Conto de Carnaval – Fernando Canto


CONTO DE CARNAVAL

Por Fernando Canto

Naquela noite de orgia no carnaval de setembro, o garanhão Thor se encheu de coragem e comeu o assassino Fred Krugger atrás das cortinas do clube. Deu-lhe uma martelada na cabeça e acabou com a máscara do otário.

Eduardo Luís, o Mãos de Tesoura, que acabara de terminar seu relacionamento com o Homem de Ferro, olhava, deprimido, aquela cena enquanto a Mulher Maravilha dançava com o Homem de Areia a marchinha “A Jardineira” mais bêbeda que um trem descarrilando.

CLOSE DE LADO – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Eu entro em cena puxando um cavalo manco emprestado de Hollywood. Ela está deitada. O sinal marrom que eu chamo de “boa pinta”, ela o disfarçou com um pouco mais de pó de arroz.

Fala no meu ouvido uma frase quase inaudível e eu respondo com uma frase em inglês ouvida e decorada de um diálogo do seriado de Bat Masterson.

Ela olha-me tão próxima que eu me convenço que um dos seus soutiens tem mais recheio que o outro. Ou, então, como publicaram as revistas de fofoca: implantou silicone. Diga alto e ríspido. “- Abandone-me!” – grita o Diretor fitando-me com doçura.

Olho de soslaio, a minha maneira, que permite que a câmera de um close nas minhas lentes azuis bifocais. O Diretor cospe, grita e se despenteia. Eu o conheci num baile da Praça Marechal vestido de Colombina.

Como manda o script, aplico na atriz um tapa no seu rosto. Ela, em seguida, gira sobre a cama e cai. Retiro o braço com dois quilos de maquiagem presa à palma da mão. “- Vagabunda!” – grito. Caprichando nas sílabas.

Um cowboy, que não reconheço, com uma bonita proteção de couro na calça rancheira corre em sua direção. Ela grita: “- Help! Help!” Um Help sem sotaque. Em seguida, como se estivesse ferida, desmaia. O iluminador sacode o facho de luz criando um belo efeito.

Acho um barato ela ter sentido o tapa que tanto havíamos ensaiado. Impressiono-me com o filete de sangue escorrendo de seus lábios e o repentino inchaço. O cowboy parece que vai sacar o revólver. Mantenho a minha mão direita, suja de cosmético, atrás da cintura. O Diretor berra comigo alguma coisa como: “- Filho de uma mulher mexicana, mãe de dez filhos que nunca casou.”

Com certeza refere-se a minha Madre. O cowboy saca. Eu saco num relance que aquele cara é o marido da atriz. Abandono o cavalo manco no quarto e desço para o Saloon, onde tomo um trago e saio…

Breve, no aeroporto, decola um avião da TAM. Ouço o estampido do primeiro tiro já em Quixeramubim. Mesmo assim, me agacho um pouco.

*Conto do livro Antena de Arame – 1° Edição,em 2016, pela Rumo Editorial. São Paulo.

O trombone invisível – Conto de Fernando Canto para Obdias Araújo.

 

Conto de Fernando Canto para o poeta Obdias Araújo.

Ainda era muito cedo.

O rapaz de uns vinte e cinco anos vinha no meio da rua tocando um trombone de vara, marchando alegre e sem medo de ser atropelado pelos veículos pesados que se movimentavam para pegar a rodovia JK. Ele soprava e punha a mão na boca do instrumento, ajustando-o. O tipo de música executada se assemelhava a um dobrado, já que seus passos seguiam em perfeita cadência rítmica, como se desfilasse numa parada escolar. Devia puxar o pelotão de uma banda musical que talvez lhe seguisse após a desobstrução da via. De vez em quando olhava para trás, mas sem parar de marchar.

Dobrei meu caminhão para o acostamento e esperei que passasse por mim. Eu disse:

– Ei, amigo, não estou ouvindo direito essa música.

Ele me olhou meio de esguelha, com certo ar de desprezo e apontou o dedo para a boca do instrumento, lamentando minha ignorância, querendo dizer que tocava com a surdina, pensei.

Deixei-o passar e o acompanhei pelo retrovisor. Seguia cadencioso no meio da rua esburacada, naquela manhã de abril, sob um céu plástico e chuvoso do equador. Eu já ia embora quando ouvi o som nervoso da buzina de uma carreta atrás de mim e o baque surdo de um corpo caindo ao chão. O moço, seminu, trajava apenas uma cueca branca e rota. Não havia trombone, não havia banda, não havia música.

Os pássaros madrugadores da cidade pousados nos fios de alta tensão da Eletronorte assustaram-se e fugiram desesperados com o som da morte, para descrever no céu as notas de um réquiem ao trombonista atropelado.

VAZANTE – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Ele há muitos anos não bebe água…

Ocupado em recolher as datas, as que são ocupadas por episódios trágicos.

Arranca dos Calendários da parede as folhas numeradas marcando as datas dos meses, e os dias das semanas.

E as coloca dentro de um saco de plástico bege que chama de Existência.

Sua mulher doutro lado da sala, onde nestes últimos anos eles transformaram em sala, quarto, cozinha e área de seus raros banhos…o observa em silêncio…sua ocupação, aparar as bordas desniveladas da papelada que ele ensaca para lhes dar um primoroso acabamento…

Ele não bebe água…embora a vasilha que ela encheu na bica que a chuva transborda e deixa escorrer abundante, houvesse chegando ao meio, só ela havia consumido o líquido.

Ele, da água não beberá um gole.

Estava magro e ressecado, como uma mala velha de couro, e sua calça e camisa pareciam tão secas como ele próprio.

Estava recolhendo o que ele próprio chamava de sobrevivência…para ensacar nos sacos chamados por ele de Existência.

Os discos, as fichas telefônicas, as gaiolas onde antes pulavam os Curiós, o tapete espesso onde procriaram três gerações de gatos Siameses, e estampilhas de imagens de toureiros, damas tocando castanholas, e espadachins portentosos.

Um monte de sacos amontoados no caminho do antigo corredor que ia rumo ao quintal… desaparecerá…o barulho da televisão, agora mais um chiado continuo, que fala inaudível, se fazia presente…longinquamente.

E vários pacotes de vela, para serem acessas em sequência, pois a tempos se fora a luz elétrica, não que não houvesse fios, apenas quebraram-se as lâmpadas, vieram as velas.

A casa era triste…as dobras da rua defronte pareciam querer fugir dali…mas ele não bebia água…

As árvores plantadas no quintal decorando de folhas o chão,os troncos não eram mais de madeira, eram agora de papel machê, porque também não bebiam água…

Ele catando passos, falas, espirros, algazarras, sorrisos, e desenhos feitos a mão, em determinados momentos,fazia trejeitos e repetia monólogos, cuja a única testemunha eram os ponteiros do relógio, que ele usará para prender um cadarço de sapato na parede para nele dependurar coisa esquecidas…

Um caos…a própria vida começou a evitar aquela casa.

A noite passava ao largo.

A chuva deixou de vir…

Um silêncio triste, sentou debaixo das árvores, e ficou calado.

Tudo era um traçado de ensacar coisas deles, e de tudo,e o todo, que ele achava que era um grão.

Ela doutro lado da então agora uma coisa qualquer chamada antes de sala, se transformou, em água.

E ele cabisbaixo entrando no derradeiro saco, não bebeu.

* Além de contista, Luiz Jorge Ferreira é poeta, escritor e médico amapaense que reside em São Paulo e também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

A volta de Paul Devil, o assediador de meninas que finge ser um inofensivo militante cultural – Conto De Rocha de Elton Tavares

Conto De Rocha de Elton Tavares

Há tempos eu não tinha o desprazer de ouvir falar de “Paul Devil”, um grande filho da puta que conheci na primeira metade dos anos 2.000. Como ninguém vem com a índole escrita na cara, por engano, já me misturei a alguns escrotaços ao longo da vida. Paul Devil é um deles.

De fala mansa, intelecto maquinante sempre voltado para tirar vantagem de algo ou alguém, principalmente de meninas que não conhecem sua alma sebosa, ele vai chegando sempre com um papo furado, uma falsa “gentebobisse cult”.

O pior é que o doido pensa mesmo ser “a bala que matou Lennon” (li essa frase dita pela Vitória uma vez e sempre uso). Sim, Paul Devil faz cara de militante cultural engajado e amigo de todos, mas não passa de um vagabundo que assedia garotas dentro da área universitária. A velha prática nojenta é sempre a mesma: aproximação, birita na vítima e se ninguém impedir o desgraçado, ele abusa (toca ou até estupra).

Existem vários relatos sobre essa prática do canalha. Mas o inescrupuloso personagem consegue fica impune e eu realmente me pergunto, até quando? Ele devia, há muito, estar preso.

Com sua escrotidão, Paul Devil já fez muitas vítimas e já escapou de mim (que na época queria lhe aplicar uma boa surra) umas duas vezes.

Mas, se liguem. Ontem (11), uma querida jovem acadêmica relatou que ele voltou, se é que um dia parou, a assediar meninas dentro do Campus. O pior é que ninguém faz nada. Professores, coordenadores, corpo técnico, Reitoria, ninguém toma uma providência contra Paul Devil e outros figuras que praticam os mesmos atos, sobretudo nas famosas festas universitárias. Até quando?

A velha máxima de colher o que planta sempre se concretiza. Um dia, que espero não demorar, pois já faz muito tempo que Paul Devil comete esse crime, ele se ferrará. Enquanto isso vai um aviso : se toca, senão o gordo biriteiro te pega, seu doente filho da puta pervertido de merda!

As Estrelas da Tarde (Conto paid’égua de Fernando Canto)

Conto de Fernando Canto

– Quem vê uma estrela de dia será feliz, disse-me o homem de cabelos brancos com quem costumava conversar quando voltava da escola.

Eu havia contado a ele que há dias vira uma delas, grande e brilhosa, dentro de nuvens escuras (cumulus-nimbus, frisei, orgulhoso do meu aprendizado escolar), antes que elas vertessem sobre o mundo suas águas lacerantes.

Seu Unvagnime ficava todo fim de tarde na calçada observando os poucos passantes da rua enladeirada, onde um tempo lento absorvia a realidade e abria seu portal para uma dimensão que nos olhava de soslaio. Junto a sua cadeira de macarrão, afundada de tantos sentares, havia sempre uma garrafa térmica com café que oferecia aos seus conversadores ocasionais. Entre eles eu. Parava ali como se estivesse atendendo a um chamado, mas meus colegas de escola o escarneciam por causa de sua aparência. Cheguei a brigar por causa disso com um deles, que também era meu vizinho.

Tornei-me um conversador contumaz e um apreciador daquele café puro, colhido, torrado e moído no pilão por suas filhas solteironas, umas meninas galegas de cabelos louríssimos e de olhos azuis, azuis. Pareciam mulheres nórdicas que pulavam de dentro de revistas e se escondiam nos meus sonhos. Eram albinas. Quando voltava da missa aos domingos eu as acompanhava. Estavam sempre de óculos escuros e lenços de seda na cabeça. Chamavam-se Anabella e Ana Bolena. Aparentavam tristeza, mas sorriam quando falavam comigo.

Em uma dessas conversas com o ancião perguntei se ele já teria visto uma estrela de dia. Ele percebeu minha curiosidade, ajeitou os óculos espelhados estilo ray-ban que mandou buscar por um catálogo, e disse:

Vi muitas, Josset, vi muitas. E sou feliz, eu juro. Por Deus e pelas sete chagas de Cristo, repetindo o juramento com entusiasmo.

Contou suas aventuras como marítimo e pescador, dos sete naufrágios em que se salvou, sendo que quatro deles aconteceram em pleno dia. Falava como se estivesse revivendo tudo aquilo, olhando a embarcação estraçalhada pelas vagas do oceano, embaixo de procelas inacabáveis. Falou que sua voz e seus ouvidos estouravam na dança arritmada das águas, no vai-e-vem, no vai-vai, no vem-vem das ondas, nos punhais da chuva baguda disparada pelo vento.

E graças às estrelas que corriam entre as nuvens, me disse, soubera que direção tomar. Em um desses desastres ele nadou, nadou, e nadou no rumo das ilhas, ao sabor da corrente, até ser encontrado por um barco de passageiros que ia em direção às ilhas do Bailique. Sempre que se salvava de um naufrágio estava preso a uma boia, a um botijão de gás ou outro objeto que os ajudavam a se salvar. Certa vez, ele e um marinheiro se agarraram a um tronco solto na maré depois que o barco virou surpreendido por uma pororoca entre o continente e a ilha do Brigue. Infelizmente seu parceiro sumiu nas águas barrentas e ele nada pôde fazer.


– Vi muitas vezes, Josset, tantas que nem procurei a felicidade, se é que queres saber. Ela veio a mim e eu sou feliz. Viver foi a minha condição de felicidade, que é tão rude como as ondas do mar na tempestade. Vi muitas, meu amigo. Como são suaves e belas ao cair da tarde. O céu me deu a escolha de tê-las grandes ou pequenas. Eu quis a que veio a mim por quatro vezes para que eu tivesse uma longa vida. Conheci pessoas que tiveram esse condão e foram contempladas com a sorte da riqueza. Elas pouco viveram, mas compensaram suas vidas espalhando sua felicidade no tempo a outros que dela precisaram.

Olha rapaz, disse o velho, a felicidade não é um objeto, um ser, uma alma. Ela apenas é. Ela vive, sim, em um tempo duradouro, às vezes na forma de uma estrela avistada por poucos em tardes de tempestades.

Narrou suas histórias por um bom tempo. Quando terminou de falar encheu o copo de café e o entornou. Eu fiz o mesmo e fui para casa. Quase não dormi naquela noite, imaginando viagens pelos mares, e por causa do café.

No dia seguinte ao voltar da escola deparei com uma multidão na sua casa. Velavam seu corpo na sala. Eu que nunca havia passado pelo portão do quintal me surpreendi com aquele ambiente esquisito, nem alegre nem soturno.

Havia conjuntos de móveis estofados, enormes telas de paisagens amazônicas nas paredes, sempre com barcos navegando; cristaleiras com taças e cálices com bordas de ouro, estantes abarrotadas de livros e de miniaturas de barcos, tapetes coloridos sob mesas de mármore com pés de madeira nobre; uma geladeira vermelha meio arredondada e uma vitrola hi-fi de mogno num canto. Na sala contígua estava o caixão branco com o corpo do velho Unvagnime ornado de flores, anzóis e pedaços de rede de pesca. Em seu peito haviam colocado a bandeira do Brasil e a do Sindicato dos Pescadores.

Cumprimentei suas filhas com o devido respeito, me contendo para não chorar, pois já possuía a experiência de morte na família e a perda de uma pessoa que considerava amiga me doía muito. Aproximei-me do corpo. No rosto pálido haviam deixado os óculos espelhados, a pedido dele, me disseram.

E foram muitas as lágrimas que caíram dos meus olhos naquelas lentes que me refletiam.

Eu os tirei do rosto para enxugá-los com blusa do meu uniforme e olhei seu rosto bem de perto, mas em vez de seus olhos fechados vi duas estrelas faiscando como se estivessem me chamando em código, do alto de uma nuvem escura.

Um cheiro de café explodia em todos os meus sentidos. Saí daquele ambiente plenamente entranhado de sensações estranhas e de uma felicidade extemporânea.

Ela sempre reina em mim quando olho para o céu e procuro estrelas da tarde. Se a sorte chega e vejo uma, pequena e fugaz que seja, ouso transformá-la em nebulosas infinitas.

Sobre sonhos, pesadelos e outras viagens – Por Cleomar Almeida

Meu amigo Cleomar Almeida é um competente engenheiro. O cara também é a personificação da pavulagem e gentebonisse, presepeiro e boçal como poucos que conheço. Um figura divertido, inteligente, gaiato, espirituoso e de bem com a vida. Dono de célebres frases como “ajeitando, todo mundo se dá bem” e do “ei!” mais conhecido dos botecos da cidade. Quem conhece, sabe. Hoje ele escreveu essa:

Sobre sonhos, pesadelos e outras viagens

Queria que alguns de meus sonhos pudessem ser gravados, só pra eu assistir novamente, tal a veracidade das coisas que neles acontecem. Alguns seriam dignos de um Oscar, outros, mero refugo da pornochanchada. Dia desses, digo, noite dessas, creio eu, de tanto ficar assistindo programa de bicho, me peguei dormindo em meio a uma mata, riacho passando ao lado, canto de pássaros e uma penumbra bacana.

Eis que ao longe vejo aquele enorme felino, rastejando em minha direção, nessa hora de desespero meu único pensamento é correr. Posiciono-me para iniciar a disparada da minha vida, como Usain Bolt na linha de partida para os cem metros e só então percebo que não estou só naquela situação periclitante, minha mulher dorme ao lado, alheia ao risco de virarmos bóia do animal faminto. Onça chegando, eu pronto pra correr, mulher dormindo ao lado, macaco gritando, desespero total na mata e é quando tomo a decisão, vou correr, não sem antes avisar minha parceira, isso seria uma covardia sem tamanho.

Dou-lhe um belo de um tapa na bunda e grito: Amor, corre que tem onça!! Minha disparada é curta e breve, minha cama é colada à parede, quase arrebento os cornos por conta da velocidade impressionante que atingi naquele meio metro que tinha pra avançar. Ainda atordoado olho para o lado, minha mulher sentada na cama me fita com ar de reprovação e diz: Eu “mínino”, tu vais quebrar esta parede!!!. Mal sabe ela a fogueira que acabamos de pular.

ROUCO RECADO – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

O Corcel da noite uivava…preso nos dentes fiapos de mangas e crinas das madrugadas.

Nossa casa tem tábuas podres… Mãe!
Nosso quintal tem casca de ovo… Mãe!

Eu sei acender o fogo com um só palito de fósforo. Mesmo que sopre o vento de muitos assobios.

Mãe você não se incomoda.

Porquê tem muitas tábuas podres nossa casa…e as estrelas vem mordê-las, e perdem-se no sulco do disco de Luiz Gonzaga.

Anita que espreita, tem seios, e meios de fazer carícias que nem sei.

Mãe , você espante está tristeza vagabunda…mesmo que uive a noite, temos contra a escuridão, um pavio aceso, e uma luz nos seus olhos.
Na estante… temos ‘ O Tempo e o Vento, e ‘Mar Vermelho’.

Nossa casa tem tábuas podres… Mãe!
E você conhece toda a Coleção de Jorge Amado.
E você conhece Trigonometria…a ensina a trinta anos… conhece Freud e Kafka…
Eu ouço o ruído das tábuas apodrecendo, dos cupins roendo, a cumieira.
Eu ouço a dor das queixas dos favelados, nos pátios das baixadas.


E lá…nem lua, nem Hollywood, nem Sinatra, pousam.

O corcel da noite, feito um bêbado insolente, descobre as tábuas podres, a noite adormece os miseráveis, adormece D.Ester, que vigia a chuva para não chover.

E nossas tábuas podres, podem se vingar
Você não, mãe.


Você demarca as costas do Amapá, e o Mapa fica entrincheirado em um prego na parede, defronte a um armário antigo de vidros quebrados, que esconde o ruído dos cupins, penas de anjos, e tábuas podres.

E você não se incomoda… Mãe!

Ah! Como zombam de nós, as tábuas podres!

*Do livro Cão Vadio, publicado pela Imprensa Oficial do Governo Federal do Amapá, em 1986.

PIRA – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Meu filho nasceu com uma pequena chama na cabeça e a mãe dele morreu de parto, inflamada. Mesmo assim, à revelia dos nossos familiares (pelo perigo que representava à sociedade, dizendo eles), eu o criei em outra cidade protegendo-o sempre com um chapéu de água que inventei para que ele não fosse discriminado pelos vizinhos nem sofresse bullyng na escola.

Eu vivia solteiro, mas era feliz com o desenvolvimento físico e intelectual do meu filho. Era ele que acendia as fogueiras de nossa rua no tempo das festas juninas. Acendia meus charutos Coyba, que um amigo importador me trazia de Porto Rico e dizia que eram cubanos e nem titubeava em acender o fogão de lenha nos nossos churrascos domingueiros e qualquer coisa que precisasse de fogo. Eu o chamava carinhosamente de Pira, uma alusão à pira dos Jogos Olímpicos.

Mas Pira era um menino levado e gostava muito de ver o rio passar com suas ondas grandes na baía. Ficava encantado com aquilo. Dizia que queria aprender a nadar, que também queria tomar banho de chuva como os outros meninos da sua idade. Mas eu não o incentivava. Sabia que poderia ser perigoso só para ele. Sua chama não podia apagar de jeito nenhum.

Num desses churrascos apareceu a loura Yurgueline, uma gostosona bem brasileira de bunda grande e peitos fartos, indisfarçavelmente siliconada. Não resisti e a cantei. Acabamos na cama.

De manhã acordei sem o cheiro gostoso do café do meu filho. Fui à cozinha e não o vi. Abri a janela e o avistei caído na lama da chuva que caíra à noite toda e eu nem pude perceber.

Eu o levei para dentro e chamei a ambulância. Antes que ela chegasse ele abriu os olhinhos, sorriu parecendo feliz, e acendeu, bem fraquinha, pela última vez sua chama da cabeça.

Verônica, a submersa (conto porreta de Ronaldo Rodrigues)

 
Quando Verônica chegou em casa eu era uma criança a mais numa família de noventa e oito irmãos. Naquela cidade eram comuns famílias numerosas, que envelheciam muito cedo.
 
Verônica, quieta, tranquila, limitava-se a permanecer no fundo do tanque que lhe fora destinado. Comia pouco, apenas algumas algas que brotavam nas paredes do tanque. Parecia resignada, mas havia algo de resoluto em seus movimentos. Uma silenciosa determinação. Uma calma revolucionária, que tanto afligia quanto encantava. Sua diáfana presença a tornava forte, intacta.
 
Verônica gostava da minha companhia. Nos entendemos bem desde o primeiro olhar. E sem trocar palavras. A cumplicidade de nosso silêncio nos bastava. E nos fortalecia.
O silêncio selou um pacto entre nós. Eu arquitetei um plano para tirá-la daquela casa onde aprisionavam lindas mulheres em tanques frios e não davam a mínima atenção. Deixavam lá, no fundo do quintal, como prova de algo que eu não conseguia compreender.
 
Verônica era altiva e simulava distância de sua condição de prisioneira. Quando eu entrava para dormir, ficava imaginando Verônica entre as pedras do tanque. Linda. Enigmática. Verônica.
 
Finalmente, chegou o dia de realizar o plano. Acordei bem cedo, antes de todos. A casa era enorme e foi trabalhoso atravessá-la no escuro, desviando de tantas redes.
 
Eu estava fugindo de casa levando Verônica num aquário gigantesco, roubado no dia anterior. O aquário, preso a uma plataforma com rodinhas, era frágil, mas daria para chegar até o rio.
 
Rapidamente, Verônica foi remanejada do tanque para o aquário. Tudo aconteceu conforme o plano e chegamos ao rio antes que dia clareasse. Eu estava esgotado pelo esforço de empurrar aquele aquário imenso pelas trilhas tortuosas da floresta. Verônica me animava com seu olhar completo, inquebrantável.
 
E foi com o olhar que Verônica me fez compreender que nossa história de amor era impossível. Eu não poderia acompanhá-la, por não poder viver dentro d’água. Ela não poderia ficar comigo, por não poder viver fora d’água. Era uma barreira definitiva. Eu precisava compreender.
 
E compreendi. Verônica foi lançada ao rio e mergulhou bem fundo até desaparecer. Antes, acenou com os olhos, que transbordavam lágrimas iguais às minhas. A lembrança de seus olhos ficou comigo pelo caminho de volta para casa e por toda a minha vida.
 
Outras mulheres foram morar no velho tanque, ao longo dos anos. Belas e silenciosas como Verônica, que também precisavam de liberdade. Mas eu já estava velho demais para pensar em libertá-las. Como disse no começo desta história, envelhecia-se muito cedo naquela cidade.
 
Ronaldo Rodrigues

FLAUTA – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

​De manhãzinha, seu Pedro descia os três degraus de escada, fechava a porta com chave, duas voltas, e seguia caminhando cabisbaixo como perseguido pelos sons da flauta que tocava nas horas de folga.

​Sempre aquele soprar enfadonho, semi-tonado, choroso e cabisbaixo como ele quando caminhava para o centro da cidade, onde funcionava a barbearia em que trabalhava há 40 anos, ali debaixo do antigo Grande Hotel do Pará.



Quando seu Pedro voltava, já começando a noite, alguns gatos atravessavam a rua, vindos do terreno baldio em frente e, miando, subiam pelo telhado de sua casa, entre as ervas ali dependuradas e telhas soltas cheias de limo.

Com a noite alta, os gatos atravessavam a rua e retornavam às suas moradas no terreno baldio do outro lado da rua. Então, terminava a folga dos ratos. A flauta se calava e o pessoal da república, a uma quadra dali, – Joca, Edílson Calouro, João Silva Santos, Veríssimo, Alípio e Edivaldo – acomodavam-se para estudar. Eu podia ver as notas correndo pela vala em meio à água rala que pouco cobria o lodo do fundo. Na rua tinha um cachorro vagabundo que, vez por outra, pulava na vala atrás delas, e as engolia de um só fôlego. Era ele fazer isso que a estudantada saía pela porta da sala e divertia-se ouvindo-o latir. Uns latidos meio miados, meio zunir de ratos, meio barulho de tesoura cega cortando cabelo.

Veríssimo era o mais moleque e o atiçava com uma toalha. Certa vez, foi tanta a algazarra que seu Pedro saiu na porta de sua casa e tocou na flauta um fado tão lamento, que as notas saíram da vala, da boca do cachorro, do barulho de uma rasga mortalha, e coloridas e em fila retornaram para a flauta. Seu Pedro fechou a porta e, mais depois, amanheceu. Tudo foi tão rápido que os degraus não tinham se levantado quando ele abriu a porta e desceu.

Noutro dia, eu soube que ele caíra e fora levado para o hospital. E que mais tarde toda a vizinhança o fora visitar. Uns levaram caqui, outros restos de mar, outros nacos de sol. Eu levei alguns gatos pardos e malhados e um rato, o que costumava cantar mais alto. Não consegui entrar.

À noitinha seu Pedro morreu. A vala foi aterrada pela Prefeitura. Chegou o carnaval e os gatos viraram tamborins. A flauta ficou pendurada na sala, guardando notas enferrujadas. Até que a casa ruiu. Os estudantes concluíram seus cursos e sumiram. Eu fiquei sozinho, escrevendo contos irreais sobre flautas, gatos, ratos, cães e valas. Coisas em que seu Pedro, também sozinho, nunca acreditou.

– Seu Pedro era canhoto?

* Além de contista, Luiz Jorge Ferreira é poeta, escritor e médico amapaense que reside em São Paulo e também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).
**Do livro Antena de Arame, Rumo Editorial- SP – II EDIÇÃO. 2017.

ESTAREMOS SEMPRE JUNTOS ESTA NOITE, AMORE MIO – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto
Ao pintor Olivar Cunha

– Não duvido mais, conclui Pietro di Paolo, triste, sentado no sofá, olhando para a estranha figura da tela abstrata que parece ter ganho nova forma, novo estilo e perdido as cores mais vivas.

– Daqui pra frente vão começar as mudanças. Te prepara, amore mio. Minha intuição é mais forte que as profecias de Nostradamus.

Betsylla acende o incenso enquanto o marido mergulha em si mesmo. Deve ser para meditar e para espantar as emissões malignas que penetram naquele apartamento. O odor se espalha minando cada canto da sala. A ideia é formar uma cortina esfumaçada para conter o que virá.

Pietro di Paolo não sabe mais a forma, dimensão, peso ou qualquer referência sobre o que virá daí para frente. Sabe que dentro da tela há uma moradia, exatamente nos olhos da figura deformada exposta na parede, que se manifesta aos poucos em três dimensões.

O quadro é grande, embora sem moldura, porém tem um chassi perfeito e seguro, o que lhe dá a impressão de indestrutibilidade. Mede 2,00 x 1,50 m e ocupa a parede de forma onipresente. Para onde se anda e se observa a imagem, os olhos dela estão nos olhos do observador. Provoca uma relação de dependência, suscitando um desejo de troca, de transposição. Assemelha-se a uma técnica medieval de pintura religiosa onde os santos parecem estar sempre observando os pecados dos crédulos. Betsylla traz o chá preto que ele pediu. Não dormirá nessa noite. Ela senta junto a ele e o afaga, lhe acariciando as barbas alongadas. Prepara-se para a noite comprida como à espera da revelação de um segredo.

– Vá dormir, amore mio, ele diz.
– Não tenho sono. Quero ficar.
– Você não está preparada pra…
– Estou, sim, diz cortando a frase bruscamente. – E não tenho medo. Eu te amo, amore mio. Estaremos sempre juntos.

Ficam longo tempo sem falar. Escutam Sonata para Violín y Piano, de Mozart, tão suavemente executada por Luiz Felipe e Armando Merino. Os olhos fixados nos olhos da tela sob a luz acesa da sala onde bebem várias xícaras de chá preto e café. A fumaça do incenso se confunde com a dos cigarros que fumam incessantemente. A causa que gera a situação não pode ser uma simples patologia ocular, um escotoma, um ponto negro, uma escuridão, uma ilusão que o cérebro possa achar que é o que quer ver. Nem o efeito um carma. Pietro di Paolo e Betsylla têm lá suas certezas e experiências de vida. Conhecem o mundo todo. E sabem, sabem de muitas coisas misteriosas.

O enfrentamento é inevitável. Será uma guerra de imaterialidade. Por isso os olhos estão acesos. Não cochilam em nenhum momento. A vigília é mútua pelo compromisso assumido entre os dois. Mas em dado momento o alerta vacila.

*******

Às 08h00 em ponto a diarista abre a porta, sente o cheiro estranho no ambiente. Copos, xícaras e pires, pedaços de torradas caídos na mesa da sala, o som dos instrumentos tocando num CD player e um lençol de casal no sofá, de onde emerge um homem disforme, bocejando e se espreguiçando. Ele é magro e está com o rosto pintado como se vestisse uma máscara. Pede café a mulher, que nem se assusta mais com as esquisitices daquela casa e de seus hóspedes.

Na parede da sala há um quadro novo, de cores vivas, com o retrato dos patrões.

– Eu, hem?! Que gente esquisita, esses estrangeiros, reclama a diarista. – Vivem mudando a decoração da parede e trazendo gente estranha pra cá.

ANTENA DE ARAME – Conto de Luiz Jorge Ferreira

ANTENA DE ARAME

Conto de Luiz Jorge Ferreira

O rádio estava chiando muito. Meu pai, com o propósito de diminuir o chiado, mudava de posição a vara de bambu que segurava um pedaço longo de arame que chamava, a toda hora, de antena. Mas tudo em vão. Eu sabia que era Copa do Mundo.

Todos falavam que aquele jogo com a Tchecoslováquia era de vida e morte. Aquele Skarov era o diabo, podia fazer um gol e muitos outros e nos mandar de volta do Chile para casa, acabando com o sonho de sermos bicampeões mundiais.

Eu, medrosamente, olhava para o rádio. Quem sabe se aquele diabo loiro, musculoso, de muitos metros de altura, como eu o imaginava, pulasse de dentro do rádio para acabar com todos ali, inclusive comigo que torcia contra ele. Eu queria que este Skarov morresse e fosse para o inferno que era o pior lugar que eu em meus oito anos ouvira falar. Escondia-me por detrás de mamãe. Ia aonde ela ia. Vigiava a porta disfarçadamente e olhava assustado para o grupo de amigos do papai, que ora fumavam, ora bebiam um gole de seus copos sempre cheios, ora passavam a mão pelos cabelos, ora roíam as unhas e iam e vinham do banheiro apressados, enxugando as mãos na calça. “- Quanto está ainda? Ninguém marcou? O Skarov está nos atacando novamente? Este demônio vai acabar fazendo um gol.” Depois de noventa minutos de sofrimento, o Brasil ganhou o jogo.

À noite, vi Skarov vindo me engasgar com suas mãos peludas, rindo e pondo a mostra seus dentes afiadíssimos. Trazia um hálito de sangue, um fogo em seus olhos vermelhos que pareciam beliscar-me. Gritei muito. Mamãe saiu de seu quarto e veio me sacudir. “– Eu não lhe disse para que não provasse o vinho que seu pai e os amigos dele estavam tomando? E que também não ficasse com o ouvido grudado no rádio? Jogo é para gente adulta. Levanta e vai tomar banho. Está urinado. Lave-se e, depois, vá para cama do seu irmão. De manhã, troco os lençóis. Reze de novo antes de deitar.”

Em 1982, por ocasião da Copa do Mundo, fui a trabalho até a antiga Tchecoslováquia e fiquei hospedado nas proximidades de uma antiga Vila Olímpica que, na ocasião, foi transformada como abrigo de ex-atletas. Uma noite, antes de embarcar, ao regressar sozinho de um coquetel, atravessei por entre os prédios todos iguais, andando por uma viela escura que cortava caminho em direção ao Hotel onde estava hospedado com a delegação de jornalistas brasileiro, foi quando vi o vulto de uma pessoa.

Ao me aproximar, vi um homem caído defronte a um dos últimos prédios. Aproximei-me para prestar-lhe ajuda. Risquei o isqueiro. Estava escuro e muito frio para a estação. Ameaçava mesmo nevar. Observei que era um homem de aproximadamente uns setenta e poucos anos, magro, desnutrido, que cheirava álcool, balbuciava uma mistura de francês e tcheco. Ficou apavorado comigo ali. Àquela hora, abaixado sobre ele e tentando acender um isqueiro, eu tentava enxergá-lo melhor para saber se ele estava ferido. Vi que tentou levantar-se, arrastar-se, mas as pernas castigadas pelo álcool não lhe obedeciam. Transpirava muito. Olhava-me quase como se implorasse pela sua vida e eu, também, fiquei nervoso balbuciando frases mal construídas em inglês e em francês, tentando me comunicar. Era em vão. Ele estava em pânico. Apertava meu braço e tentava ficar de pé. O vento frio que soprava não era o bastante para enxugar o suor que gotejava da sua testa. Ele tremia apavorado. Eu, sem saber o que fazer para acalmá-lo, gritava em português. “– Acalme-se! Não se apavore, quero ajudá-lo. Sou jornalista do Brasil. Você esta ferido? Você entende? Brasil!”

O ancião olhava-me em choque, com certeza se achava vítima de um assassino ou na presença de um monstro de dentes afiadíssimos que queria no mínimo devorá-lo. De repente, passou-me uma ideia. Abri o paletó e mostrei-lhe a camisa da Seleção Brasileira que tínhamos levado para o coquetel de confraternização a fim de fazermos uma brincadeira com os jornalistas portugueses. Senti que havia dado certo. Eu tinha razão, ex-atleta reconhece a camisa. Aquela cor, aquele distintivo. Por fim, deixou-me ergue-lo e acomodá-lo em um canto da escada, onde o cobri e com meu sobretudo. Senti que se acalmava. Já não transpirava muito e seus olhos começavam a perder o olhar apavorado. Diminuíra sua angustia. Tentei fazer com que ele me entendesse e procurei ver se tinha um documento, uma identificação para que eu pudesse passar pela portaria do Hotel. Pedi para que um funcionário fosse vê-lo e o encaminhasse a um atendimento médico. Por certo, ficaria muitas horas exposto ao frio. Ele deu-me um pequeno embrulho de plástico. Compreendi que aquilo protegia um documento. Antes que eu me afastasse em direção a portaria, abraçou-me agradecido, meio sem jeito, na posição que se encontrava. O deixei ali e fui até ao Hotel onde entreguei o embrulho para o chefe da segurança, que se encarregou do caso.

Pela manhã, ao descer para embarcar de volta para a Espanha, o rapaz da portaria disse que havia um recado para mim da família do homem que eu ajudara, mas que infelizmente ele havia falecido. Como não leio Tcheco, ele o fez anotando a tradução no verso do próprio bilhete que imediatamente guardei. Tomei um táxi para o Aeroporto com aquela tira de papel no bolso do paletó e o episódio martelando em minha cabeça.

Comprei um jornal espanhol e ao folhear a secção de esporte, deparei-me com a notícia “A Tchecklosvaquia perdera um craque da seleção vice-campeã do mundo de 1962. Encontrado ao relento por um turista estrangeiro…” Foi, então, que abri a tira de papel com o bilhete traduzido: “A família do ex-jogador de Futebol Skarow agradece ao jornalista brasileiro pela ajuda prestada ao seu pai e avô.” Grampeada em anexo havia uma foto da formação da seleção Tcheca 1962. Retornei ao jornal assustado e confuso. A notícia martelava em minha cabeça. Li novamente. Abaixo da legenda via-se a foto de um ancião pequeno, frágil, magro, de cabelos brancos e ralos, de semblante plácido, deitado sobre uma mesa, coberto com seu sobretudo. Tomei o avião e quando cheguei em Madrid, fazia sol.

* Além de contista, Luiz Jorge Ferreira é poeta, escritor e médico amapaense que reside em São Paulo e também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

KARUTAPERÁ – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Eu a chamava de Tamaiká…eles a chamavam de Manitu, é minha mãe a chamava de Tuxauã…

Não imagino quantos anos ela tinha…sei que ela contava que era do tempo em que o sol nascia onde hoje se convencionou chamar Poente…

Não sei se tivera filhos, sei que tinha consigo inúmeros bonecos feito de argila, a quem ela se dirigia por um nome balbucido entredentes em um dialeto feito de consoantes, e números…

Eu havia contado mais de cem bonecos de argila, como afirmara que tinha uma gravidez a cada ano, deduzi que tinha de idade, mais de cem anos.

Minha mãe como trabalhará por muitos anos na confluência do rio Oiapoque, e o estuário do Bailique, se tornará íntima da linguagem coloquial dos Kaokaris, indivíduos albinos, que se vestiam de uma roupa traçada com fios de teia de aranha tocantira, muito semelhantes as formigas desta família, o que levava a crer que uma fosse a outra, ou a outra tivesse sido antecessora dessa.

Mamãe lhe acompanhava quando ia se alimentar, comia restos de flores, sempre amarelas, e frutos roídos por antas e capivaras, assim que entrava na mata, com um cipó amarrava a perna esquerda de encontro a coxa, é mesmo assim nesta pose incomoda adentrava léguas, e léguas, até encontrar uma nascente , então cavava, e quando brotava uma água reluzente, como se fora misturada a luzes, lavava os olhos, pedia que minha mãe lavasse os dela, mas como das vezes anteriores, em que minha mãe , o fizera, virá em seguida a clareira cheia de Sacis, Duendes, Mapinguaris, e algumas Matintas Perera, ela medou, para não ser discordante, passava a mão naquela água fosforescente, e fingia esfregar os olhos.

Mas um dia, ela deixou de convidar minha mãe, a lavar com ela seus próprios os olhos….e de volta já noite avançando…

Mãe a inquiriu… porquê não insistiu mais que eu lave os olhos, na água que brilha.

– Você não o faz!

Olho seus olhos, e eles continuam só enxergando o limitado…

O infinito que nos cerca, você teme…

Mãe envergonhou-se. Por falar e entender a língua Kaokaris, mãe conversava com ela, quando as duas estavam sozinhas, porque a linguagem Kaokaris, tem voz, gestos, estalos de língua ritmados, e piscadas, como um código Morse, e separando cada grupo de gestos, e sons, ligeira flexão sempre de frente para o sol, e em seguida dando as costas para a Constelação de Sírius,se noite fosse, porque segundo ela, a Kaokari …Sempre dizia…Lá foi onde tudo começou.

Eu ouvi este diálogo, várias vezes, ouvi porque tinha ido passar alguns dias em Karutapera, e em estando lá comecei a traduzir, sons, trejeitos, genuflexoes, e breves passos de dança…

Foi quando chegou a Primavera, eu sumi.

Agora eu daqui de Sírius, me manifesto neste estado semi liquido, de mistura as luzes fosforescentes, neste corredor criado para a fluidez das ondas alfa, e vou até a parte neural do seu cérebro, onde o faço, transcrever isto que digo, como se ela minha mãe, o houvesse criado.

Obrigado.

Tuxauã…Manitu… Tamaiká…

A voz de minha mãe, agora fraca, se perdeu entre paredes descascadas.

Ela, abriu pela derradeira vez o quarto do filho desaparecido há uma década…sabia que ali não viria mais…

Sentia sobre si, o peso dos anos, a mão direita tremia, e os olhos tinham as pálpebras pendentes, o que a forçava a olhar com o rosto voltado para cima, trazia os espasmos na musculatura da face que quase que mudavam sua fisionomia de um todo, apagando a que ele conhecerá quando ainda estava ali.

Muitas vezes andando bem lentamente, tinha a sensação que sua alma lá adiante parava esperando o corpo vir se aproximando, como chuva e vento…que um espera o outro.

Beijou cada papel riscado, cada traço espalhado, cada fresta de tábua escapando luz…

Olhou o calendário todo rabiscado na parede…2049…

Achou que sonhava …e morreu.

D’aí o tempo apodrecido e magro… cuspiu sobre a sua sombra, que embora com o perfil de um Mapinguari desajeitado e lento, lhe acompanhava ágil … desde que nascerá.

* Além de contista, Luiz Jorge Ferreira é poeta, escritor e médico amapaense que reside em São Paulo e também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).