vez, meia garrafa de pinga.

A bebida explodiu quente nas engrenagens cerebrais e despertou o cantor apaixonado que De Nazaré sonhou ser em sua juventude. Abriu a garganta, libertando o pássaro da voz, e fez com que todos ali esquecessem, por alguns instantes, a miséria quotidiana e a coroa de espinhos que eram obrigados a suportar.hqdefault

Mais do que uma simples distração, as músicas eram um alívio, acentuado pelo entorpecimento da cachaça. Uma trégua para quem tem que colocar a carga do mundo nas costas e encher os porões dos navios.

Depois de algum tempo de cantoria, De Nazaré resolveu ir embora, continuar seu amargo ofício. Era quatro horas da madrugada e ele tinha que carregar mais algumas dezenas de cruzes antes do amanhecer. Homem de palavra, De Nazaré honravJESUS COM A CRUZa os compromissos e nunca deixou uma entrega por fazer.

Os outros estivadores bem que queriam que De Nazaré continuasse a cantoria, mas sabiam que eles mesmos teriam que se retirar para enfrentar o batente. Voltaram à realidade e se foram, deixando os restos de peixe frito para os cachorros do cais.

Sozinho novamente, De Nazaré sentiu os pingos da chuva que começava a cair. Tomou o último gole e, sob a precária iluminação do poste, recolocou a cruz no ombro e caminhou em direção à ponte de tabuinhas irregulares que levava aos navios ancorados na escuridão.

Ronaldo Rodrigues

Alegria é lei – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Noite de Carnaval, uma das Mil e Uma Noites de Carnaval, e eu diante da televisão. Em retiro espiritual? Nem tanto. Estava olhando as bundas rebolativas maravilhosas, reais e artificiais, que desfilavam nos sambódromos e passarelas deste carnavalesco Brasil.

Meu programa de folião se resumia a isso. Mas, depois que a exuberância bundística cansasse meu tarado, porém inofensivo, olhar, eu iria me entregar ao resto do programa: um bom livro e uma xícara de chá, embaixo do meu solitário edredom. O Rei Momo dominava o resto do Brasil e só eu me encontrava enclausurado nesta ilha que é o meu quarto. Que maravilha!

Mas ei que a campainha tocou. Quem estaria a estas horas longe da esbórnia cívica nacional? Abri a porta e me deparei com um pierrô, uma colombina, um arlequim, um pirata do Caribe, um sheik e cinco Fridas Khalo, que este ano estiveram em alta, disparadas na preferência de muitas pessoas. E tinha também um delegado de polícia. O delegado era delegado mesmo, não uma fantasia. E foi ele quem falou pelo grupo:

– Boa noite, cavalheiro! Viemos informar que o senhor está infringindo vários artigos do Código Civil. Onde já se viu uma coisa dessas?

– Mas o que foi que eu fiz?

– A questão não é o que o senhor fez e, sim, o que o senhor não fez!

– E o que foi que eu não fiz?

– O senhor, em pleno período de Carnaval, neste país, que é, nada mais nada menos, que o País do Carnaval, está recolhido aos seus aposentos. Os seus vizinhos, aqui representados por estes cidadãos, que prezam as tradições do lugar em que vivem, exigem que o senhor troque esse pijama por uma fantasia qualquer, o seu chá por uma bebida alcoólica e o seu livro por um adereço de mão. E venha para a rua pular, cantar, festejar a alegria e a liberdade de um país que decreta feriado nacional, universal e intergalático para que seus filhos possam se jogar, sem temor, nos braços da felicidade.

O grupo de foliões aplaudiu o delegado, que estufou o peito em resposta, muito satisfeito de seu discurso. Eu protestei:

– Já que o senhor falou em liberdade, será que uma pessoa não é livre para escolher se quer participar das festas? Assim como as pessoas que aqui estão têm o direito de dançar, eu tenho o direito de não dançar, de ficar no meu canto sossegado e….

O delegado, que procurava algo para me incriminar, me interrompeu:

– Aí é que está, cidadão! O senhor está sossegado no seu canto. Os seus vizinhos afirmam que o seu silêncio está atrapalhando o barulho que eles estão fazendo com tanta dedicação!

Aí foi que eu me confundi mesmo! Já sem força, nem raciocínio, para protestar contra aquele absurdo, me limitei a perguntar, já procurando minha carteira para uma providencial propina:

– E o que devo fazer para reparar esse dano?

– O senhor escolhe: pagar uma multa altíssima, ser recolhido ao xadrez ou cair na folia com seus semelhantes.

Escolhi a última opção. Vocês viram um folião todo desajeitado por aí? Era eu.