Contos, causos e histórias do Cleomar

Meu amigo Cleomar Almeida é um competente engenheiro. O cara também é a personificação da pavulagem e gentebonisse, presepeiro e boçal como poucos que conheço. Um figura divertido, inteligente, gaiato, espirituoso e de bem com a vida. Dono de célebres frases como “ajeitando, todo mundo se dá bem” e do “ei!” mais conhecido dos botecos da cidade. Quem conhece, sabe. Selecionei alguns de seus relatos na rede social Facebook. Boa leitura:

Na esquerda, meu amigo Cleomar. Na direita, a foto do lutador Lyoto Machida, feita pelo repórter fotográfico Tarso Glaidson Sarraf Rodrigues.

Luta garganteada

Comparo a luta do Lyoto Machida dessa madrugada a um pé de porrada que me meti certa vez quando moleque, só consegui acertar a primeira, daí pra frente só apanhei, mas apanhava como quem está ganhando, garganteando o tempo todo. Ao final, todo quebrado, ainda avisei ao meu quase algoz: Isso é pra tu aprender a não mexer com que tu não conhece! Ninguém entendeu nada, mas muita gente achou que saí vencedor daquela peleja.

Nortista e frio

Tem felicidade maior do que chegar a noite em casa, ligar a central de ar no 17, se meter debaixo do cobertor mais grosso que tiver e passar a noite inteira entrevado, brigando com o frio? Nortista é um bicho estranho mesmo.

Avaliações anuais

Dando uma avaliada no ano de 2017 e levando em consideração a merda que foi 2016 me veio na mente o refrão da música de Rio Negro e Solimões ” Tá ruim mas tá bão “. E vai melhorar mais ainda.

Em 2018 eu quero mais é perder, perder menos tempo com gente que não vale a pena, perder menos dinheiro com coisas desnecessárias e finalmente, perder uns dez quilos, de preferência sem ter nenhum membro amputado. Bora perder !!!

Brasileiro

Ainda ontem, conversando com dois amigos sobre violência, porte de armas, política… Surge a melhor definição sobre nós.
– Cleomar, brasileiro é doido!!!
Pronto, acabou a discussão.

Bar de corno

Daquelas histórias que só acontecem numa mesa de bar. Dia desses, estávamos eu e um amigo, jogando aquele papo furado, contando mentira, falando mal da vida dos outros e é claro, tomando aquela cerveja bem gelada, quando descem de um carro, cinco cabôcos, com visíveis sinais de embriaguez, como diz um outro amigo meu, e em alto e bom som um deles ao passar por nós grita: É aqui o Empório do Índio, o bar que só dá corno? Eu em resposta à pergunta do nobre cidadão respondi: Sim, inclusive acabou de desembarcar mais uma carrada neste exato momento. Foi um pára pra acertar, o cabra ficou puto, queria brigar. Quem fala o que quer…

Passando bem

Outro dia, assistindo ao noticiário local, vejo o repórter relatando uma tentativa de homicídio, em que a vítima havia sido alvejada por três tiros de arma de fogo mas, segundo o repórter, passava bem. Porra, quem levou três tiros não pode estar passando bem, passando bem está o cara que ganhou 7 milhões na mega sena, passando bem, tá o namorado da Paola Oliveira. Quem levou três tiros e sobreviveu, no máximo, tá levando muita largura.

Mercado

Aí tu sais pra comprar um peixe e chegando no Mercado, dá de cara com umas “mini-aparelhagens” espalhadas pelos boxes, umas tocando hino de igreja, outras pagode e outras aquele brega rasgado, todas com o volume até o “talo”. Acrescente a isso algumas doses de ressaca, a agonia é tanta que o cabôco até esquece o que foi fazer.

Fim dos tempos

Mais uma da série ” Fim dos tempos “. Conversando agora a pouco com um amigo e ele me conta:
– Te contei que meu pai foi assaltado na frente de casa?
– Não, como foi isso?
– Porra, meu pai acorda cedo e com mania de velho, vai varrer as folhas da mangueira em frente de casa, numa dessas, dois malandros de bike, foram pra cima do coroa.
– E aí, o que aconteceu?
– Um dos malacos entrou com ele em casa e fez uma geral, enquanto o outro “reparava” lá na frente. Nessa geral o malandro achou 700 contos.
– E aí?
– Aí que o que tava com meu pai sussurrou no ouvido dele: Não fala pro lá da frente que eu peguei os 700.
Rapá, é ladrão roubando ladrão.
Fim dos tempos mesmo!

Sono e fome

Tenho a certeza de que sono e fome são dois grandes amigos que se juntam pra me sacanear. O sono diz para a fome, vou sair de perto e você pula com os dois pés no peito dele. O golpe é tão certeiro, que já caio dentro da geladeira.

MEU FILHO VERSICULORUM – Fernando Canto

Por Fernando Canto

Antes de casarmos minha mulher Jeanerena era uma lutadora das causas sociais mais diferentes possíveis. Ela se metia em qualquer protesto e eu a acompanhava nessa luta.

Um dia ela soube que iriam cortar uma secular mangueira da praça principal da nossa cidade, e já me convidou para impedirmos esse crime antiecológico premeditado pela prefeitura.

Na noite anterior ao ato da derrubada da árvore fomos dormir nela. Subimos sorrateiramente pelos seus galhos com a ajuda de uma escada e nos acomodamos em uma forquilha para esperar o dia raiar. De início, formigas e mosquitos ficavam incomodando, mas depois transamos de um jeito muito doido que cansamos e adormecemos.

Acordamos com os bombeiros, a polícia militar e o pessoal da prefeitura que já estavam lá embaixo ainda de madrugada, com ordens para nos tirar de lá na marra antes da imprensa chegar.

Eles nos prenderam e derrubaram a mangueira, alegando que ela poderia tombar a qualquer momento com as fortes chuvas do inverno que já estavam caindo. Mesmo carregada de frutas ela deveria ser sacrificada, pois poderia deixar um enorme prejuízo à população daquele bairro.

Quase sete meses depois nasceu nosso filho primogênito, o Altino Versiculorum, prematuro e com a cabeça esquisita, pequena. Parecia uma cabeça de periquito asa branca, da família dos psitacídeos.

O cara que queria ser dono da Lua (conto de Elton Tavares)

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Era uma vez (só pra “clichezar” mesmo) um cara que, de tão arrogante, audacioso, impetuoso e imbecil, quis ser o dono da Lua. O maluco se acha o Sol. Há tempos ele a observava e a admirava. Ela sempre teve um brilho diferente. Assim era a Lua, que de tanta velocidade imaginativa, não dormia, e ele nem sabia ainda.

Ele curtia todas as suas faces. Podia ser Lua de São Jorge, de Caetano, Lua Bonita, de Raul Seixas ou somente o “Reflejo de Luna”, do Paco de Lucia. Era realmente fascinante.

Quando a Lua apareceu, ninguém sonhava mais do que eu”, disse o tal Sol. E seguiu a cortejá-la: “Como nunca se mostra o outro lado da Lua, eu desejo viajar no outro lado da sua” ou “O sol veio avisar que de noite ele seria a Lua”. Coisas desse tipo. E conseguiu sua atenção. Parece que ela até gostou.

Ele a via como disse Fernando Canto: “Como a Lua grande, que gasta seu brilho imenso todos os meses sobre o Equador, no meio do mundo”.

Tendo a Lua, como disseram os Paralamas, ele fez Moonlight Serenade (que nem Glenn Miller), mas luar21hoje está mais para Luar do Sertão, de Luiz Gonzaga e The Killing Moon, dos ingleses do Echo And The Bunnymen.

Sim, o homem que se achava o Sol, pisou na Lua e até morou nela por um tempo feliz. Mas ele não leu em um poema da Juçara, que “A Lua não é de ninguém, pertence aos casados, aos namorados, aos arrasados, aos cantores e ao violão”. Só que ela até tinha avisado que, assim como Cecília Meireiles (e ele), tinha fases, como a Lua.

Ele tentou dominá-la e a Lua, que também é aluada, revidou. Nem um dos dois entenderam a mensagem de Bob Marley, na frase “Seja humilde, pois, até o Sol, com toda sua grandeza, se põe e deixa a lua brilhar“.

Sol ainda lembra quando ele e a Lua foram grandes amigos. Às vezes, até no espaço (ou será tempo?), o destino dá um nó(s), mas a lição é que sempre devemos desejar a liberdade a todo custo ou em qualquer Lua.

Agora, ele é como o Astronauta de Mármore, e vê “A Lua como um manto negro”, mas a falta de brilho é só saudade. Se é que se pode dizer “só”. Alguns dizem que o Sol enlouquece bêbado e uiva pra Lua até hoje, mas em silêncio.Lua

Sem vitimismo ou guerra, Sol pensa nisso tudo como explicou o sábio Drummond “Sentimos saudade de certos momentos da nossa vida e de certos momentos de pessoas que passaram por ela”. Eles nunca foram os mesmos, pois vira e mexe, vomitam escritos de quase profundo arrependimento. Sem, coragem, sabotam a si próprios.

Sol vive preso numa fenda no tempo, ancorado num mar de memórias por muitas luas. Mas luta pra zarpar, pois como disse o sabido Nelson Cavaquinho: “Eu só errei quando juntei minh´alma à sua. O Sol não pode viver perto da Lua”. Caramba! Existe vida em Marte?

Elton Tavares

A SENHORA W. (Conto de Fernando Canto)

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Conto de Fernando Canto

tfgE6nhA marca registrada da senhora W., a bem dizer o que todos viam nela, era o seu pudor exagerado e sua cara de adolescente com nojo permanente. Em qualquer lugar que estivesse não admitia ninguém falar, nem cientificamente sobre sexo ou se referir aos novos modelos de roupas da moda. Insistissem, ela se retirava do recinto. E sempre encontrava alguma maneira de ridicularizar as pessoas, fofocando ou inventando histórias que pudessem comprometê-las frente aquela pequena sociedade de seu lugar que, aliás, não estava mais tãSalóo pequena assim.

Há tempos, o aparelho de Tevê que o pai lhe dera de presente foi destruído porque um programa que assistia no domingo à tarde mostrava cenas de homens e mulheres em condutas libidinosas, pecaminosas para ela devido a sua formação religiosa e uma carolice incurável. Detestava carnaval, “coisa do diabo”, e nunca mais comprou outro televisor para não perder tempo com besteiras.

obama-encara-brasileira2-reSeus 45 anos, porém, demonstravam um vigor físico e uma certa generosidade que às vezes podia se notar. Mesmo quando se trajava com sobriedade deixava transparecer a mulher que havia por trás daquelas roupas ridículas e fora de moda. E o seu andar miúdo não poderia esconder o balanço meio sensual “daquela bunda”, como disse ao delegado o moleque tarado Fortuno Didhei, de 17 anos, líder de uma gangue do bairro do Igarapé das MulheKearneyres, que tentara possuí-la em uma noite de terça-feira, quando ela voltava da novena de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Recém-saído de uma casa de detenção, Fortuno já acumulava uma série de crimes nos costados.

– Valei-me, Nossa senhora! Gritara apavorada ao ver o meliante.

Um chute no meio das pernas quase arrancava os testículos do perigoso Fortuno Didhei, que ao prostrar-se na calçada da ruazinha escura, também gritara pela Santa, atraindo a vizinhança e a carolapolícia.

O episódio fizera ela ficar tão ruborizada em seu depoimento na delegacia ao ponto de lhe queimar a face. Apesar da antipatia expressa, foi tratada como heroína pelas carolas da igreja, pois ao chutar no estuprador quase emasculando-o, atribuiu sua força para reagir como um atributo da Santa.download-4

A senhora W. era uma mulher infeliz. O que fazia na igreja e com as pessoas era consequência de um desvio psicológico, que desde que enviuvara a tornara inflexível e fria. Má, quando queria. Casou por pirraça com um comerciante distribuidor de gás oriundo da antiga Guiana Inglesa, muito mais por conveniência e com certa curiosidade para saber o que sentiria em uma cópula. Amor nem pensar. Sofria de prisão de ventre desde os tempos de estudante. Jamais poderia se mostrar mal-educada, ainda mais sendo filha do sargento Grato, o rígido professor de Educação Física de sua escola.

The_Notorious_B_I_G__Rest_In_Peace_*******

Sua sensibilidade mudou depois de ser obrigada pelo pai a se casar com o empresário estrangeiro, o guianês negro e gordo que mal falava português e que de longe se anunciava pelo fato de não tomar banho. Mas feito o acerto convencional e o valor do dote velado, na noite de núpcias o distribuidor de gás, mister Woodhead, se cansou de correr nu atrás dela para consumir o ato e resolveu beber. Bebia, comia e soltava altas flatulências. download-5Na noite seguinte também não conseguiu, e tomou outro porre, seguido de roncos e novos sons noturnos. A semana toda esperou pela boa vontade da esposa medrosa que, por ser virgem e não ter grandes referências em educação sexual, jamais admitiria que um membro daquele tamanho penetrasse em sua intocada flor. No sétimo dia, Woodhead esperou até que ela dormisse para estuprá-la. Ao terminar o ato indigno ele se levantou e ingeriu uma garrafa de uísque e o que tinha no frigobar do quarto, contando vitória. Ainda nu, tombou sobre ela expelindo gases e vômito.

A senhora W. ficou cerca de uma hora para se desvencilhar daquele corpo enorme. imagem21Sangrada, violentada e morta de vergonha, chamou a gerência do hotel aos prantos para que retirassem dali aquele corpo monstruoso e sem vida. Foi uma experiência frustrante. E única, pois só a lembrança do fato lhe dava náuseas.
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Esse escândalo a abalou tanto que passou anos em casa apenas rezando e estudando os livros sagrados da Bíblia. Saía apenas para dar ordens no movimento administrativo e financeiro da distribuidora, apesar de detestar qualquer cheiro de gás. Só depois de muito tempo voltou a frequentar a igreja, ainda que persistisse nela o ódio e a arrogância. images (6)Foi quando quase foi estuprada pelo moleque Fortuno Didhei, que agora andava solto, sexualmente impotente e vingativo pelas vielas do bairro. Mas ela resolveu encarar novas relações sociais e passou a ministrar palestras para noivos, adolescentes e mulheres casadas, com a anuência do vigário, por causa das suas altas contribuições financeiras.

Um dia o dito marginal Fortuno Didhei entrou drogado e bêbado no salão paroquial onde ela ministrava um curso. Foi imediatamente repreendido. Então ele entornou a garrafa de cachaça na boca e, debochado, ofendeu a mulher. Ela o enfrentou, Kearneymas os presentes riram dela e começaram a dançar às gargalhadas em sua volta. Sabendo que ela não gostava, iniciaram uma sessão de ventosidades estrepitosas, arrotos, urinas e vômitos, bebendo a cachaça, fumando pedras e se divertindo com aquelas chulices corporais em cima da mulher moralista, com o intuito de fazê-la sofrer. E tantas foram as flatulências que evoluíram para um festival escatológico inusitado no salão paroquial.images (7)

Enquanto os moleques ensandecidos se lambuzavam naquela bacanal comandados por Fortuno Didhei, a Senhora W., caída ao chão, esbugalhou os olhos de pânico ao ver centenas de pombos, moradores do teto do salão, defecarem sobre todos os que se divertiam ainda mais em cima do seu corpo esfarrapado.

CONVERSA FORA – Miniconto de Fernando Canto

Miniconto de Fernando Canto

Todos os dias, no final da tarde, quando sentavam em frente às suas casas, os vizinhos daquele bairro jogavam conversa fora. E tanto falavam, falavam, que as palavras foram tomando conta das ruas e avolumando em monturos de lixo viciados, pois eram palavras feias, chulas, fesceninas, pornofônicas e grossas como os moradores. Ninguém ali tinha uma palavra amorosa, uma frase doce ou um sussurro carinhoso. Eram palavras de ódio que a pobreza e a riqueza dos homens e mulheres de todas as idades usavam contra si e contra tudo. E tanto foram as conversas despejadas pelas bocas sujas das pessoas que elas também foram se afundando num lodaçal indefinível que a enxurrada de escombros palavrais trouxe, sem que elas percebessem. As palavras precisavam ser lavadas, mas ninguém sabia o que era isso e então todos pereceram no esgoto medonho, onde mora a monstruosa língua viva que se alimenta da comunicação entre os seres humanos.

Fernando Canto lança seu livro “Mama Guga – Contos da Amazônia”, em Macapá

Doutor Fernando Canto e seu Mama Guga.

O sociólogo, poeta, compositor e escritor Fernando Canto lançará, neste domingo (5), na Praça Floriano Peixoto, o seu livro de contos: Mama Guga. O lançamento faz parte da programação Arte na Praça, em comemoração ao Dia da Cultura. A obra já foi lançada em maio em Belém (PA) na XXI Feira Panamazônica do Livro e em agosto, no município de Oiapoque (AP).

O livro traz 26 contos do tipo fantástico, alguns dos quais já publicados em sites ancorados na capital amapaense. “Mama Guga”, o conto que dá título ao livro, é uma história de ação, de amor e de situações inauditas do auge da ditadura militar, com sequestro, tortura, aventuras e misticismo que ocorrem no litoral do Brasil, na conhecida e tortuosa rota do contrabando com o Platô das Guianas.

Este é o quarto livro de contos de Fernando Canto, autor eclético, que já incursionou em diversos gêneros literários. Como poeta e ficcionista, Canto ganhou inúmeras premiações e é bastante conhecido na região amazônica.

Fernando Canto é um contista e cronista brilhante. Genial mesmo. Ele é um dos meus heróis nesse lance de escrever e muito me honra ser seu amigo. Já tive o prazer de ler o “Mama Guga – Contos da Amazônia”, que me foi presenteado pelo autor da obra e recomendo, pois o livro é muito porreta!

Sucesso ao Doutor Fernando!

Elton Tavares

OFICINA GOURMET – Crônica de Marcelo Pereira

Crônica de Marcelo Pereira

Que tempos terríveis estão vivendo os machões! Digo mais: A figura do macho-alfa está praticamente extinta! E quem diria que isso iria começar a acontecer há mais ou menos dez anos…Mas voltando um pouco no tempo, tento lembrar onde esse fenômeno começou.

Lá no início dos anos 2000 (segundo estudos feitos em meu oráculo: o Google) começou a febre gourmet.

Explico: TUDO virou gourmet, a varanda é gourmet, o hot dog, a feijoada – acreditem, até a feijoada – tornou-se do dia pra noite, gourmet. Me perdoem os moderninhos, mas isso é demais.

Saudosos tempos em que íamos à padaria comprar nosso pãozinho careca diretamente com o dono. Tempos bons aqueles! Hoje em dia para ir à mesma padaria você passa por educadas moças que querem, por que querem, que você assine a revista X ou faça uma visita (sem compromisso) ao clube Y. Depois de muito penar você consegue se desvencilhar das contudentes senhoritas e avança rumo ao balcão, esperando encontrar o seu salvador: Seu Manoel, o querido padeiro! Tal grande é a sua surpresa quando percebe que, ao invés do Manuelzinho você encontra uma figura de branco, com gorro e máscara, aparentando que à qualquer momento irá fazer uma cirurgia naquele local. É a maldita febre gourmet!

Ao pedir os pãezinhos para o jovem doutor, mais uma decepção, você recebe o dito cujo acondicionado em uma sacola de papel. Diabos! Onde está aquela saudável tira de papel que o Seu Manoel usava para enrolar os pães? Era maravilhoso o poder isolante daquele pedaço de papel em nossas mãos, íamos felizes em nossas bicicletas levando aquilo, com o risco constante de ser feito vítima dos cachorros da rua, prontos para nos morder e levar o bendito pão de nós…ai que saudade daquela época!

O mesmo acontece no restaurante, na lanchonete, no supermercado, e até o seu melhor amigo começou a aderir à moda, instalando uma varanda gourmet. O traidor diz que foi forçado pela esposa a dar novos ares à casa, mas no fundo você percebe que o Judas traiu mesmo a causa, com gosto.

Cabisbaixo você volta pra casa, pelo menos a velha televisão não vai te decepcionar, ainda tens a oportunidade de ver seu velho seriado, aquele com violência, sangue, pauladas e tiros! Diversão garantida! Porém, para sua lástima, o seriado foi trocado por um novo reality show capitaneado por uma psicóloga chamado “Conte seus problemas”. É de matar, a televisão transformou-se em gourmet também.

Ao raiar do dia, depois de findo o café, você leva seu possante, aquela máquina maravilhosa dos anos 90 que só você ainda tem, motorzão 2.0 bem beberrão, que só consome gasolina (motor flex é coisa gourmet) ao seu mecânico de confiança. Todo machão sabe que o segredo para ter sempre um excelente carro é a mecânica preventiva.

Ao chegar à oficina, um princípio de infarto ocorre! O que é isso? O Pedroca pintou tudo! Tem neon na entrada meu Deus! A oficina parece uma sucursal do Palácio do Alvorada, os mecânicos estão usando macacão, botas e bonezinhos…

Essa traição você não pode aguentar. O último bastião da moral cristã (a oficina de automóveis) foi corrompida. A oficina do Pedroca – que insiste em ser chamado de Pedro Vasconcellos foi violada, agredida pela nova moda.

Antes de ter uma síncope, tenho um vislumbre do futuro: todos dando as mãos, felizes, maravilhados, cães e gatos são agora irmãos, as guerras acabaram, não existe mais dor ou desespero, os últimos machos alfa estão mortos e os malditos Gourmets dominaram o mundo!

Retratos – Conto de Marcelo Pereira

Ao final de mais um dia de trabalho, chego em um pé-sujo e tento desanuviar às ideias. O pinguim que me atende tem menos dentes do que aquilo que se chama de minimamente necessário. Peço uma geladinha e o sujeito balbucia algo sem sentido.

Vejo a fauna reinante no barzinho. Fauna é um termo bem apropriado, pois os seres ali presentes são dignos de catalogação. O bêbado onipresente está lá com suas garrafas espalhadas embaixo da mesa, ele se encontra naquele estágio de semiconsciência em que as imagens tornam-se turvas, e não se percebe o que é real.

O velho professor está lá também. Está lendo um antigo romancista russo. Suas roupas já viram dias melhores. Dostoiévski tenha pena desse pobre professor. O jovem casal está mais ao fundo do bar, estão discutindo por alguma bobagem própria dos casais na tenra idade. Logo descobrirão que a vida é muito curta para discutir por bobagens. Um Don Juan de araque está em pé assoviando para as meninas que passam apressadamente pela avenida. Que criatura bizarra! Será que o pavão acredita realmente que suas cantadas mal conduzidas e sua plumagem circense podem atrair possíveis vítimas?

A senhora olha com ar de tristeza para os pequenos quadros expostos na lateral do barzinho. Seus cabelos presos, sua face carregada por uma maquiagem superlativa demonstram que na juventude sua vida deve ter sido menos difícil. O que provocou sua queda precoce?

Então vejo Joaquim, meu amigo de infância, e grito: Joaquim! Joaquim! Ei rapaz! Sou eu! Antônio! Meu amigo olha pra mim e não me reconhece. Estou tão velho assim? Ou ele não quis falar comigo? Éramos tão amigos antigamente. Que pena. Os poucos amigos que me restaram, ou morreram ou moram em lugares tão distantes….Ou não me reconhecem mais, e se reconhecem, não me acham merecedor de uma pequena conversa.

O proprietário do bar avisa que o mesmo está para fechar e pede para os clientes pagarem suas contas. Sou forçado a ir, sou forçado a pagar a conta. Passei uma vida inteira sendo forçado a fazer coisas que não queria. A cerveja vai esquentar, o bar vai fechar, um dia o dono do bar, o bêbado, o velho professor, o jovem casal, o pavão, a senhora, Joaquim, eu, iremos morrer e tudo continuará, como se nunca tivéssemos existido. Seremos retratos na estante de alguém. Tudo passa.

O pouso do anjo viajante (Conto ´porreta de Fernando Canto)

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Conto de Fernando Canto

Anjo migrador anda silencioso pelo trapiche que ora aporta – barco de sonhos, nave de asas longas. O anjo tem a pele avermelhada como a de um de buriti flutuante ao sabor da maré, e ronda misterioso pela frente da cidade onde pousa. Parece ter medo ou desconfia que ela não o receba. Ele olha, então, o rio, uma grande dádiva de Deus, e sente o vento lhe arrepiar o corpo como um hálito frio da madrugada, uma brisa que levanta seus cabelos aureolados pela luz contraposta da lua minguante, nesta noite onde a viagem parece terminar.

Depois que o dia acende sua fogueira e o rio se prende num alguidar é que se vê o anjo em sua humildade: é velho e está nu. De suas minúsculas asas se soltam antigas penas que pegam penura e depois descem mansamente nas águas. Ele caminha pela ribanceira para se hospedar na primeira casa que encontrar.images (3)

– Bom dia, diz ao homem da primeira casa. – Tenho fome, me arranje o que comer.

– Bom dia nada, seu velho tarado. Vá tratar de se vestir que já-já minha família se acorda e eu não quero que ninguém lhe veja assim.

O anjo se magoa. Ah, nada como um anjo magoado pela malícia e a incompreensão dos homens comuns. Ele chora, abana as asas e voa, para o espanto do homem da primeira casa.

images (1) (1)Ele desce. Limpa as lágrimas. Assua o nariz com as mãos. Não desiste. Bate na segunda casa. Pergunta à dona dela: – A senhora poderia me dar água?

A mulher, ainda sonolenta, despeja-lhe um balde d’água e lhe diz: – Vá tomar banho, miserável. Isso são horas de me acordar?

Ah, ele sofre de novo. E chora e sobe e rola nas nuvens cirros, lamentando a incompreensão dos seres humanos, para o espanto e a confusão que fez nascer na cabeça da mulher da segunda casa.

Mas ele pára e releva tudo. “São apenas seres humanos”, pensa. Vai à terceira casa e uma criança lhe diz: – Entre vovô, deite na rede do papai que eu vou servir um café quentinho pra você.images (2)

A criança conversa como um adulto. Liga a TV, mas não pára de tagarelar. O anjo viajante fica abismado com a precocidade daquela criatura e se envolve em um diálogo onde não cabem tantas palavras e onde os gestos se rompem entre lágrimas retidas e rios de alegrias.

Perto do almoço o anjo sente o odor do peixe em cozimento. Gostosos cheiros de ervas desconhimages (6)ecidas para ele dançam no ar do ambiente. A criança lhe explica tudo, fala os nomes das coisas. Repete a toda hora: – Papai tá pra chegar, fique pro almoço. Ele saiu cedo pra pescar, mas já tá vindo.

Admirado, o anjo decide ir embora antes que o pai da criança chegue, pois não queria ser novamente ser incompreendido pelos adultos. Come a caldeirada de filhote, um manjar inusitado em sua desmemoriada vida eterna. Sai pé-ante-pé, saciado e contente, com as asas revigoradas empurradas pelo vento forte da maré.

Ao chegar lá em cima, começa a crescer tão desmedidamente que chega cobrir o sol. Olha para baixo: uma multidão de curiosos fere as retinas sob o sol. Todos querem ver esse prodígio.

O homem da primeira casa, que lhe negara comida e o escorraçara, a tudo assiste e lhe acena. A mulher que lhe negara água diz a todos os vizinhos que o saciara, mas que era um anjo ingrato. A criança da timages (4)erceira casa – que lhe dera abrigo, água e comida – solta seus cabelos amarelos ao vento e ele então pára no ar, volta ao tamanho inicial e sorri. Faz um sobrevôo e de rasante rapta a criança e a coloca em cima das águas do rio. Ela anda sem medo e chama as pessoas para que a acompanhem. Todos vão a ela, exceto o pai, aflito, que acabara de chegar para o almoço.

O sorriso do anjo é forçado agora. Há de se notar que ele fora arrogante e não queria fazer o que fez. Mas está feito. As águas do rio se revoltam e todos nelas se afundam. Todavia o sol a pino se abre e raios brilhosos conduzem a criança a terra para os braços do seu pai.

Aí o anjo entra em seu barco alado, que agora parece uma bola de fogo, e parte levando em suas asas todos os cheiros, todos os gostos e todas as palavras ditas pela criança. Ouve-se um trovão e uma chuva amazônica desaba sobre a cidade.

A cantora e o violonista (II parte) – Conto de Elton Tavares (republicado)

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Depois de muitas noites a tocar sozinho, o violonista encontra a cantora. Aquela com quem ele já fez uma dupla de sucesso. Como dito antes, ele é bom com seu violão, mas ela sempre foi sensacional! Resolveram voltar a se apresentar juntos, como nos velhos tempos. E tudo fluiu como sempre: sucesso!

Eles gostam de diálogos com muito humor negro, trocadilhos infames e bobagens ficcionais. Se alguém soubesse do teor dessas conversas, certamente recomendaria psicanálise, pois é uma doideira só.

O violonista e a cantora seguem com leituras não ortodoxas, sandices sintonizadas, ataques de raiva, arroubos apaixonados e doses cavalares de chamego. Às vezes, até extrapolam o nível de paciência e bajanis_jimmitem o recorde intergaláctico de chatice. Mas são sempre criativos com suas canções meio MPB e meio Rock and Roll.

Ela é linda e canta muito. Ele é brabo e doidão, mas toca bem. Ambos compõem e nem sempre são simpáticos. Agora o público é seleto, pois a dupla ficou mais exigente. Alguns até os acusam de estrelismo além da conta, já que eles escolhem a platéia, o lugar e as canções.

Sim, eles desafiaram as previsões estabelecidas pelos invejosos observadores. Aqueles críticos musicais que sempre torcem contra, tentconto2am algum papo furado de péssimo gosto ou falsa genialidade (ou amizade).

Eles provocam e adormecem a inquietação um do outro. Se completam nos dias, noites e madrugadas, tudo com muita cumplicidade, fé, amor e esperança. E no final, é isso que importa.

Elton Tavares

CONVERSA FORA – Miniconto de Fernando Canto

Miniconto de Fernando Canto

Todos os dias, no final da tarde, quando sentavam em frente às suas casas, os vizinhos daquele bairro jogavam conversa fora. E tanto falavam, falavam, que as palavras foram tomando conta das ruas e avolumando em monturos de lixo viciados, pois eram palavras feias, chulas, fesceninas, pornofônicas e grossas como os moradores. Ninguém ali tinha uma palavra amorosa, uma frase doce ou um sussurro carinhoso. Eram palavras de ódio que a pobreza e a riqueza dos homens e mulheres de todas as idades usavam contra si e contra tudo. E tanto foram as conversas despejadas pelas bocas sujas das pessoas que elas também foram se afundando num lodaçal indefinível que a enxurrada de escombros palavrais trouxe, sem que elas percebessem. As palavras precisavam ser lavadas, mas ninguém sabia o que era isso e então todos pereceram no esgoto medonho, onde mora a monstruosa língua viva que se alimenta da comunicação entre os seres humanos.

O CAVALO DA DOCA – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Dava para ver o tempo passar lá fora, tão lento que era e se afigurando como nuvem na imaginação dos homens e mulheres, dos velhos e das crianças. O sol da tarde queimava, inexorável, o capim das margens da rua, e o cavalo do tio Panga saciava sua fome assim mesmo, procurando um naco de folhas verdes perto das raízes.

O tempo tinha o som rangento das velhas janelas há anos sempre abertas pelo vento. Mas se sabia que eram fechadas à noite por causa dos insetos. O tempo gritava às seis da tarde: – Rééém reeh! Réééém reeh!

Vez por outra uns bem-te-vis zombavam dos poucos passantes que vinham do trabalho na Prefeitura ou do comércio da rua Cândido Mendes. A luz das lâmpadas dos postes de aquariquara ainda estavam apagadas a essa hora. Só depois que o sino da matriz badalada o Ângelus é que as pragas começavam a sair de suas tocas.

Assim mesmo a rapaziada ia jogar bola no campo da praça da matriz até que escurecesse ou que eles se cansassem.

Depois ouvia-se um rádio chiador e logo um silêncio mortal cobria a cidade, para mais tarde ser preenchido pelo coaxar dos sapos de todas as espécies nos charcos dos arredores.

O tempo voltava quase inerte ainda no escuro das manhãs de verão. Cachorros latiam de fome e o cavalo do tio Panga começava sua jornada de trabalho atrelado a uma carroça molenga, cujas rodas rangiam como as janelas e se dirigiam em direção à doca da Fortaleza, em busca de frete entre os barcos que ali aportavam com suas velas róseas, tingidas de tinta de raízes.

Cachos de bananas /madeira de Breves/ potes de barro de Portel/ cachaça do Abaeté/ carne de caça salgada do Bailique/ gurijuba de Calçoene/ óleo de mutamba do Afuá/ paneiros, esteiras e matapis da Pedreira e um sonho do futuro estampado nos olhos das crianças. Tudo chegava com as marés todos os dias naquele lugar.

Um dia o cavalo do tio Panga desapareceu. Foram achá-lo porque exalava um forte odor de chá de erva cidreira, em uma tarde quente lá por perto da praia do Araxá. Ele havia caído na ladeira do torrão, próximo aonde se ouvia o rio bater mais forte, e teve a barriga furada em uma enorme pedra pontiaguda. A força avassaladora da terra rebentou-lhe as entranhas e fez ele trocar com ela o sangue para a perpetuação do telurismo, onde os micro-organismos do solo e as aves de rapina se deliciaram num longo banquete.

Ao avisarem tio Panga que seu ganha-pão jazia mortinho num matagal ele foi caindo, caindo, caindo… E lhe trouxeram água com açúcar. Bebeu aquela mistura salvadora, mas seus olhos se transfixaram no vazio.

Passou a ser um homem insone até a chegada das chuvas, quando seus olhos já secos ardiam em brasa, num tempo mais lento ainda que construíra para si. Tombou mortinho bem ali no pátio da casa após o almoço, sob o som rangento das velhas janelas. Era meio-dia, num dia de equinócio das águas. O mundo estava assombrado e cheirava a cavalo suado.

Vinícius de Moraes e o sábado de aleluia (Conto de Régis Sanches)

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De acordo com o jornalista Régis Sanches, que me contou isso nos tempos que bebíamos juntos, o saudoso Vinícius de Moraes, “poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil”, teria passado uma cantada malandra numa mulher em plena Semana Santa.

De acordo com o “causo”, o  poetinha encontrou uma morena bonita na Lapa, zona boêmia do Rio de Janeiro, na sexta-feira santa. Entre papos e biritas, o artista investiu e soltou um migué seco:“Vamos a um motel?”.

E a graciosa mulher teria retrucado: “que isso Vinícius ! Hoje é dia santo, é sexta-feira santa!”.

O poeta, que não era bobo, finaliza a cantada com uma frase certeira: “que nada linda, já passamos da meia-noite, já é sábado de aleluia”. Resultado, Vinícius ganhou a gata.

Se é verdade eu não sei, mas que o velho diplomata não perdia viagem, ah não perdia mesmo. E no sábado de aleluia a carne tá liberada! Feliz Páscoa a todos!

Elton Tavares, com o relato do Régis Sanches. 

FADAS – Por Fernando Canto


Por Fernando Canto

– Alinne, tenho dois livros para doar.
– Então doe-me, pois levarei seu conteúdo adiante.
– Mas são livros de contos de fadas.


– Ótimo. Contarei os contos às crianças.
– Mas são sobre fadas. ..
– Legal. Falarei às fadas que as crianças existem, e que elas também são fadas no espelho.