Poema de agora: ETERNAMENTE – Ori Fonseca

Ilustração: Montagem sobre figura do artista Archimboldo (século XVI).

ETERNAMENTE

Sê bem-vindo à tua morada terrena,
Definitiva, fria, inescapável;
Onde serás eterno e reciclável,
Comida de ti mesmo em fome plena.

Teus parceiros de lodo é quarentena
Abraçarão teu corpo degradável
E almoçarão tua carne abominável
E dar-te-ão a vida eterna e amena.

Não é a parede a pendurar retrato
Que irá eternizar tua natureza.
Tua cara no retrato não se esvai.

A vida eterna é oferecida à mesa:
Quando te alimentaste de teu pai
E quando um filho teu te achar no prato.

Ori Fonseca

Poema de agora: SOLIDÃO – Rui Guilherme

SOLIDÃO

Um barco navega, velas pandas
abertas ao vento cortante.
Estralejam os estais. Das bandas
do norte, o vendaval ululante
percorre, doido, o convés deserto.

À vista, nem um só tripulante.
As vagas do mar aberto
soqueiam, com fúria apavorante,
os bordos do galeão abandonado.
A peste dizimou a tripulação.
O derradeiro homem, pela febre transtornado,
jogou-se em meio à arrebentação
e logo foi pelas ondas tragado.

Que som é este que emerge do porão,
qual o grito de pessoa atormentada?
Será fantasma, será assombração,
Esse gemido agudo de alma penada?

O vento ruge em raiva descontrolada,
Impelindo a nave contra os vagalhões.
O veleiro, como em rota concertada,
sobe e desce na maré e, aos trambolhões,
continua sua trágica jornada.

O uivo horrendo disputa com o vendaval,
como a querer, em contenda encarniçada,
sobrepor-se ao rugir do temporal.

Se alguém pudesse, em meio ao desvario
dos elementos, chegar até o porão,
ali encontrava, a tremer de frio,
ganindo, uivando, um velho cão
sarnento, miserável, tiritante, abandonado:
sobrevivente único da mortandade
a que o mar, em negras vagas
e pelo vento desgrenhado,
testemunhava com gélida impiedade.

Rui Guilherme

Poema de agora: NO AR – @fernando__canto

 

NO AR

Ao homem é dado o fado
De sepultar segredos
De enterrar memórias
E de segregar vontades.

No ar em que circula o pó
Da angústia
Está toda a tragédia
E o rol das incertezas
Das ações humanas.

Ao homem não se nega
A face dos mortos perigosos
A dádiva de santos enlevados
Nem o dom de diluir a arte
Em volúpias e intemperanças.

O homem não sonega
O sonho plantado à bruma da manhã
Hora em que dissipa o verbo
E surge o espanto em turbilhão letal.

Fernando Canto

Poema de agora: LIMO – Ori Fonseca

Ilustração: detalhe de No Vento e na Terra I, de Iberê Camargo.

LIMO

O amor se foi daqui, bateste à porta errada;
Sem rosas no jardim, sem coração no peito,
Sou só uma casa vazia sem mesa ou leito,
Lugar triste que nunca serviu pra morada.

Foge ao meu batente, ó alma desesperada,
Corre para os campos onde tudo é perfeito.
O chão batido onde piso, escarro e me deito
Não poderá te servir para nada… nada!

O limo do tempo recobriu meu telhado,
Ervas daninhas consumiram meus umbrais;
Não é nesta assombrada casa que entrarás.

Vai-te, te peço, deixa-me cá no passado.
Solto lá fora, o tempo aqui dentro é parado.
Já grasna o corvo de Poe: “Ori, nunca mais”!

Ori Fonseca

Poema de agora: IMO – Joãozinho Gomes

IMO

Íntimo do estímulo em ti me dei,
intimidei teu íntimo no último ato
de um beijo extinto, (imunizei
teu imo com isto) gozo de Dioniso

ao teu instinto! Absinti-me em ti,
ente abissal, beijei teu corpo à cor
púrpura do recinto à cara do poente.
No bosque lembrei de Afrodite

instigando-me; oh seios em riste!
(diga-me, Quíron: alguém resiste?)
Ardi em ti intimamente em riste
e não resististe – e gozaste – e riste

Joãozinho Gomes

Hum Conto. Nem sei – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Ela foi vó sem ser mãe.
Por isso guardava os dentes de leite dele, amarrados em um cordão verde, agora sem nenhuma cor.
Todos os dias ela espera os bandos de Pardais fazerem sexo.
Para depois de pernas abertas receber o vento que vem do Sul.
De noitinha enjoa e no outro dia de manhãzinha pari Pardais.

Em uma ocasião destas, ele nasceu, coberto de um visgo semelhante ao visgo extraído da jaqueira para criar armadilha para passarinhar.
Passou a chamar-lhe Pé de Jaca.
Quem passava pela estrada defronte do casebre. Viajantes e Peregrinos. A chamavam de Divina.
Como podia atrair e viver com tantos animais e cuidar de todos.
Tão velhinha como estava.


Pé de jaca indiferente empinava pipa. Urinava no Igarapé. E dava cambalhotas.
A Divina dos pardais. A que contava histórias. Das quais a que Pé de Jaca gostava mais, era a do menino que tinha um cão que pescava peixes, e um dia ouviu o peixe lhe dizer larga… larga… está doendo. Daquele dia em diante o cão nunca mais pescou ajudava o menino a plantar e comia os grãos de milho plantados de parceria, ele, o menino, e o peixe. Até que um dia o cão morreu, o peixe foi embora, e o menino já homem, casou com a lua e virou um pássaro Jaburu que pesca peixe, mas não os devora. Come sementes e frutos.

Retirantes – Cândido Portinari

A cada dia mais viajante habituais, retirantes de vezsada, caminhantes fortuitos. Aglomeravam defronte da sua casa de pau a pique coberta de folhas secas de Bacabeira.
Já diziam que a água do poço ao lado do casebre perfumava, e curava quem a bebia.
Já outros a noite furtivamente arrancavam pedaços de barro de suas paredes e com eles faziam chás e adoçados.


Muitos começaram a acampar do outro lado da estrada atrapalhando o trânsito de grandes caminhões e carretas que levavam turbinas para a hidroelétrica de Matapi.
Veio a polícia e iniciou a expulsa-los. Não sem um protesto geral.
Com mortos e incontáveis feridos.
E ela a parir Pardais.


O alvoroço, o barulho, o vai e vem pelo quintal espalhou as borboletas, os saguis, os porcos do mato, as saracuras, o bem-te-vis, curiós coloridos e cobras cascavéis em fila com seus guizos reticentes. Foram os últimos a partir. Ficaram as bananeiras e suas aranhas e teias.
Ela assustada em fim com toda esta balburdia parou de parir os Pardais. Sussurrou algo no ouvido de Pé de Jaca. E quando anoiteceu ouviram os que acampavam em frente ao casebre. Um estrondo enorme no poço seguido de uma explosão e nada mais restou. Ficou como cicatriz uma cratera cheia de mato como se há muito tempo existisse ali fincada.


Pé de Jaca agora em um ancião sobrevive e ganha para orientar os barcos que chegam no Ver o Peso. Ajuda-os a manobrar pela Canal da Baia, lugar mais profundo do rio.
Aonde vai e seguido por um bando de gaivotas e um Jaburu velho de poucas penas, e com as penas sabrecadas de fogo.
Pé de Jaca é cego.

* Do livro “Na frente da boca da Noite Ficam os dias de Ontem” – Rumo Editorial (São Paulo – 2020).

Poema de agora – La vem a manga descendo a ladeira – Patricia Cattani

La vem a manga descendo a ladeira

La vem a manga descendo a ladeira
E Todos correndo atrás da manga faceira
Quando a manga parou, eram tantas pelo chão
Que correr atrás só de uma parecia algo em vão
La vem a manga descendo a ladeira
É homem velho, menino e mulher rameira
Mas aqui é tanta manga que ninguém fica sozinho
Tem pra todos que a desejam e até pro chato do vizinho


La vem a manga descendo a ladeira
Desvia das pedras e até levanta poeira
Dos automóveis só resta vidros quebrados
E a ira dos motoristas endiabrados
La vem a manga descendo a ladeira
Sua origem é indiana, essa fruta tropical
Dizem as más línguas que até pode fazer mal
Mas se não comê-la com leite, coma verde e com sal
La vem a manga descendo a ladeira
Lambuzar-se com a manga é uma bela brincadeira

Patricia Cattani

Poema de agora: Faça-me – Patricia Cattani

Faça-me

Faça-me sentir saudades
Deseje-me sem maldades
Abraça-me o quanto puder
Seremos um para o outro
somente o que Deus quiser

Faça-me rir até eu lagrimar
Não chore quando eu chorar
Não venha quando eu chamar
Não me obedeça assim tanto
Que seja teu o meu recanto

Venha-me alegre e de mansinho
Abrace-me se eu chorar baixinho
Espere-me no banho
Dedique-me o teu canto

Solte-me de vez em quando
Deixe-me correr pelo campo
Pés descalços na terra
Avistar uma tapera velha
Braços abertos ao vento
Carta rabiscada de sentimento

Deixe-me de beira
Largue-me de bobeira
Goiaba madura na goiabeira
Manga descendo a ladeira
Faço-te um chá de cidreira

Ignore-me, me provoque
Não me chame o reboque
Deixa-me ao léu e suma a galope
Da água beba o ultimo gole

Beije-me com desejo a boca
Faça-me um pouco boba
Não tanto Louca e rouca,
Faça-me uma boa loba

Se esconda de mim na madrugada
Que eu te procure até ficar zangada
Depois me ame com doçura, amor e alma
Até eu tocar o céu na noite enluarada

Conte-me mentirinhas pra me fazer feliz
E meias verdades sem que te cresça o nariz
Bagunce meus discos
Arrume meus Livros
Roube-me um sorriso
Leve-me ao paraíso

Conte-me teus segredos
Nunca todos por inteiro
De teus mistérios eu gosto
São os melhores, aposto!

Misture todos os nossos suores
Sussurros, suspiros e roucas Vozes,
Depois te faço bolo de nozes
Mais gostosos e melhores

Deixe-me degustar teus sabores
Recheados de ternura e amores
Faça-me reconhecer nosso cheiro
Impresso no lençol e travesseiro
Na mistura de nossos avessos

Mas se nada disso te bastar
Faça apenas o que te agradar
Deixe o coração solto a bailar
Experimente apenas me amar

Patricia Cattani

Poema de agora: Um caminho para o coração – Pat Andrade

Um caminho para o coração

são muitas as barreiras
parece difícil de acessar
tem pedras, tem espinhos
é bem penoso o caminhar

a trilha é longa e estreita
pouca sombra pra descansar
mas, devagar e com cuidado,
uma hora se há de chegar

deve ser boa a recompensa
desistir não é uma opção
é preciso ir até o fim da estrada
pra abrir a porta do coração

Pat Andrade

Poema de agora: Se o mundo acabar amanhã – Jaci Rocha

Se o mundo acabar amanhã

Se o mundo acabar amanhã
Tomara que eu tenha beijado tudo que poderia
E que toda a futura poesia
Saiba me perdoar, por partir

Tomara que haja um arco-íris no céu
e caia aquela chuva fina que deixa o cheiro da terra molhada invadir o espaço
e que cada beijo,elo ou laço
Esteja em seu melhor lugar…

Se o mundo acabar amanhã

Nesse hospício maluco de algum secreto Alienígena Alienista
Haja um show de Nando,
Um céu azul intenso
Ou um bonito sarau de poesia…

Sei lá, se o mundo acabar amanhã

Que o amor me perdoe por tudo que calei
E que reverencie as vezes que larguei o prumo e na chuva dancei
E todas as vezes que segui estrelas
Dia aceso ou plena madrugada

– Pois eu fui inteira, em cada passagem da estada…-

Eu sei, esse tão pouco tempo aqui
desde o big bang é quase nada
Mas, cá estamos, plenos de (in)significâncias
e é tão lindo viver…

Se o mundo acabar amanhã
Que possa esquecer tudo que foi lira não dita
Palavra riscada – poesia triste, esquecida
E que eu possa seguir para a próxima fase

Com um sorriso no lábio
E a certeza de que a vida se reinventa
Pois afinal, do caos secreto do espaço viemos
somos arte do universo:

corpo em carne: poeira das estrelas!

(Mas, se o Mundo Acabar amanhã
Tomara que seja para renascer
Mais puro e mais pleno
Dentro de nós )

Jaci Rocha

Poema de agora: Chuva do Cerrado (do poeta amapaense José Edson, que mora em Brasília (DF), em homenagem aos 60 anos da capital federal)

Chuva do Cerrado

Chove leve
lava Brasília lívida
lânguida

Abre espartilho
cinzento da noite
barca solidão partida

Brilho no olho neon
costura um silêncio
na poça d’água serena

Comove ave leviatã
como nau lupiscínica
sob falena inconsútil

Chove leve
lava Asa Norte fútil
sonata breve leviana

José Edson

*José Edson dos Santos é poeta amapaense, que reside em Brasília (DF). Este poema é de seu livro “Ampulheta de Aedo”.
**Contribuição de Fernando Canto

Poema de agora: MEDO DE AMAR – Rui Guilherme

MEDO DE AMAR

Tiger, tiger, – Tigre, tigre,
Burning bright – Cujo brilho incendeia
In the forests of the night, – As florestas da noite,
What immortal hand or eye – De quem é esta mão ou olho imortal
Dared frame – Que ousou traçar
Thy fearful simmetry? – Tua apavorante simetria?
ROBERT BLAKE (“Songs of Innocence”) – ROBERT BLAKE (“Canções da Inocência”)

Vejo o amor que chega
como um grande tigre com seus olhos amarelos.

Existe um brilho satânico naquele jeito de olhar,
na maneira graciosa com que se passeia,
as patas de veludo pisando quase sem soar
no chão forrado de folhas, enquanto a cauda coleia.

Alguma coisa, um barulho, e se detém o grande gato.
Pára; olha em torno; escuta; fareja
a espreitar algo que, no mato,
a certa distância rasteja.

Pode-se ver muito bem que é uma serpente:
é uma píton, é uma enorme sucuri
que arrasta seu ventre sem pressa, indolente,
por entre toiças de canarana e piri.

Faz um calor dos infernos na selva tropical.
O tigre, a cobra, são imagens de delírio
a prenunciar, um e outra, beleza e mal.

É o amor esta flor, orquídea ou lírio?
Ou é – quem sabe – só loucura e turbulência?

Eu vejo o amor como um tigre de olho amarelo:
bonito e trágico, capaz de levar à demência;
arriscado, letal, porém belo, sem dúvida, belo…

A cobra é símbolo da prudência,
mas é também imagem da traição.
Cobra! Tigre! Dai-me a vossa sapiência!
Tirai de mim tod’essa aflição!

Aflição, sim, porque o amor é agonia
e gozo; é vinho e veneno;
a água e a sede; o tufão e a calmaria.

Diante do amor me vejo trêmulo e pequeno,
desamparado como a corça na floresta
a que o tigre se apresta a devorar.

Sou frágil presa.
Nada mais me resta
senão morrer de medo do amor
e, mesmo assim, vou me morrendo de amar…

Vejo o amor que chega
como um tigre com seus olhos amarelos.

Rui Guilherme