PEIXE-ANTÔNIO – Conto de Fernando Canto Para Aimoré Nunes Batista e seu Martins

Chovia para cima em nosso sítio ao pé do monte Galalau.

Nem eu nem meus irmãos entendíamos aquele prodígio. Era como se a água do poço evaporasse da terra, formasse nuvens baixinhas e fosse embora, deixando tudo seco por dias seguidos. Assim mesmo a gente não passava necessidade nem sede. Meu irmão caçula, que tinha frequentado a escola da cidade enquanto a gente trabalhava na roça e na criação de peixe em cativeiro, dizia que era uma tal de ilusão. Ilusão de ótica. Como era sabido esse meu mano…, mas eu mesmo não me convencia. Perguntava para o meu pai, ele nem… Só fazia dizer: – Arre égua, menino, vai trabalhar que é melhor. Deixa de perguntar besteira. Isso é assim mesmo desde que eu me entendo por gente.

Quando a gente descia a serra até a cidadezinha próxima para vender a produção e comprar mantimentos, o seu Toco do Armazém, que também era meu padrinho de batismo, perguntava pelo pai. – Está sem poder se levantar, com um tal de ácido úrico e dores no peito, eu dizia. – Leva esse remédio aqui pra ele, menino. Dizem que é muito bom. É um unguento feito do leite de uma árvore chamada amapazeiro, lá do Norte.

Aí ele perguntava: – Quêde os peixe-antônio? Ele mandou pra mim? Claro, eu dizia. Mandou essa cambada fresca aí. E lhe entregava uns vinte piaus, retirados do criadouro, enfiados numa penca de sisal. – Mas por que meu padrinho chama esses peixes de peixe-antônio? Ele ria e não dizia nada. Eu achava que era uma brincadeira dos dois velhos amigos.

Seu Toco era baixinho, mas me disseram que era muito valente. Já tinha posto uns jagunços para correr, com um sabre que ganhara de um cangaceiro verdadeiro dos tempos de Lampião. E tinha muitas qualidades: tocava uma sanfona melhor que o Luiz Gonzaga, diziam. Eu nunca o tinha visto tocar, mas como gostava dele, só fazia espalhar a história. Eu cheguei a perguntá-lo: – Quêde a sanfona, seu Toco? O São João este ano vai ser bom… Já está meio frio lá na serra.

Ele dizia: – O fole tá furado, vou mandar consertar ou comprar outro assim que Deus e o Padim Ciço me permitir. Era mais uma conversa mole de quem fica enrolando e mascando tabaco. Quando não tinha sacos plásticos o seu Toco nos aviava compras a varejo com papel de embrulho. Eu ficava besta de ver a agilidade dele enrolando os dedos no papel até a mercadoria ficar fechada e não abrir tão fácil.

Enquanto eu tirava uma prosa com ele, meus irmãos ficavam brincando e passeando pela praça. Certa vez o caçula veio chorando porque um rapazote chamou todo mundo da minha família de mentiroso. Era um molecão invejoso que só. Fui tomar satisfação e acabei brigando. ]

A gente se feriu todo rolando pelo chão até nos apartarem. Já em casa minha mãe lavou minhas feridas com água e tintura de jucá, que dói que só uma peste. Mas nada disse a meu pai, senão ele ia se enfezar.

Ficou latejando na minha cabeça as palavras do rapazote brigão. Na semana seguinte fui novamente à cidade e perguntei ao meu padrinho por que ele tinha chamado a gente de mentiroso. Seu Toco me chamou num canto, pediu para eu sentar em um saco de milho e disse para eu não ligar. É que corria a lenda que no nosso sítio tudo era muito maluco. E por cima ainda tinha essa história de chover para cima e outras conversas de mentiroso.

– Mas não é mentira, seu Toco. Eu mesmo vi muitas vezes esse fenômeno, disse-lhe. Ele me olhou, me olhou, me olhou no fundo dos olhos e eu sustentei olhar. – Bom, então tu sabes dos peixe-antônio, hem macho?Sei não. Só ouço o senhor falar, respondi. – Então pergunta pro teu pai, diz pra ele que já é hora de tu saber. Levantou-se, deu três tapinhas nas minhas costas e mandou eu ir embora.

Subi a serra com a fubica gritando e esfumaçando de óleo queimado. Meu pai parecia adivinhar, pois estava me esperando a cavalo na porteira do sítio. Antes que eu falasse, ele fez um sinal e disse: – Vamos lá em cima do monte Galalau.

Montei na garupa do cavalo e fui com ele pela estrada íngreme, passando dos limites que até então conhecia. Ficamos sentados até o pôr-do-sol. Ele não falava nada. Fez uma fogueira para amenizar o frio e disse para eu ficar em silêncio. Eu obedeci. Não dormimos. O céu tinha tantas estrelas que pareciam mosquitos brilhosos rondando em nossas cabeças.

Eu já estava agoniado com o silêncio do meu velho pai, aquele homem forte que falava sempre o que e quando queria, barulhento e alegre com os filhos. Eu era o terceiro. Os dois antes de mim já tinham, como se diz, batido as botas há tempos. Agora eu era o varão e a alegria dos meus pais, e responsável pela criação de mais cinco, quatro homens e uma mulher, já que ele só vivia doente e só melhorava com os remédios que o seu compadre Toco dava para ele. Minha mãe até hoje chora por essa perda, do tempo em que moravam na caatinga, nos cafundós do sertão de meu Deus.

A noite fria custava a passar e só se ouvia o crepitar da lenha no fogo e os silvos das estrelas cadentes. De repente começou a ventar e a chover para cima uma água vaporosa, como a formar um rio de nuvens escuras bem em cima das nossas cabeças, onde as estrelas desapareciam. Meu pai ficou de joelhos e disse: – Obrigado, meu Santo Antônio. Então começaram a cair piaus sobre nós, se debatendo no chão e uns já se assando na fogueira, que resistia à fina chuva. Eu confesso que fiquei maravilhado com aquilo. Meu pai ria e me dizia: – Tu tá vendo, meu filho. Isso é a realidade do nosso sítio. Eu fiz uma promessa pro Santo salvar tu e o compadre Toco da peste da fome que matou teus irmãos e todos os filhos dele lá no agreste. Antônio me fez casar com esta terra prodigiosa onde reconstruímos nossa vida. Fiz uma capela pra ele com o suor do meu trabalho e do meu compadre, que também é meu primo, e o Santo ainda me recompensou com isso que tu estás vendo. Meu pai ria, dançando um xaxado inexistente, arrastando as sandálias como se estivesse em uma festa. – Ah, a sanfona do compadre Toco agora, dizia, se esbaldando de rir. Nem parecia que tinha gota.

Comemos uns peixes-antônio assados e guardamos a maior parte em uma saca que ele levava no cavalo. A noite passava e o meu pai não parava de me contar fatos de sua história. O segredo dele acabou ali, no monte. Agora era todo meu. Mas ele me disse que estava esperando uma coisa. Ficou em silêncio como antes. E o tempo passou.

Antes de amanhecer choveu para cima novamente. Ficamos molhados na madrugada e a fogueira se apagou. Ouvi o estrondo de um trovão, o cavalo relinchou de medo e uma avalanche de peixes piaus rolou morro abaixo. Consegui puxar o cavalo, mas meu pai ficou soterrado para sempre naquela terra que há tempos lhe dera o sustento e alimentara sua alma generosa.

A PULSEIRA DE DAS DORES E SEUS VIZINHOS VULTURINOS – Conto de Fernando Canto

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Conto inédito de Fernando Canto

Inexplicavelmente Das Dores perdeu uma pulseira talvez próximo a sua casa ou quem sabe dentro do quarto. Joia de ouro com pedras de brilhantes, herança da mãe que herdou da bisavó que ganhou como pagamento do aborto feito em segredo na sua patroa branca nos meados do século passado. Uma relíquia familiar que atravessou mais de setenta anos na família e nunca foi vendida, mesmo com tanta crise na economia do país e a pobreza da família.

dsc02094– Umbora, gente. Vamos olhar em baixo da cama. Laurindo, procura em baixo do assoalho. Joana, vê lá na frente da casa. Luarana, quem sabe não perdi quando a Lalata me brincou ontem à noite quando cheguei do batalho… Ah, essa cachorra é de morte… Mesmo assim eu gosto muito dela, não sou que nem vocês que vivem brigando com ela e nem banho dão na bichita. Eu, hem?!
– Bora, bora. Todo mundo procurando. Essa pulseira é relíquia de família que graças a Deus nunca a gente precisou se desfazer dela. Foi penhorada só uma vez na Caixa, num caso de doença com o pai de vocês.b061141b42d0797f3f3ced36f41a37df

E todos se esmeram nessa procura que já dura um dia inteiro de sábado e já entra pela noite, atraindo a curiosidade dos vizinhos. E Das Dores conta como foi que a perdeu por duas vezes e que fez promessa para São Judas Tadeu. Religiosa que só ela, na primeira vez vinha da missa na garupa da bicicleta do marido, o Júlio, que Deus o tenha em bom lugar depois que morreu duma doença que todo mundo acha que só dá em alcóolatra, uma tal de cirrose hepáti.

santinho-de-so-judas-tadeu-milheiro-pagar-promessa-7834-MLB5285907269_102013-O– Hepática, mamãe, conserta Luarana.
– Não repare, filha, é que fico nervosa quando lembro que seu pai nunca bebeu e nunca fumou. Bom, mas eu dizia que quando descíamos a ladeira da Rua São José batemos num buraco. Eu nem senti a falta da pulseira. Só dei conta quando chegamos em casa. E era umas nove horas da manhã de um Domingo de Páscoa. Eu logo acendi uma estearina e prometi a São Judas Tadeu que se ele me achasse a pulseira eu ia mandar rezar uma missa de ação de graças no dia dele. Pois não é que Júlio fez o percurso ao inverso e a pé, e logo achou a joia na beira de uma poça de lama no meio da ladeira? Que alívio! Deus me livre se perdesse ela. Eu ia chorar um mês, mas só chorei um tiquinho até o Júlio chegar. Nesse mesmo ano, por ocasião do batizado do Laurindo, eu perdi a pulseira de novo acho que na hora em que ele chorou na pia batismal quando o padre colocou sal na testa dele, ministrando o Santo Sacramento. Ele espernegava tanto que tive que tirar ele do colo da comadre Tibéria, a tua madrinha, seu porcaria. Vê se vai fazer uma visita pra ela uma hora dessas. Toda vez que ela me encontra reclama que tu nem olhas mais pra ela quando passas na frente da casa dela. Isso é que é… Esses meninos de hoje não respeitam mais os mais velhos.images (7)

– Bom, mas aonde é que eu estava mesmo?
– No colo da minha madrinha, mãe.
– Ah, mas por quê?
– Na pia batismal, mãe… A pulseira.
– Sim, claro, a pulseira. Essa minha cabeça mesmo…! A pulseira já tinha sido consertada lá no Serápio, aquele ourives crioulo que nem nós, que também é corredor de bicicleta. Não sei nem se ainda vive… Mesmo assim ela se perdeu ali, ó. Ali dentro da igreja do padroeiro. Eu chorei muito, mas não me desesperei. Fui chegando em casa e logo fazendo promessa pra São Judas Tadeu. Eu disse pra ele: Olha, São Judas, o senhor que é o padroeiro dessas causas impossíveis veja se dá um jeito de achar minha única e verdadeira joia. Prometo que se achar vou dar o seu nome ao meu próximo filho. Mas quem nasceu foste tu, Luarana. Sim. Eu não podia desconfiar do padre, coitado, muito menos dos padrinhos. Mas ficou aquela situação constrangedora, todos me olhando como se dissessem “não fui eu”.tumblr_inline_mvzrmcKMN11qje4ic

Eu costumo dizer que São Judas não falha. Não é que quarenta e três dias depois e quarenta e três velas acendidas a pulseira apareceu depois da missa das sete de domingo, em cima do altar. O padre não me disse nada porque o confessor deve guardar os pecados dos fiéis, mas uma forte intuição me dizia que quem achou a pulseira e a escondeu com outras intenções foi um coroinha que eu conhecia, pois o danado nunca mais foi ajudar o padre na missa.coroinha

Das Dores fala do seu apego à pulseira, da história da pulseira, do que sentia nas ocasiões especiais quando devia usá-la. E vai relembrando fatos e vai mandando nos filhos na busca desesperada, pois já é noite e os vizinhos, adultos e crianças, vasculham a área solidarizando-se com ela. Todos correm para ajudá-la com o consentimento febril da dona da casa. E vão descobrinVELHO BAÚdo coisas e velhos segredos familiares nas cartas e objetos familiares há tempo acumulados nas gavetas das cômodas, nos guarda-roupas, nos escaninhos da estante e até em um velho baú de mogno, uma devassa permitida aos curiosos da rua.

Como a noite avança alguém lembra que também é véspera do ano novo e que agora estavam mais preocupados com a ceia e o brinde do réveillon do que procurar um objeto perdido. Mas como é quase ano novo, os vizinhos, adultos e crianças, já fazem a festa em sanha vdownload (3)ulturina na cozinha de Das Dores, abrindo a única garrafa de frisante e o porco assado preparado pelas suas mãos no dia anterior. Ela se levanta de onde estava, vê a casa toda revirada, senta-se na poltrona da sala, pálida e com a respiração dificultosa. Depois chama os filhos e os vizinhos com ar de envergonhada e mostra a pulseira, balançando-a e deixando o ouro brilhar pelas luzes da velha árvore de natal do canto da sala, quase desmontada pela curiosidade alheia. Todos perguntam em uníssono.

0,,12176095-EX,00– Onde ela estava?
– Aqui no meu bolso, ela diz. O tempo todo no meu bolso.

E cai para frente estrebuchando, na hora da passagem do ano, esquecida de todos e absolutamente morta naquele momento ilógico, quando todos comemoram o ano vindouro ouvindo e vendo os fogos explodirem, colorindo o céu lá para as bandas da Beira-Rio.

De Nazaré (conto de Ronaldo Rodrigues)

De Nazaré estava passando em frente ao bar e os outros estivadores assoviaram alegremente, chamando-o para um trago.

Bom de copo como de trabalho, De Nazaré pensou um pouco e concluiu que um convite feito com tanta sinceridade e alegria não poderia ser recusado.

Deixou a pesada cruz encostada ao lado do bar e abriu os braços para os amigos.

Todos gostavam de ouvir De Nazaré cantar, mas ele só fazia isso quando estava bastante embriagado. Então bebeu, de uma só vez, meia garrafa de pinga.

A bebida explodiu quente nas engrenagens cerebrais e despertou o cantor apaixonado que De Nazaré sonhou ser em sua juventude. Abriu a garganta, libertando o pássaro da voz, e fez com que todos ali esquecessem, por alguns instantes, a miséria quotidiana e a coroa de espinhos que eram obrigados a suportar.

Mais do que uma simples distração, as músicas eram um alívio, acentuado pelo entorpecimento da cachaça. Uma trégua para quem tem que colocar a carga do mundo nas costas e encher os porões dos navios.

Depois de algum tempo de cantoria, De Nazaré resolveu ir embora, continuar seu amargo ofício. Era quatro horas da madrugada e ele tinha que carregar mais algumas dezenas de cruzes antes do amanhecer. Homem de palavra, De Nazaré honra os compromissos e nunca deixou uma entrega por fazer.

Os outros estivadores bem que queriam que De Nazaré continuasse a cantoria, mas sabiam que eles mesmos teriam que se retirar para enfrentar o batente. Voltaram à realidade e se foram, deixando os restos de peixe frito para os cachorros do cais.

Sozinho novamente, De Nazaré sentiu os pingos da chuva que começava a cair. Tomou o último gole e, sob a precária iluminação do poste, recolocou a cruz no ombro e caminhou em direção à ponte de tabuinhas irregulares que levava aos navios ancorados na escuridão.

Ronaldo Rodrigues

A noite dos peixes – Conto de Ronaldo Rodrigues

Conto de Ronaldo Rodrigues

A Assembleia Extraordinária convocada pela Grande Ordem dos Peixes não foi atravancada por discursos prolixos ou questões de ordem burocrática. Terminou em poucos minutos, com os Peixes optando por uma firme tomada de decisão frente aos atos praticados pelos Pescadores.

Foi elaborado um manifesto em que os Peixes reclamavam da violação de um antigo pacto firmado pelos ancestrais de Peixes e Pescadores. O pacto celebrava a harmonia entre ambos os lados e determinava a proibição da pesca de filhotes pequenos e de fêmeas grávidas.

Em seu manifesto, os Peixes sugeriam vários caminhos para a conciliação, mas deixavam clara a intenção de invadir a aldeia, caso os Pescadores não fizessem valer os itens do pacto.

Na tarde daquele mesmo dia, o mar levou até a praia o envelope timbrado da Grande Ordem dos Peixes. O Chefe dos Pescadores, obrigado a interromper a sesta para ler o manifesto, ficou com o humor ainda mais azedo.peixes2

O manifesto foi lido entre um bocejo e outro e logo o Chefe dos Pescadores desatou a rir estrepitosamente. As gargalhadas se multiplicavam à medida que os outros Pescadores tomavam conhecimento do teor do manifesto.

Em meio à onda de zombaria, sem conter as gargalhadas, o Chefe dos Pescadores enfiou o manifesto no envelope, escreveu displicentemente que Peixes não escrevem manifestos, e o devolveu ao mar.

**** **** *****

No dia seguinte, os Pescadores voltaram a violar o pacto. Ao retornarem da pescaria, trouxeram em suas redes, entre os Peixes adultos, que era lícito pescar, uma grande quantidade de filhotes pequenos e fêmeas grávidas.

Os Peixes ficaram convencidos de que não adiantaria qualquer esforço para evitar o confronto. Reuniram-se rapidamente, formando um numeroso exército, e conceberam um plchuva-de-peixeano de ataque para aquela noite.

**** **** *****

Na aldeia, os Pescadores faziam uma grande festa, comemorando o sucesso da pescaria, e não perceberam um estranho rumor se elevando pouco a pouco. Os Pescadores só puderam ouvir quando o rumor se transformou num barulho ensurdecedor, que ultrapassou as ondas sonoras lançadas pelos alto-falantes que animavam a festa.

Os Peixes vieram navegando pelos ares e o atrito de seus corpos com o vento era o que produzia aquele barulho, anunciando um trágico desfecho.

Os Peixes continuaram sua marcha, investindo contra tudo e todos, derrubando portas, destroçando paredes, derrubando casas.

Enredados pela violenta tempestade de Peixes, os Pescadores corriam de um lado a outro da aldeia, na vã tentativa de defender suas famílias e propriedades.

Após alguns minutos de ataque, que aos Pescadores pareceram horas, os Peixes voltaram ao mar, deixando na aldeia uma trilha de sangue e destruição, onde se retorciam corpos agonizantes.

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Ainda hoje, decorridos muitos anos, se escuta na aldeia-fantasma o lamento de dor que os Pescadores deixavam escapar, tentando salvar seus filhos pequenos e suas fêmeas grávidas.

Pode dar o cano quem quiser porque não vou mais correr atrás de ninguém – Conto de Ray Cunha

Conto de Ray Cunha

Não havia sido um dia de sono restaurador para Amarildo Teixeira. A periodontite o torturava, de modo que passou o dia em claro. Foi trabalhar azedo. Era garçom no Chorão da Asa Norte.

Lá pelas seis horas da tarde apareceu uma cliente, uma senhora elegante, trajada com sapatos altos de couro preto, meias e vestido também pretos. Bonita, de belos cabelos negros, quase longos, era patente que estivesse de luto, pois acumulava duas alianças no dedo anular esquerdo. Pediu o cardápio e passado um momento perguntou se a caldeirada de frutos do mar dava para duas pessoas.

– Dá para quatro, senhora – informou o garçom Amarildo.

– Traga, então.

– E para beber?

– Nada. Fico sempre muito cheia quando bebo alguma coisa durante o jantar.

Naquela hora não havia quase ninguém no Chorão. Estava tudo silencioso e agradável. Tudo bem arrumadinho, à espera da turba que não demoraria a chegar noite afora. Depois que o garçom Amarildo serviu a caldeirada de frutos do mar, pôs-se a observar a mulher. Estava desconfiado de alguma coisa. Não sabia bem de quê. Ela pediu bastante pão francês e Amarildo serviu-lhe quatro pães. Um, ela comeu num relâmpago.

O impressionante é que a caldeirada dava mesmo para quatro pessoas normais e ainda sobrava. Era uma terrina enorme, cheia de um caldo cheiroso e saboroso, com grandes pedaços de peixe, moluscos e toda sorte de crustáceos. Amarildo Teixeira não acreditou no que viu quando ela o chamou para pedir a sobremesa. A terrina estava seca, o arroz e o pirão foram devorados e os pães sumiram.

– Queijo com goiabada! – ela disse.

O garçom Amarildo ficou confuso. Foi buscar a sobremesa. Quando voltou, a bela viúva sumira. Amarildo correu para a rua e ainda pôde ver o vulto na esquina, iluminado pelas primeiras luzes da noite. Não pensou duas vezes. Saiu no seu encalço. Ao alcançar a esquina, a mulher estava à sua espera e atirou-lhe uma pedra na cabeça. O garçom escorregou e caiu. Levantou-se. Ela desaparecera. Amarildo Teixeira voltou para o restaurante. A pedra fez-lhe um galo. “Ainda bem que não foi na testa” – pensou, apalpando o calombo no lado da cabeça. “Não vou nem contar essa. Ninguém vai acreditar. É melhor não contar. O pior é que eu vou ter que pagar a conta daquele animal; me deu o cano e quase quebra minha cabeça. Como é que pode?”

De volta ao Chorão, Amarildo Teixeira foi ao banheiro. Muita gente havia chegado e o gerente estivera atrás do garçom. Quando Amarildo saiu do banheiro havia um sujeito numa das mesas de sua responsabilidade. Um sujeito grandalhão, um verdadeiro mastodonte, olhando atentamente o cardápio. Aproximou-se cautelosamente.

– Escute aqui, meu jovem, esta caldeirada de frutos do mar dá para duas pessoas? – perguntou.

– Dá para quatro – disse Amarildo Teixeira.

– Quero uma. Traga logo uns pãezinhos até chegar a caldeirada.

“Não é possível que esse cara saia correndo também. Não acredito! Até porque não agüentaria correr com esse corpanzil” – pensou Amarildo, levando quatro pães franceses para o freguês.

– Putz, ô meu, só isto? Traga uns dez – pediu-lhe o homem, passando manteiga num deles e comendo-o em duas bocadas.

Amarildo Teixeira serviu a terrina de caldeirada olhando fascinado para o homem. “É um animal de bruta raça” – pensou.

O freguês era bom de boca. Em pouco tempo não restava mais nada na mesa que pudesse ser comido.

– Ô, meu, queijo com goiabada! – disse o homenzarrão.

O garçom Amarildo foi buscar o que o sujeito pedira. Serviu a sobremesa; o tipo devorou-a em segundos e pediu outra. Após comer quatro porções de queijo com goiabada o gajo não deu tempo para nada. Ergueu-se subitamente da mesa e partiu para a porta, ganhou a rua, e correu em direção à Avenida W3 Norte, com Amarildo Teixeira atrás. Mas o freguês tinha fôlego de peso pesado. Alcançou facilmente o calçadão da W3 Norte, onde estacou abruptamente. Amarildo aproximou-se dele e recebeu um cascudo na cabeça que o fez cambalear e cair. Levantou-se e retrocedeu. O brutamontes partiu para cima dele. Alcançou-o e lhe deu uma rasteira, fazendo o garçom se acabar na calçada. Levantou-se às pressas e correu o quanto pôde para o Chorão. Quando se sentiu em segurança olhou para trás e viu o mastodonte atravessando lentamente a W3 Norte. Olhou para si e viu que ficara bastante estragado.

– Aquele desgraçado quebrou a minha cabeça só com um cascudo. Acho que tinha um pedaço de ferro na mão. Agora vou ter que pagar duas caldeiradas de frutos do mar e mais quatro sobremesas – choramingou. – A melhor coisa que eu faço é ir embora para casa.

Mas Amarildo não pôde ir embora, pois faltaram três colegas seus e na sua ala havia dois esgalamidos querendo caldeirada de frutos do mar.

“Droga, droga, droga” – disse de si para si, e foi buscar a primeira terrina, decidido a não correr mais atrás de ninguém, nem que tivesse que pagar a conta com sua poupança na Caixa Econômica Federal.

*Contribuição de Fernando Canto.

O MAMELUCO – Conto de Luiz Jorge Ferreira

O Cenário

Paredes de reboco manchado.
Fios dependurados , talvez de antena de TV, talvez fiação de um rádio antigo, fora de uso.
Um pano esfiapado servindo de porta para a saída dos fundos.
Um caco de espelho preso por dois pregos na parede.
Uma mesa tosca, sobre a qual meia dúzia de copos sujos de nada.


Uma geladeira de meio metro sobre meia dúzia de tijolos, com porta fechada com o auxílio de um tamborete.
Um fedor de suor que por ficar difícil explicar no Cenário, contrapõe-se então muitos frasco vazios de desodorantes espalhados, e alguns largados sobre a caveira da cama que jaz no fundo do espaço- cozinha-quarto, sobre o qual repousa um gato colorido de marrom e branco.

O personagem é Álvaro, na verdade, Seu Álvaro, oriundo do interior do Amapá, na verdade um povoado dito Calçoene, criado por proscritos, ingleses, franceses, holandeses, e brasileiros.
Moreno, rosto sulcado pelo sol, muitos anos a cata de peixes, Castanha do Pará, plantas medicinais, para contrabandear para a Europa, em meio as caixas com as cobras venenosas, e outras espécies peçonhentas.

Daí as cicatrizes no braço, e as marcas de cortes para salvar sua vida, ferindo a faca o local e criando uma falsa hemorragia para que chupando com a boca cheia de tabaco mascado, o filete misto de sangue e veneno,diminua sua ação mortal, mas sobrevivido taí em pé, encorpado, puxando da perna direita, e o andar marcando no chão da terra ribeirinha, sempre úmida ou molhada, um orifício de pouca profundidade, onde depois de algum tempo, a plantado pela própria perna postiça, germinará cânhamo.

Mameluco.
Subindo o rio de canoa, por diversas vezes, desembarcara da embarcação, e fizera mira na direção dos gritos.
Algum desafeto destes que deixará sangrando nos povoados, nos cabarés, nas desavenças. Apelidaram-no de Mameluco.


Fora ao mundo, agora seu mundo era este espaço entre estas quatro paredes que nada mais eram do que a lateral de duas casas abandonadas, e a traseira de um outro barraco, e a portinhola que o pano velho e encardido, definia a fronteira, com o mundo lá fora.

Cacoentes que cultiva…o olhar fixo em quem consigo fala, um tique de enfiar a unha do polegar entre os dentes da frente, e a Mantra de repetir aleatoriamente em Nagô, a oração de São Jorge, que aprenderá com os capuchinhos, em Angola.

Os outros personagens, estão espalhados em seus retratos, e recortes de Jornal que colecionou ao longo do tempo, e das viagens.

As vezes o gato deita e se espreguiça sobre eles, então ele o espanta, imitando com um assovio entre os dentes, o silvo de uma jararaca, o que faz com que Jirau, este é o nome do gato, em homenagem ao lugar onde foi encontrado, no garimpo do Jari, debaixo de um Jirau.
Jirau…este jirau como todos os jiraus era um lavatório feito de madeira, próximo a um curso d’água para que a água usada na lavagem da louça usada escorra sem ficar empoçada perto da casa para não se atrair mosquitos e pernilongos.  Ver os retratos, e os recortes… Da o gancho para que fatos sejam relembrados.


Quando vai remexer neste seu tesouro… Ele põe o espelho, em um ângulo que possa ver refletido na porta clara da geladeira, suas costas, onde guarda uma cicatriz, resultado de várias brigas e açoites dados como castigo para quem como ele fazia arruaças, arrumava brigas, e não temia o Corpo Policial, encarregado da ordem.
Cicatriz de aproximadamente 12 centímetros, descendo do ombro direito, para o meio da costa, sem atravessar o limite do meio.


Fora semelhante a um Escorpião, depois de uma queda do dorso de um novilho, se assemelhará, a uma lagartixa, mais tarde depois que sofrerá uma queimadura com querosene de barca em Barcarena, assemelhou-se a um puraqué, e com a insistência do Jirau o arranhando quando deitado de bruços, na sesta da tarde, sagrada para ele…


Um Morcego.
Porque mora ali…
Onde é este ali.
O que quer alcançar com todas as adversidades que sente lhe obstruir a estrada em sua vida.

Nada…

Por nada chegou a este lugar quando a extração de bauxita estava no auge…
E a lucratividade movia uma engrenagem de luxo e fartura, o que fazia dos aventureiros que como ele ali chegaram, abastados e novos ricos.


Nas ruínas onde morava existirá um Hotel Cassino.
Aquele pedaço de pano roto servindo de porta, fora o lençol de uma das Suítes Presidenciais, houvera duas.
E o cinzeiro ali sobre a tosca mesa, e a caixa com bailarina servindo de escora ao pedaço espelho, um adorno ao lado do quadro de dependurar chaves dos apartamentos, no saguão.
Lá fora o saguão, abrigava os morcegos, que vez por outra em rasantes pelo quarto, se espantavam com o seu as suas costas.

Mameluco.
Circula pelas ruínas, e flerta com as coisas que viu, e enamorado com as estrelas da Broadway seminuas nos recortes de jornal, e cantarola canções do meio do ano, marchas de carnaval, todo o tema de Carruagens de fogo…assovia em Mi menor.
Não há álcool.
Mas se embriaga.
Com raízes e beberagens, e quando faz sobe no palco agora um monte de ferragens e canta e dança como um Fred Astaire, desviando se de cipós e ramos tombados.

A noite quando sai a lua, alvoraçam os habitantes da tatuagem, e o incomodam muito, por isso está sempre com o corpo dolorido, pelas noites mal dormidas, e o sono assustado pelo alvoroço das figuras no dorso, todas em uma só, a dependerem da posição, em que a luz da lua, única ali incide

Segundo ato. Toca ‘Belém é Bíblica’ de Milton Hatoum/ e Gandi…cantada por Gandi.
Descem as cortinas, explodem os aplausos. 12 anos encenando o mesmo espetáculo, muitas vezes automaticamente, a dizer as falas, como se fosse ele o narrador, enquanto o personagem permanece calado.

Ele vai até o camarim, apanha a escova de cabo longo, entra no banheiro, e esfrega a maquiagem feita pelo maquiador, e vê escorrer pelo ralo uma profusão de cores, criando um arco-íris líquido que se esvai até ficar só a espuma perfumada do sabonete líquido.

Sobre a cadeira, o gato de feltro, caco de espelho, o punhado de jornais, empilhados e presos, e a barba mal feita aplicada a esmo, sobre a calça de brim desfiada em ambas as pernas, e o radinho, descascado com produtos químicos, aos pés da cadeira o pano que serve de porta , e num último gesto ele arranca e sai.

Londres esta esfumaçada, ele anda a esmo por Leicester Square, e ao seu lado passam dezenas de pessoas cobrindo pescoço e meio rosto, com a aba de seus sobretudos, se transformam em figuras a semelhança dos extras em filmes de Jack O estripador, o que chega a lhe assustar quando olha-o nos rostos e não descobre luz em seus olhos, mete a mão nos bolsos como a procurar, cigarros, isqueiro, canivete, encontra moedas, que usa para por na maquina e retirar algumas gomas de mascar.

De onde esta já pode avistar o prédio onde mora, um antigo deposito de livros, cujo o interior é dividido por ele usando os próprios livros ali deixados pelo Espolio que dividiu as propriedades após a morte de Sir Herald Finn. Dividiu entre velhos cães, anciões solitários, e artistas de teatro e cinema para quem a fama foi só uma palavra encontrada nos textos decorados.


Cartazes dependurados na frente das fachadas de Cinemas, trazem as fotos de Marylin Monroe, o perfil do Zorro, o torax de Tarzan…apressa os passos porque o frio começa a incomodar, caminha e esmigalha a bagana de um cigarro Turco no bolso direito da calça.


Anda o mais rápido que pode, sessenta e três anos, estatura mediana, dependente de Vodka e Gim, pensa no sanduíche de salame feito de manha que debaixo de dois pratos de alumínio emborcados um sobre o outro, espantara a fome que lhe roe as entranhas.

Nada mais no seu testamento, ali imaginado…Um ator sem nada. A não ser textos a decorar. Volta de súbito, vai ate a porta já as escuras do derradeiro Cinema localizado um pouco antes que a avenida se extinga, e cospe no rosto de Marylin Monroe, pega do chão um toco de cigarro fumado e risca com o carvão restante na ponta.


Deus salve a Rainha. Urina sobre o Cartaz.Escrevendo em inglês…com o jato fino e fraco interrompido por dor ardida, a todo o momento…Queen Save… Mameluco.
06.36 hora de Greenwich…pula de encontro ao solo, na mão cheia de ingressos devolvidos de espetáculos antigos fadados ao fracasso.

De manhã mais tarde… nos jornais criticas elogiando seu desempenho por doze anos com a fenomenal peça O Mameluco. Adaptada para a língua inglesa pelo não menos premiado Sir Herald Finn… ate que cai a tarde, a noite e Londres fica esfumaçada demais, ate para os gatos de feltro aguardando o sinal para ficar imóvel sobre o sofá descascado.

* Do livro “O Chalé” – Scortecci Editora – 2018.

PORCA – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Eu insistia com ela todas as noites de lua cheia.

– Para com essa história de se transformar em porca, mulher. Não aguento mais esse cheiro de lama.

Era um segredo nosso que tive de aceitar por pura dependência financeira, desde que nos casamos. Mas ela não parava. Queria porque queria parecer melhor que a Velha Xambica, do sítio do seu Ladislau, vizinho ao nosso, que tinha o mesmo fado dela e se transfigurava em Matinta. As duas concorriam para ver quem assustava mais as pessoas desprevenidas nas noites enluaradas da minha cidadezinha.

Um dia eu estava num couro doido, numa pindaíba roxíssima. Era meu aniversário e eu vivia sempre cobrado pelos meus amigos do boteco da Waldirene Boca de Tambor.

– Quando é o churrasco, porra? Perguntavam o tempo todo, me pressionando pra valer.

Eu dizia que ia depender da indenização que estava para receber do frigorífico que fui botado injustamente pra fora, sem justa causa. O processo estava tramitando há tempos, sempre acompanhado de perto pelo iminente causídico Dr. Robário Paladino, que me garantiu o recebimento para logo, antes do fim do mês.

Na véspera do aniversário eu não aguentei mais o fedor da minha galega. Ela havia voltado de um Passeio de Assustamento da lua cheia e estava no quintal grunhindo e chafurdando na lama do chiqueiro, antes de voltar a ser mulher. Ela dizia sempre que a transformação era um processo doloroso, mas que tinha prazer em fazer sempre, pois se achava renovada toda vez que isso acontecia.

Ela estava lá. Tinha acabado de chegar. Eu fiquei pensando, pensando, pensando… peguei a peixeira e a enterrei no pescoço dela por trás. A porca revirou os olhos e o sangue esguichou com tanta força que me sujou todo. Estrebuchou e deu três longos e desesperados grunhidos. Enrolei a boca e o focinho com uma corda até ela parar de se debater. Depois coloquei o corpo em um camburão de água fervente para raspar os pelos, e, como bom açougueiro, comecei a preparar o corpo do animal para fazer um belo churrasco. Os raios do dia chegaram com uma intensidade que me feriu os olhos.

Fui ao boteco da Waldirene Boca de Tambor e convidei a rapaziada malandra pro churrasco. E ainda dizia, brincando:

– Levem um presente, seus vadios. Cheguem perto do meio-dia pra me ajudarem a assar.

Cada um se servia como podia. Eu havia trocado os miúdos da porca por cachaça e farinha com a Wal. Todo mundo se refestelou e ficou de bucho cheio. Tomaram cachaça à beça, arranjaram uns tambores e o batuque correu o dia todo. Quem chegava pro churrasco também trazia uma bebida. Mas eu não tive coragem de comer nenhum pedaço de carne, talvez em respeito à minha falecida mulher.

Já era quase meia noite e todo mundo já estava “calibrado”, tomando cachaça e dançando uns sambas de cacete. Ninguém notou a ausência da minha galeguinha, só o Ambrósio, saliente que só ele. E eu lhe disse que ela tinha ido à casa da mãe doente lá em Mazagão.

A lua rompeu uma nuvem escura e iluminou mais ainda o terreiro da festa. E o batuque ensurdecia e ecoava em toda a área.

Mas tudo parou de repente quando uma mulher idosa com bico de pássaro surgiu perto da mata onde ficava o chiqueiro da minha esposa.

– Quero tabaco, ela dizia. Quero tabaco pra levar pra minha comadre.

Os convidados se entreolharam e o medo tomou conta de todos. Atônitos viram seus ventres se mexerem involuntariamente e em todos eles uma voz dizia:

– Onde está minha costela? Cadê minhas coxas? Quede meu peito?

A lua parecia descer do céu de tão grande, naquele momento de desespero dos convidados. E todos eles saíram correndo para o mato se transformando a cada passo em caititus, porcos-do-mato, queixadas e javalis.

A velha Matinta me olhou de soslaio, cuspiu pelo bico de pássaro um cuspo negro de quem masca tabaco. Eu caí de costas no chão e tive que sustentar com os braços até de manhã a lua quase cheia que parecia ter caído em cima de mim.

RIONDA (conto de Ronaldo Rodrigues)

Linda Imagem Mulher por sol

Rionda era terrível. Sempre mastigava os chicletes antes que eu terminasse de comer doce de banana.

Rionda era curvilínea, retilínea, mas deixava ver em sua chapa de raio-x um certo acréscimo de carnes em seus glúteos, futuramente.

Rionda era a única que sabia o enigma. Saqueava o cemitério em busca de esmeraldas e só ela tinha o poder de perscrutar em cada olho caído nas covas uma faísca de vida:

– Venham para fora, irmãos!

Rionda não queria que o mundo acabasse na próxima esquina. Ela esperava que a vida fosse forte e tênue e guerreira e diáfana. E que coubesse num suspiro.

Ronaldo Rodrigues

Teresa (em preto e branco) – Tãgaha Soares

 

 
E foi na batata da perna de Teresa que escrevi as minhas primeiras palavras na língua nativa. 

No princípio, ela até gostou, ficou lisonjeada quando lhe disse que eu estava escrevendo um livro nela. Depois, me recusava, porque eu só procurava seu corpo para escrever…
 
O livro já estava pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou…
 
Sem ela, perdi o fio do novelo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco…
 
Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom.
 
Então, fui procurar as putas…

O Dia em que eu chorei diante de uma tela de Antônio Bandeira – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

No dia em que eu chorei diante de uma tela de Antonio Bandeira, no Museu da Universidade, fiquei até com vergonha do púbico presente. Chorei, como dizem, copiosamente (Até hoje não sei porque falam isso, mas desconfio que é porque uma lágrima copia a outra). Que vergonha! Era apenas uma tela abstrata que explodia em cores, excelentemente pintada pelo famoso artista plástico cearense. Uma tela que falava de uma chuva de neve na Europa, onde ele viveu. Nela, o branco e o azul predominavam sobre os outros tons.

Chorei tanto que o curador da exposição me convidou para chorar no banheiro. Como eu recusei, ele mandou os seguranças me botarem para fora.

E lá fora eu continuei chorando no calor, vertendo um choro esquisito, um choro que jamais chorei em outra exposição. Não que eu me lembre. E olha que eu era chorão. Mas dessa vez eu estava mais sensível que todas, mais sensível do que naquela vez no Louvre quando inevitavelmente me derramei em prantos diante da mais bela e magnética tela que já vi em toda a minha vida: a Gioconda, de da Vinci.

Malditos! Sempre me botam pra fora das exposições de obras de pintores famosos.

Malditos! Não sabem que meu choro não é fingimento, pois eu não sou ator e muito menos produtor de pegadinhas para a televisão.

Malditos! Insensíveis! À flor da epiderme estão ouriçados pelos, e no peito bate um coração magoado e eles não sabem disso. Vão logo expulsando a gente e mandado olhar as pinturas de grafite, como se os pintores das ruas não soubessem pintar em sua linguagem pura e não acadêmica.

Bandeira é Bandeira, não o poeta, mas o pintor, este que eu só conhecia de ver catálogos impressos ou fotos repetidas em revistas de arte.

Antonio Bandeira não é o ator espanhol muito menos o dono do bar da esquina, mas o artista que me convida e me move a seguir seus quadros até chorar de paixão, pois nos seus traços eu nasço, vivo e morro na dimensão dos pigmentos e reentrâncias de cada pincelada decidida bruscamente. Ao olhar suas telas explodo minhas memórias e paixões de um tempo em que me encontrava entre o poder da escolha e o despoder de ficar ilhado em angústias. Um tempo de decisão de amar ou seguir, de me entregar ao insondável ou de viver. Contudo, meu sonho de viver era apenas uma paisagem tátil num horizonte tênue, enevoada pela ausência de razão com seu cromatismo cinza, que de repente encontrou na tela de Bandeira o dia nascente, a tarde e a noite iluminada. Por isso choro. E os curadores da exposição não deixam que eu me cure em nome da arte.

Malditos curadores!

Viagem de volta – Conto de Ronaldo Rodrigues

Conto de Ronaldo Rodrigues
Deixei um livro em cima da mesa e fui dar uma volta. Claro que ninguém roubaria um livro ali, naquele ambiente. Só se aparecesse a menina que roubava livros. Qual a minha surpresa quando retornei, ao constatar que o livro não estava lá! Olhei em torno, exercitando meu olhar sherloqueano, mas ninguém em volta parecia interessado em livros. E ninguém parecia capaz de roubar o que quer que fosse. Resolvi dar mais uma volta pelo navio. Esqueci de dizer que estava a bordo de um navio? Perdão. Às vezes esqueço de citar partes importantes de meus relatos. Alguns escritores são assim e, como sou assim, me sinto também escritor.
 
Na volta ao ponto em que deixei o livro, eis que o encontro em cima da mesa, como se nunca tivesse se ausentado. Fiquei mais intrigado ainda. Abri o livro e encontrei um bilhete com a seguinte mensagem:

“Não leve a mal, mas gostaria de concluir a leitura do seu livro, que achei muito interessante e me deixou surpreso ao descobrir alguém com o hábito da leitura, coisa bastante improvável em pessoas que costumam viajar neste navio. Deixe o livro em cima da mesa e vá passear, contemplar a paisagem do rio e da mata. Prometo devolver a cada vez que eu o emprestar”.
Foi o que fiz durante toda a viagem, cheguei a conhecer todos os recantos do navio e estender meu olhar por toda a bela paisagem. Minha curiosidade não foi suficiente para deixar o livro na mesa, me afastar um pouco e voltar subitamente para ver quem estava dividindo comigo o prazer das aventuras contidas no livro. Deixei o mistério tomar conta. Me pareceu que eu estaria quebrando um pacto se voltasse para flagrar meu companheiro de leitura.
Navegamos por três dias e os meus passeios pelo navio foram aumentando à medida que nos aproximávamos do porto de chegada. Queria que o leitor misterioso tivesse tempo de concluir a leitura. No último dia de viagem, achei o livro na mesa e novo bilhete: “Obrigado pelos momentos deliciosos que seu livro me proporcionou. Sem dúvida, tornou a viagem mais interessante. Que tal discutirmos o enredo do livro? Meu endereço na cidade em que aportaremos dentro de alguns minutos é…”.
 
Depois que aportamos, dei umas voltas pela cidade, tentando não pensar em nada daquilo. Mas não suportei o mistério e fui ao endereço indicado no bilhete. Conheci, enfim, a pessoa que pegava o livro emprestado. Era uma leitora, uma belíssima leitora. Nos conhecemos, discutimos a história do livro e de muitos outros livros e autores e temas e… Claro que nos envolvemos. E o mistério persiste até hoje.

Éter, Etéreo, Etecetera, Etc… (conto de Manoel do Vale)

Ponto no final da linha. O ônibus desliza preguiçoso de chegar.

Eu espero. Quieto.

O ônibus barulha. Resmunga das juntas. Faz fumaça. Tá velho.

Se fosse uma Maria Fumaça teria um charme todo de cinema aquela cena.

Mas é apenas um ônibus velho, suburbano, mais para um blues etílico no desenho sonoro daquela tarde (quieta) em que me sentei no ponto final para espera-lo chegar preguiçoso na sua tarefa de leva e trás de anos, a seguir o mesmo caminho, colhendo já a terceira geração dos moradores do bairro.

Ele e seu Afrânio, fiel motorista, que veste o uniforme impecavelmente azul, exibindo no braço a logomarca da empresa (como se fosse uma patente militar) e seu bom dia indelével, educado, e com um sorriso no rosto, apesar do salário e das dores nas juntas.

Os dois chegando ao fim da linha, cansados.

E eu espero. Quieto.

Afrânio estaciona o ônibus no final da estação, próximo à lanchonete. Desliga o motor e desce em direção ao banheiro.

Quando volta, trás um balde com água para dar ao ônibus, como se este fosse um bicho de estimação. Despois de despejar toda a água no carburador da máquina, Afrânio vai a lancho-te pedir seu sanduiche natural com um todinho. Não sem antes dar uns tapinhas na cara do companheiro de trabalho.

O ônibus não tem cobrador, seu Afrânio é quem recepciona os passageiros e recebe o dinheiro da passagem. Gosta do que faz. Dá pra ver no seu jeito de tratar os passageiros.

Os dois se parecem. Fuças da mesma fundição, liga da mesma carne.

E eu espero que eles descansem para iniciar minha viagem rumo ao centro da cidade.

Manoel do Vale

*Achei aqui

A pretexto de bolos de chocolate – Conto de Ronaldo Rodrigues

Conto de Ronaldo Rodrigues

Esta história aconteceu num tempo e lugar muito remotos. Fui acusado de ter comido um bolo de chocolate. Nem tive tempo de alegar o fato de que não gostava de bolo, muito menos de bolo de chocolate. Era tudo meio confuso naquela época e nada do que pudéssemos dizer, por mais plausível que fosse, alteraria qualquer decisão do Governo Central. Tal governo havia inaugurado uma era de insegurança e delações premiadas, suspeitas e acusações que não precisavam ser fundamentadas para que fossem acatadas e executadas. Decretos aleatórios ressuscitaram leis que há muito tempo haviam sido revogadas. A criação da Comissão da Doutrina da Fé no Bolo de Chocolate foi mais um abuso daquele governo ignorante e incompetente. O bolo de chocolate tinha sido elevado ao status de iguaria divina, destinada somente aos altos escalões do Governo Central e os cidadãos comuns jamais poderiam comer.

A Comissão da Doutrina da Fé no Bolo de Chocolate nem quis me ouvir, não deu a menor bola pra minha declaração de inocência. Me levou preso sem a menor cerimônia, sem que eu tivesse chance de contratar o advogado de porta de cadeia que mendigava bem em frente à prisão de segurança máxima onde eram trancafiados os pecadores comedores de bolos de chocolate.

Fui levado a uma cela onde só cabiam eu e minha autoestima. Como minha autoestima não ocupava muito espaço, fiquei relativamente confortável e nem tive motivo pra reclamar, a não ser do rato que toda noite vinha me lembrar que aquilo era uma cela imunda. Fiquei ali por alguns meses sem saber o que seria resolvido a meu respeito, ingerindo a ração de carne podre que nutria minha covardia, meu medo e meu desalento, cada dia mais vorazes.

Certa vez, olhei pela janela a noite que se estendia lá fora. Estava iluminada por um clarão que não vinha da lua. Era até perigoso ficar olhando a lua, pois os admiradores do luar foram postos na marginalidade pelo governo. A luz também não vinha dos postes que ladeavam os caminhos que levavam à prisão. Estiquei bem o pescoço, pude olhar mais além e o que vi me deixou estarrecido. Era uma cruz de madeira pegando fogo. Ao redor, vários cavaleiros vestidos de uniformes e capuzes brancos e empunhando rifles. Só poderia ser a Ku Klux Klan, mas, apesar da KKK se encaixar perfeitamente naqueles tempos sombrios, ela só seria criada muito tempo depois.

Me recolhi ao cantinho da cela, onde o rato tinha acabado de urinar, e fiquei tremendo de medo de tudo aquilo, tentando dormir e acordar livre daquele pesadelo. De repente, um grupo de soldados entrou na minha cela, tomando Coca-Cola e disputando quem arrotava mais alto. Foi aí que o comandante olhou pra mim e berrou:

– Chegou a sua vez!

Pronto. Estava tudo acabado pra mim. Me levantei resignado e também louco pra que aquilo tudo terminasse. Estendi minhas mãos pra que os soldados me conduzissem até o local da execução. Mas o que ocorreu foi que o comandante me entregou uma garrafa de Coca-Cola e berrou novamente:

– Chegou a sua vez!

Aí compreendi. Tinha chegado a minha vez de tomar a Coca-Cola e participar do concurso de arroto. Então o comandante arrotou sua sentença:

– Se você conseguir arrotar mais alto do que nós, ganhará sua carta de alforria, sua liberdade, o perdão do Governo Central!

Claro que não acreditei que estavam me concedendo uma chance de escapar daquela situação, mas não pensei duas vezes (mesmo porque não era de pensar muito): virei a garrafa de Coca-Cola todinha na minha garganta sedenta e me preparei pra caprichar no arroto.

E foi mesmo o maior arroto que aquela região já havia escutado. Os soldados, todos arrotões de primeira grandeza, ficaram admirados com minha capacidade. Um especialista afirmou categoricamente que eu atingira uma nota ainda não registrada em toda a história da música, fato que só será superado num futuro distante, quando aparecerá um cara chamado Freddie Mercury.

Aí a minha vida deu uma reviravolta. Saí triunfalmente da prisão e me tornei um virtuose do arroto. Muita gente vinha tomar lições de arroto comigo e, dependendo da dedicação, em pouco tempo muitos alunos diplomados pela minha Universidade Musical do Arroto passaram a ocupar os mais cobiçados lugares nas maiores orquestras de arroto conhecidas na época.

Quando o Governo Central foi derrubado e o bolo de chocolate finalmente liberado pra toda a população, eu o introduzi nas lições de arroto. A combinação bolo de chocolate e Coca-Cola fez tanto sucesso que até eu passei a simpatizar com bolos de chocolate.

Assim, terminei meus dias, refestelado na glória, confortavelmente instalado em meu castelo, tendo aos meus pés os serviços de um batalhão de criados e a atenção de um número infindável de admiradores. Quanto ao arroto, passei a direção da minha universidade aos alunos mais destacados. Agora estou aposentado, só arrotando mesmo por esporte e pra não perder a embocadura.