Poema de agora: O TEMPO – Marven Junius Franklin

O TEMPO

O tempo ainda chega
e traz com ele a descrença
própria dos detestáveis fins de tarde

(O tempo estampa de marasmo a face distorcida da velha dançarina)

O tempo quando atua
muda a paisagem das matas e vielas
desgasta a carcaça de automóveis nas oficinas mecânicas

(O tempo quando posta suas garras de ciclope transforma em tardes gris a primavera)

Ah, o tempo quando se instala
distorce as fotografias dos casarões da Cidade Velha
e morre bocejando em frente ao Solar da Beira

(…) Oh, o tempo!
É testemunha ocular de meu rumo incerto em busca do céu!

Marven Junius Franklin

Poema de agora: Luz e Assombros – Jaci Rocha

Luz e Assombros

A poeira acumulada na calçada dos dias
O vento que sopra a esquina da tarde que cai
Um fantasma sentado na esquina da Hamilton Silva
A lembrança da pureza batendo à porta.

A luz do dia e a sombra das coisas que já disse adeus
Às vezes se encontram
Sentam para uma cerveja
Ou para um simples olá….

Acho que encontrei comigo
Risonha, pateta.
O espelho sussurrou “já passou”
Sigo aqui, sei que ali, já não há mais nada

É só a poeira do tempo
Trazida no vento
E nas flores do jambeiro
Que jazem naquela calçada.

-E a chuva lava o fim de tarde
Com o (e)terno cheiro dos domingos.

Jaci Rocha

Poema de agora: DESLUZ – Ori Fonseca

DESLUZ

A desesperança
Que dói
Que rói
Que mói
Que sói
Acontecer
No frio da noite
No frio da alma
No frio do frio
Corta-te a carne em convulsão

O desassossego
Que cai
Que sai
Que vai
Que atrai
O escurecer
À dor da noite
À dor da alma
À dor da dor
Quer-te habitar o coração

A desarmonia
Do dó
Do só
Do nó
Do pó
De enlouquecer
No caos da noite
No caos da alma
No caos do caos
Rasga-te a veste da razão

Ori Fonseca

Poema de agora: Caminhada – Fernando Canto

Caminhada

Aos que caminham dentro de si e ainda se assombram

De manhã
Meu corpo
É longo
Em sua sombra
Caminhante

Ao meio-dia
Assombro-me
Em segredo
– Encolhidinho –
No equinócio
Da alma

À tarde
Eu me projeto
Rumo ao mar
Com o sol
A bater meu rosto
Nos umbrais da noite

E se um lado é luz
Que me orienta
E de outro
Meu rastro
É a escuridão

Sou, perdoem-me,
Um obscuro ponto
Na paisagem
Que me embala
Ao sol do dia seguinte.

Fernando Canto

Poema de agora: Dona Louca – Marven Junius Franklin

Imagem: Christopher Lovell More

Dona Louca

Dona Louca – uma portuguesa
que vivia zanzando pelas ruas de Santarém
empunhando um guarda-sol furado
vez ou outra ela adentrava o Cemitério Municipal
e furtava as flores dos túmulos
e dando risos zangadiços
– gritava:
flores para os vivos…os mortos não carecem de flores!
flores para os vivos…os mortos não carecem de flores!
Ah, Dona Louca!
Foi a primeira poeta que conheci.

Marven Junius Franklin.

Poema de agora: Manhãs de Vanusa – Luiz Jorge Ferreira

Manhãs de Vanusa

Nem é Setembro para partirmos afinados em Si Bemol
…nem está o Sol, nem está Mercúrio, nem aquele burburinho por trás do Palco se faz presente.
Para onde vão os nascidos em Setembro, para onde vão as Manhãs de Setembro…
Estão na Feira, dentro de um paneiro de Mucajá?
Ou estão estão espalhadas pela Praia do Araxá.
Ou talvez no veio d’água do Pacoval.

Manhãs de Setembro, não estamos em Outubro…
Estamos em Novembro.
Porquê essa fila de dias intermináveis.
Porquê essa fila de meses intermináveis.
Porquê essa fila de coisas intermináveis.
E porquê esses intermináveis, não vão embora.
O que os faz ficar presente aqui comigo, não é comigo…comigo.
É comigo…contigo, consigo, e convosco.
Eu tenho a voz rouca, e não posso cantar mais…
Mas eu gostaria de poder cantar, do topo de um lugar bem alto para todas as paralelas que eu encontrasse.
Vanusa foi embora.
…Está bom…Tá bom…
Eu ia dizer, que não estava, mas eu tenho que dizer, que está bom.
O encontro das Paralelas…se faz no infinito.

Luiz Jorge Ferreira

*Osasco (SP) – 08.11.2020 – Não por acaso, hoje.

Poema de agora: PARTOS – Ori Fonseca (sobre o tal/absurdo “estupro culposo”)

Ilustração: Meu Nascimento, de Frida Kahlo (1932).

PARTOS

Diversa, pari-me a mim muitas vezes.
Desde o chicote do cordão sangrento,
Passando por homônimos em rebento,
Até me reparir todos os meses.

E em cada parto, as dores dos reveses;
E ser a mesma, sendo diferente,
Armando-me de luz, unhas e dentes,
Desconstruindo em mim todas as teses.

A minha vida é um parto interminável,
Ou o repetir de partos sucessivos
De dor e grito e medos repressivos.

Mas todo dia, uma mulher notável
Rompe um cordão de fibra indecifrável
Para manter-se viva entre os mais vivos.

Ori Fonseca

* Este soneto foi escrito hoje, 03/11/2020, às 5h17min da manhã. Tenta o texto usar a linguagem poética para expressar a necessidade de renascimento de reparto que a mulher experimenta todos os dias. A mulher precisa, por imposição social, religiosa, cultural, parir-se a cada nova fase, que é todo momento da vida. Desde o nascimento, passando pelas transformações físicas, chegando às barreiras que o mundo macho lhe impõe. Este soneto não foi pensado no caso absurdo de estupro sofrido por Mari Ferrer, mas se confirma nele também. É nesse tipo de reparir também que o poema se baseia. Todo dia, toda hora, a mulher precisa renascer dessas mortes diárias.
Este soneto também quer gritar uma dor de parto: NÃO EXISTE ESTUPRO CULPOSO! (Ori Fonseca).

 

Poema de agora: Outra prece – Pat Andrade

Outra Prece

pelo olho mágico
observo o trágico fim
daquilo que está
ao redor de mim

pela fresta da porta
aprecio a festa insana
de um mundo cretino

me recolho me guardo
me escondo me afasto
dessa gente nefasta
que gasta seu tempo
a me rogar praga

no escuro calada
faço uma prece
e chorando peço
que essa loucura cesse

que essa gente vil
volte para a puta que a pariu
que essa gente me esqueça
que simplesmente desapareça

Pat Andrade

Poema de agora: Romeiro – Luiz Jorge Ferreira

Romeiro

Não havia Música.
Mas ao som dos nossos sussurros, começamos a dançar.
Lembro quando lhe conheci…
Haviam dois anjos sentados na calçada.
Haviam retirado as Asas e jogavam Damas.
Eu me aproximei…


A lua estava muito branca, parecia haver tomado um banho de giz…
Por um triz, não pisei no seu destino.
Dei as mãos as suas, e enquanto os Anjos jogavam…
Nos jogamos entre abraços que pareciam altas dunas.
Depois nossas sombras, agora brancas e em desalinho…
Procuraram caminhos estranhamente paralelos.

Lembro que havia um par de chinelos que nossos pés calçaram.
Os passos eu não recordo qual direção tomaram.
Mas era Pôr do Sol quando…As asas vieram a nos perguntar pelos Anjos.
Eu as estendi no chão, e nós deitamos…
Inexplicavelmente…nús.

Luiz Jorge Ferreira

*Do livro “Defronte da Boca da Noite ficam os dias de Ontem…” – Editora Rumo Editorial – São Paulo – Brasil.

Poema de agora: NOSSOS EUS – Rui Guilherme

NOSSOS EUS

Eu tenho um lado diferente:
ora sou bicho, ora sou gente.

Eu tenho um lado distinto:
vezes eu penso; vezes, so sinto.

Eu tenho um lado incerto:
nem bem estou longe e já quero estar perto!

Eu tenho um lado oposto:
pura alegria, fundo desgosto.

Eu tenho um lado errado:
ora me esquecem, ora sou lembrado.

Eu tenho um lado triste:
nele a ironia persiste,
pois nesse lado do meu lado,
por bem ou de mau grado,
tu não me sais da lembrança
e com ela a esperança
de reaver teu corpo amado
aqui comigo, ao meu lado.

Rui Guilherme

Hoje é o Dia D Drummond

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Hoje (31) é comemorado o “ Dia D”, em homenagem ao escritor e poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, que completaria nesta data, se estivesse vivo, 118 anos de idade.

O Dia D Drummond é inspirado em iniciativa semelhante, quando não só os irlandeses, mas gente de todo os cantos festejam o escritor James Joyce, anualmente, em 16 de junho, com o Bloomsday. Uma maneira de disseminar a obra do escritor brasileiro.“A intenção é esta: realizar esse evento todos os anos. Queremos que a ideia se espalhe por todos os cantos e faça parte do calendário cultural do país, sem ser feriado. Que seja algo automático e corriqueiro para todos. Drummond merece ser sempre celebrado”, declara Eucanaã Ferraz, um dos curadores do projeto e consultor de literatura do Instituto Moreira Salles (IMS).

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Carlos Drummond de Andrade foi um dos maiores e mais sutis. É emocionante ler e reler seus poemas e crônicas. A ele , minhas eternas homenagens!

“A leitura é uma fonte inesgotável de prazer mas por incrível que pareça, a quase totalidade, não sente esta sede” – Carlos Drummond de Andrade

Fonte: Instituto Moreira Salles

*Este ano, por conta da pandemia, os eventos em homenagem ao grande poeta e escritor brasileiro são totalmente on-line. Vejam AQUI. 

Poema de agora: Velho Balcão – Luiz Jorge Ferreira

Velho Balcão

E se sobre a pele dos caboclos o Sol desenhou tatuagens de outras paragens.
Nas suas fêmeas- riscou um Sol aceso, e uma lua apagada.
Já no meio da rua a noite cedeu a azulidade do céu para o breu.
Isso tudo eu escondo nas fotografias dentro da memória onde tenho as cédulas de identidade.

Na fotografia, o balcão da venda de Seu Bill.
Sofre de solidão, marcado dos sulcos deixados pelos cotovelos, e sobrevoado pelo vôo dos copos do balcão a boca.
É uma ilha.
Onde tropegas…sede e fome.
Dão as cartas.

Ele reflete o pôster de Rose de Primo, que estimula os desejos pregado na parede.
Na parede tem a cal que racha e fraqueja, repleta do odor nauseante de carne seca.
Tem a queda de cascas de tinta, e cada casca solitária, cai manchada do tempo que a colocou Ontem lá

Tem o barulho do sino da igreja que desce pela laje, e cai no bueiro.
Tem a negritude inteira da Noite.
É ela que toma assento nos degraus, sopra ventos mais frios, e cutuca para dentro.
A cor negra que orgulhosamente transborda. No bairro negro do Laguinho.

Indiferente a esse episódio rotineiro.
Vão-se os Janeiros, um a um para detrás da Igreja.
E se eu retiro os cotovelos do horizonte e os acompanho como ordena a vida.
Eu sumo!

Luiz Jorge Ferreira

* Do livro “Nunca mais vou sair de mim, sem levar as Asas”.