O HOMEM IMPASSÍVEL – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Chega e depara com ele sentado como sempre no patamar acima da escada. Sobe devagar e aguarda, visivelmente nervosa, uma palavra. Por toda a casa ecoa o toque dos saltos altos nos degraus de mármore. Ela para, tenta pôr um cigarro na piteira e se treme. O isqueiro nega fogo. Rápido, num gesto brusco, joga-o por cima da cabeça do homem sentado.

– Desgraçado! Quer que eu me desculpe, não é mesmo? Você pensa que é um rei aí em seu trono de ouro. Você é um crápula até no seu silêncio.

Sua voz é forte, ainda que trêmula. Parece que bebeu além da conta. Ela ronda o homem parado. Apanha o isqueiro e acende o cigarro desejado.

– Por que não diz alguma coisa? Quer me matar, assassino! Você põe em mim a culpa de todas as desgraças, me transformando em palmatória do mundo, em pivô de todos os crimes cometidos. Que foi que eu fiz? Anda, responde, asqueroso!

Ele está impassível, como se paradoxalmente saboreasse o silêncio da dor de suas derrotas. Talvez alimente ali múltiplas sensações da possibilidade de uma vitória. O silêncio é mórbido, é carregado de sentimentos duros e ausentes de expressões gestuais. Ele não é mudo. Seu cérebro está prestes a explodir. De sua boca pode sair um universo de palavras sistematizadas. Mas ele está altivo como um silenciário de Bizâncio. É iminente o risco de adivinhar o que se oculta por trás de sua mudez.

– Fala velhaco! O que você disser não me atingirá o caráter. O que eu faço é só da minha conta. Eu agora sou a dona da minha vida, está ouvindo? Não dependo do dinheiro que você acumulou durante todos esses anos, especulando com a inflação e explorando os pobres da periferia com seu comércio de alimentos podres. Eu tenho direitos e sei usá-los.

Ela cambaleia, odiando a ostensividade do silêncio que flui com sua revolta. E o ódio circunda o espaço da casa, concretizando-se em cada molécula de ar.

Porco! O que você fez é abominável. Sei de suas mazelas, de seus atos condenáveis e calculistas, estimulados por essa mente doentia, louca. Nunca houve a supremacia da razão na sua conduta. Eu conheço você há muito tempo. Cada ação sua significou o prejuízo de alguém. Você nunca prestou… Aproveitador barato! Mesmo que fique aí, parado e silencioso como uma cobra, posso perceber que na sua cabeça ferve o ódio na mesma intensidade do que eu sinto por você…

No olhar do homem não há sentimento de culpa. Não há remorsos. É mentira dela. Não se pode adivinhar o que pensa essa cabeça esculpida de impassividade. Um olhar reto sai do rosto de pedra e penetra como um raio no corpo da mulher. Ela se assusta o olha o homem. Permanecem assim por segundos eternos.

Súbito ela gargalha no meio do silêncio. De sua cabeça parece sair casca de ódio, uma cascata de veneno na regurgitação do que engolira há séculos. Não há tempero. O veneno é cru e real. É unívoco.

Rola no chão sobre prantos latentes, rindo. É espetáculo grotesco que o homem ali observa sem ridicularizar. A mulher se levanta, se recompõe e fixa no homem um olhar estranho.

– Você ri de mim, não é? Pensa que estou bêbada, canalha?! Eu estou sóbria. Estou aqui e assim por sua causa. Lembra disso? E disso?

Pergunta tirando a blusa de seda negra. Roda em volta de si mesma e gargalha mais alto ainda, se livrando do sutiã. Deixa transparecer uma enorme e tufada cicatriz acima do seio esquerdo e mostra a ausência de duas falanges nos dedos da mão direita.

Cão desgraçado! Por sua causa vivo só e sem ninguém. Todo homem que sai comigo se enjoa do meu corpo quando descobre estas aberrações. Claro que evito que eles descubram. Mas não posso viver só de artifícios. Sou uma mulher ainda jovem e bela…

Ela ri. Ela se despe com sensualidade e agride com palavras o homem que permanece no seu silêncio de chumbo. Agora é libidinosa a sua forma de agredir. Ela está completamente despida, dançando ao som de um tango inexistente. E se aproxima do homem sentado.

O ambiente se gasta por si só. A luz arrefece aos poucos, dando vez a uma tonalidade lânguida, onde quase não se pode ver a expressão harpíaca da mulher que dança um tango. Ela deseja alguma coisa. Talvez sexo. Mas o homem não se levanta e continua silente.

Num gesto brusco, ela se projeta em direção ao sexo do homem. E o homem não se move, não se defende, não faz a mínima força. Ele se omite a qualquer ração. Deixa ela apalpar o seu sexo e não se espanta com os gestos de carinho.

A mulher desabotoa a braguilha como se abrisse uma arca prenha de segredos. Acaricia com suavidade os pelos dele, procurando o cilindro de carne. Beija-o, flanelando com a língua o prepúcio esquecido de milênios, sentindo o fluir do sangue fazer crescer o obsoleto instrumento. Ela solta os cabelos com a mão incompleta e se entrega a uma compulsiva destemperança no ato da felação. Sua boca encapa a complexidade de duas vidas. Ela pratica nesse instante um desejo, existente até então apenas nas suas fantasias. Ela observa ardentemente um rio ilusório. Um mar de chamas fulgurantes. Dentro dela há um mundo confuso entre a razão do ódio e as carícias do agora, que se metamorfosearam em ação de desreprimento. Não há litígio, no entanto, no latifúndio de sua vida, porque efloresce passional e desmedidamente, pela primeira vez, um estranho sentimento de entrega àquele homem.

O homem não gesticula. Nem fala. Nem expressa prazer ou dor. Está impassível.

Ela se superestima, se achando mirífica na sua experiência com esse homem. O que iniciou com ódio, com pleno desejo de vingança se transforma em uma sensação de querer mais, de ousar a probabilidade de outras descobertas. E então ela ronda o excitamento em si para se masturbar lentamente sobre os lábios vaginais que parecem balbuciar a alegria do encontro com o prazer.

Ela lembra. Ele está bêbado ao volante. Ela estremece. Vê focos de faróis surgindo na escuridão. Ela sorve um líquido grosso e se encandeia. Tem absoluta necessidade de líquidos e luzes. O mundo corre à sua frente num tropel infatigável. O mundo é um cavalo louco que volta com a velocidade do raio para rebentar seu peito e olhos enceguecidos de torpor. Ela grita com o choque inevitável, e se prostra, exânime, no chão.

Agora ela levanta, imputando ao homem sua sorte nefasta.

– Desgraçado! Desgraçado!

Sai com os olhos crispados de ódio, deixando cair pingos de lágrimas sobre o carpete do segundo andar. Ela bate com força a porta do quarto. Lá fora troveja. É quase manhã. A chuva não abafa completamente o choro incontrolável.

Então o homem antes impassível se move. Esboça um leve sorriso e despenca pela escadaria de mármore como um fardo, rolando em ritmo de tango, sem se desvencilhar, porém, da cadeira de rodas em que sentava.

*Publicado no livro “O Bálsamo”.

O primeiro poema do ano – Por Ronaldo Rodrigues

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Conto de Ronaldo Rodrigues

O tinteiro, a pena e o papel estavam lá, à minha frente, sobre a pequena escrivaninha, herança de meu avô. Eu estava tranquilo e os ruídos que chegavam da rua não me perturbavam. Eram os fogos recebendo o ano novo. Eu tinha marcado encontro com a solidão e estava ali no meu quarto, sozinho no mundo, com a firme intenção de escrever o primeiro poema do ano.

Eu procurava uma maneira de iniciar o desafio que me foi imposto pela vontade de extravasar os sentimentos por tanto tempo guardados no peito. Naquela madrugada de festa para o mundo, eu iria escrever um poema.

Eu nunca havia escrito um poema antes e aquela súbita ideia me pareceu absurda. Ela me atingiu no ônibus que vinha lotado de passageiros suados e cansados, assim como eu. A única diferença entre eu e os outros passageiros é que eles iriam tomar um belo banho e se preparar para a festa do ano-novo. Eu não. A minha intenção era me trancar no meu quarto de miséria e ficar só, irremediavelmente só.1600072_3790929309351_1861746970_s

A vontade de escrever um poema mudou um pouco o meu estado de espírito. O ônibus era trepidante e barulhento, mas o desejo de escrever um poema me fez flutuar ao som de uma linda sinfonia e nem notei se a viagem foi longa.

Tomei um banho demorado, curtindo as bolhas de sabão que dançavam à minha volta, e observei, pela primeira vez, os desenhos herméticos que as idas e vindas das formigas formavam no branco do azulejo.

Saí do banheiro e vesti a roupa mais simples. Fui ao minúsculo quintal e reguei a única planta que eu cultivava. Pela primeira vez, também, conversei com ela. Depois, alimentei os cães e gatos vadios que, à vezes, me visitavam. Eram as únicas visitas que eu recebia. Mudei a disposição dos poucos móveis do quarto e coloquei uma cortina na janela.1598414_3790928949342_1697756337_n

Dispensei computador e essas parafernálias eletrônicas. O meu primeiro poema seria escrito como se fazia antigamente, com tinteiro, pena e papel.

Lá fora os foguetes espocavam e as pessoas se cumprimentavam. E eu estava ali, em total solidão, com a firme determinação de escrever o primeiro poema do ano. O primeiro poema da minha vida.

Desenhos (conto)

Conto de Ronaldo Rodrigues

Ele estava sempre com aquela pasta preta carregada de desenhos e as pessoas nos bares diziam, quando o viam se aproximando:

– Ei, lá vem o velho desenhista com aquela pasta preta, grande e suja.

Ele chegava à primeira mesa e perguntava se alguém poderia pagar uma cerveja, sempre ameaçando:

– Ou vocês pagam a cerveja ou eu vou abrir a pasta e mostrar uma infinidade de desenhos. Vai levar a noite toda. É melhor alguém pagar. Aí eu vou embora e vocês poderão continuar a falar essas bobagens que falam todo dia.

Alguém sempre pagava uma cerveja e ele ia embora. Bebia devagar, sentado na sarjeta. Quando a cerveja terminava, ele jogava a latinha no lixo e partia pra mais uma abordagem em outra mesa do bar. E assim ia até o amanhecer, quando os bares fechavam. Acho que nunca chegou a mostrar os desenhos a alguém. Pelo menos ninguém que eu conhecia, naquele conjunto de bares, tinha visto os desenhos. Eu me perguntava se eles existiam mesmo. Até quem numa noite eu quis ver os desenhos. Ele deu um pulo:

– Como? Quer ver os desenhos? Há quanto tempo você bebe neste bar?
– Uns três anos.
– E ainda não sabe como é o esquema?
– Que esquema?
– O meu esquema. Eu digo que vou mostrar os desenhos e as pessoas nunca querem ver. Acham que isso vai atrapalhar o papo. E atrapalha mesmo, são muitos desenhos. A galera prefere me pagar uma latinha pra eu ir embora.

– Tudo bem. Eu pago a cerveja, mas quero ver os desenhos.

Ele ficou um pouco indeciso, mas abriu a pasta gigantesca e já ia me mostrar os tais desenhos, quando eu disse:

– Pode ser que eu goste de algum desenho e compre.

Ele fechou a cara, fechou a pasta, pegou a cerveja que eu já tinha dado e saiu caminhando pra longe de mim:
– Comprar um desenho meu? Aí já é demais! Adeus!

Tudo bem, leitor. Eu também não entendi. Só sei que a minha curiosidade pra ver os desenhos aumentou mais ainda.

*Ilustração: Ronaldo Rony / Foto: Maria Lídia Cunha

Querido Papai Noel – Conto de Natal de Ronaldo Rodrigues

Conto de Natal de Ronaldo Rodrigues

– Deixa de coisa! Vamos embora! Papai Noel não existe!
– Claro que existe! E ele vai aparecer hoje pra deixar o presente que eu pedi!
– Espera sentado! Eu vou dormir. Papai Noel pode até existir, mas ele nunca lembra da gente!

O mano maior disse aquilo ao mano menor e entrou para dormir. O mano menor ficou ali, no quintal, sob o orvalho da madrugada, só pensando: “Poxa. Bem que o Papai Noel poderia aparecer aqui com o meu presente. Eu ia correndo acordar o mano maior pra dizer que ele tava enganado pensando que Papai Noel não existe”.

O mano menor desistiu de esperar Papai Noel e entrou no quarto onde dormia na cama de cima do beliche, enquanto o mano maior dormia na cama debaixo. Teve uma surpresa quando viu um embrulho em cima da cama. E acordou o mano maior:
– Olha só! Papai Noel teve aqui e deixou um presente pra mim!

O mano maior, bocejando e reclamando por ser acordado, falou bruscamente:
– Só se ele entrou quando eu tava dormindo, porque eu não vi nada!

O mano menor, abrindo o embrulho:
– É que Papai Noel é mágico! Ele entra nos lugares sem que ninguém veja.
– Tudo bem! Agora me deixa dormir.

O mano menor olhou para o mano maior com um olhar de compaixão:
– Poxa! Ele não deixou nada pra ti, né?
– É que eu já sou grande.

O mano menor falou com um certo ar de reprovação:
– É que tu não acredita nele…

O mano maior respondeu, já se virando na cama:
– E não acredito mesmo! Boa noite!
– Boa noite! E Feliz Natal!

O mano maior ficou ouvindo a oração que o mano menor fazia na cama de cima do beliche:
– Obrigado pelo presente, Papai Noel! Esse carrinho é o brinquedo que eu queria mesmo. O senhor acertou! Só quem sabia que eu queria esse carrinho é esse meu mano maior aí embaixo. Ele não acredita no senhor, mas ele é bacana. Perdoa ele! Agora eu vou guardar o meu carrinho, dormir e amanhã bem cedo eu vou brincar com o presente que o senhor me deu. Boa noite, Papai Noel!

Desligou a luz sem ver o brilho dos olhos do mano maior, que comemorava o fato de continuar mantendo no mano menor aquela chama de fantasia que embala tantas crianças por tantos anos.

AS MULHERES-PEIXE (Conto de Fernando Canto)

Conto de Fernando Canto

Os cachaceiros do bar da Loura Rainha podiam apostar com certeza que era mais uma mentira do Edmer. Falou pra quem estava ali que tinha comido uma mulher-peixe, só pra se gabar e se aproveitar de uma história que corria na área e era a razão do medo dos nossos novos vizinhos, que eram feios pra caralho e tinham chegado há pouco tempo sabe lá de onde. – Porra, falei. Eu também namorei, quer dizer, cheguei a morar com uma delas lá nas brenhas do Igarapé do Salamagonha, no tempo que ainda tinha ouro aqui no garimpo do Lourenço. Pra quê… O Edmer, que era um tremendo filho de uma puta avançou em cima de mim com uma faca de sapateiro, mas ele estava porre e não me furou porque pulei de lado e lhe acertei uma garrafada no meio da testa. O homem caiu no assoalho com a garapa descendo por todo o corpo. Foi pá, merda. O Edmer era uma bosta e morreu porque achava que eu tinha comido a mulher-peixe dele.

-Flamenguista safado, eu dizia muito puto sobre o gordão assassinado. Ainda bem que as testemunhas foram na delegacia e confirmaram ao policial de plantão que meu reflexo salvou minha vida e que agi em legítima defesa. Passei a noite inteira esperando o bacharel.

Quando o delegado chegou pra pegar o meu depoimento foi logo perguntando quem eram essas mulheres-peixe que tanto davam medo nos novos moradores do assentamento, uns colonos feios pra caralho, e sobre a causa da briga com o gordo Edmer. Disse o que se passou no bar e que eu não sabia nada das mulheres, que apenas tinha mentido pra acabar com a gabolice do cara. Fui solto, mas ele pediu que eu não saísse da área porque o caso era da Polícia Federal, já que o merda do Edmer era funcionário do Incra. Ele não se conformou e me seguiu até o meu sítio. Depois eu soube que ele acampou por lá por perto com uns tiras atrás de ouro. A verdade é que eu tinha achado um veio numa gruta e havia escondido de todo mundo que ainda tinha ouro por lá. Na gruta havia um lago de água verde, verde, verdinha. Não fazia muito tempo que eu tinha descoberto essa gruta e o lago e visto as mulheres-peixe se banhando. Tinham a cor dourada e eram largas. Suas barbatanas eram vermelhas, umas gracinhas. Nem de longe pareciam com as sereias que eu já tinha visto em revistas. Brincavam com as águas e sorriram quando me viram. Me chamaram pra bem perto delas e aí eu pude conhecer o verdadeiro valor do prazer sexual com aquelas mulheres, ainda que não fossem humanas. Eu me acostumei com elas e elas comigo.

O Edmer estava fiscalizando o assentamento dos colonos. Ele também descobriu a gruta depois que a caminhonete dele pregou perto do torrão do Tracajatuba, na estrada que levava ao meu terreno. E parece que ele chegou a dar umazinha por lá porque elas me sereia3falaram por alto dele. E foi justamente no bar da Loura Rainha, onde eu tinha chegado pra tomar uma caninha que ele achou de contar vantagem. Eu confesso que não queria que ninguém soubesse ainda mais depois que elas me indicaram onde estava o ouro.

O delegado me flagrou com as mulheres-peixe quando a gente estava bacana, tomando um Campari no meio do lago. Ele já sabia do ouro e me deu voz de prisão. Ao verem os tiras as mulheres douradas foram tomadas de um pavor que eu jamais vira. Pareciam loucas, cantando e dançando e mergulhando. Assoviavam uma melodia tão forte que se eu não tivesse corrido pra fora da gruta meus tímpanos estourariam, assim como aconteceu com os policiais, que desmaiaram e morreram afogados. Elas salvaram minha vida, pois a ambição do delegado e seus subordinados não tinha limite. Onde havia ouro eles iam lá confiscar.

Não sei como alguns agricultores ouviram os gritos de tão longe. Chegaram ao local armados de facões, mas se tremiam de medo. Certamente viram os vultos das mulheres-peixe no fundo da gruta. O boato das suas existências já rolava pela vila do Lourenço, imagina agora com a morte dos tiras e o testemunho dos colonos feios.

Quando os policiais federais chegaram pra me prender eu já estava muito longe com o meu ouro. Larguei tudo: o sítio, os animais, os empregados, a mulher e os filhos. Comprei um carro usado e sumi no trecho pra capital. Agora que acabou a porra do ouro e do dinheiro bate uma saudade daquelas mulheres lindas que nunca mais vou voltar a ver. Elas devem ter morrido com a presença de tanto garimpeiro feio no lugar que com certeza poluíram a gruta e seu lago verdinho.

Cirurgia no pulmão – Conto de Fernando Canto

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Conto de Fernando Canto

Tive um sonho em que fui operado, submerso numa piscina, por um médico amigo meu.

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Antes eu não conseguia respirar direito. Acordava no meio da noite por causa de uma Apneia. Eu estava além do meu peso ideal e não me preocupava muito com dietas. Já passava dos cem quilos.
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Eu fora fumante por 25 anos. Por conta disso tive um carcinoma na boca e uma recidiva cinco anos depois. Com as cirurgias e o tratamento adequado por mais de dez anos os médicos me consideraram curado.

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Mas o pulmão e essas coisas de respiração sempre me preocupavam. Vi meu pai morrer nos meus braços por conta de um enfisema pulmonar em consequência do vício de fumar. Ele já estava com uma idade avançada e sofria com isso. Tinha soluços e tosse, mesmo que já tivesse parado o uso do cigarro havia 16 anos. Aliás, foi uma promessa que fez no túmulo de minha mãe no dia do enterro dela. E cumpriu. Nunca mais pôs um cigarro na boca.

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Ao mergulhar, segurei uma corda estendida no fundo da piscina atendendo ao pedido do médico. Ele aplicou um anestésico na minha costa. Em seguida, com um instrumento cirúrgico pontiagudo, fez duas pequenas incisões abaixo do pulmão esquerdo e eu pude ver dois filetes de sangue se diluírem nas borbulhas da água. Senti dor, mas não tanto a ponto de incomodar.

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Em menos de um minuto ele encerrou o procedimento e saímos juntos da piscina por uma escadaria que dava, creio, em uma enfermaria de um grande hospital.

Ele me mandou descansar. Contudo, eu não podia. Tive a sensação de estar inalando um ar tão puro que se espalhava plenamente pelos pulmões como se o oxigênio explodisse entre as células do órgão. Algo que eu não sentia há tempos. Eu ria e me dava vontade de gritar. Mas eu estava em um hospital e lá havia enfermos em tratamento.

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Mais tarde perguntei pelo médico, um rapaz ainda novo que conheci numa mesa de bar assistindo a um jogo da seleção brasileira na copa do mundo. Torcemos e sofremos juntos com a derrota do Brasil para a Alemanha por 7 X 1. Cheguei a vê-lo e a conversar com ele por várias vezes, sempre no mesmo bar. Fizemos uma amizade bacana que só as feitas nos bares são capazes de permitir, pois geram afinidades e regam sonhos individuais e coletivos. Sua simpatia e discernimento fazia a diferença entre os fregueses do bar. Ele, assim como eu, também cantava e tocava violão.

Tempos depois ele partiu para fazer um doutorado em pneumologia em uma reconhecida universidade de São Paulo. Soube também que ele havia sofrido um acidente de carro e não mais havia retornado para a nossa cidade. Na realidade sempre comentei no bar que desconfiava que ele tinha falecido. Não tínhamos notícias dele, pois não possuía família nem muita amizade com seus pares profissionais daqui.

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Nunca mais encontrei com ele. A não ser nesse sonho em que ele me operava. Agora eu estou bem. Respiro com satisfação e sem dor.

Só tenho a agradecer a você, meu amigo. Que Deus te pague e te guie em direção a luz quando acabares tua missão espiritual entre nós. Um abraço e até o dia da desforra com a Alemanha.

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Lá no bar assistiremos juntos esse esperado jogo e depois tocaremos nossos violões em dueto, para sermos aplaudidos pela turma que sempre nos compensa com um tira-gosto de carne assada de panela e uma cachacinha mineira de fazer cara bonita, pra ninguém botar defeito.

”Contradança”: lançado o novo livro de contos da escritora Lulih Rojanski

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A escritora Lulih Rojanski lançou nesta semana o seu novo livro de contos inéditos, intitulado “Contradança”. A coletânea, por enquanto, está disponível somente na versão digital, no site Amazon.com. (clique aí para adquirir a obra). A contista é extremamente talentosa e escreve de uma forma leve e marcante. Gosto de lê-la.

Sobre o livro Contradança:

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Escritora Lulih Rojanski

Os breves contos de Contradança são escritos para saciar o desejo do leitor que aprecia a dinâmica da leitura rápida, numa linguagem capaz de lançá-lo de imediato a mundos diversos a cada página. As palavras foram escolhidas para expandir significados, reduzindo frases e exprimindo ideias completas em relatos curtos, respeitando o tempo, a compreensão e a disponibilidade de envolvimento do leitor. O texto “Prenúncio” compõe a série “Partículas Oníricas” do livro: “Sobre um mar lacônico, velhos navios ancorados. Distraídos pela saudade dos tempos da caldeira e do vapor, confabulavam a vindoura viagem além-mar, e nem notaram que, em seu profundo silêncio, o mar prenunciava para aquela noite seu naufrágio.” Com esta concisão e refinamento na construção dos textos, a autora encanta pela delicadeza das palavras, pela fluidez das histórias, pelo lirismo e pela atmosfera de sonho que envolve cada personagem. É possível encontrar em Contradança todo o essencial da boa literatura. Cada página transborda vida, luz, cores, fantasia, múltiplos sentimentos. Como em todo livro de contos, o leitor não tem a obrigatoriedade de ler desde a primeira página e seguir a sequência. Contradança pode ser aberto e lido em páginas aleatórias, pois cada uma delas tem uma história completa. E se a tendência da modernidade é encurtar cada vez mais os textos para facilitar a atividade do leitor, Contradança o faz sem perder a ternura.

Depois de ler isso aí diz se não dá vontade de devorar o livro? Li a obra Abilash, lançado pela escritora em 2010 e já estou ansioso para ler o Contradança. recomendo!

Elton Tavares

De trem – Conto de Ronaldo Rodrigues

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Conto de Ronaldo Rodrigues

Numa panorâmica pelo quarto, vamos encontrar um cesto de lixo transbordando papéis amassados e copinhos de café. Sobre a mesa, uma velha máquina de escrever, uma caneta com tampa mordida e um cinzeiro com ponta de cigarro ainda acesa.

O homem nu, de gravata e chapéu, nada consegue escrever, apesar de sua insistência e do relógio na parede sempre avançando as horas e o lembrando do compromisso inadiável.

Deitada nua no sofá, a mulher dorme. Seu rosto denuncia um sonho bonito. Ela sorri e murmura algumas frases incompreensíveis.

O homem nu, de gravata e chapéu, veste a calça, o paletó, coloca os sapatos e acorda a mulher, mostrando o relógio na parede. É chegada a hora da partida. A mulher balança levemente as mãos, dissipando uns restos de sonho, e também se veste. Os dois saem.

Na escuridão, no mais absoluto silêncio, o gato desce do sótão e senta-se diante da máquina de escrever.

*** *** *** *** *** ***

STILL LIFE / REPORTER'S DESK WITH TYPEWRITER & BOX CAMERA

Homem e mulher chegam apressados à estação. Por pouco não perdem o embarque. O trem dispara velozmente por entre montanhas, vales e florestas. No próximo túnel, as trevas da noite engolirão o trem, que vai cair no abismo. É um trem exclusivo de suicidas.

Segundos antes de o trem se desmantelar na muralha do vazio, a mulher olha para o homem e pergunta se ele conseguiu escrever a carta de despedida:

– Não consegui. Espero que o gato consiga…

O assalto no câmpus Marco Zero – Conto porreta de Fernando Canto

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Conto de Fernando Canto

Um ar de tranquilidade pairava na Universidade no entardecer daquela quinta-feira, véspera de feriado. Eu precisava retirar uma grana do caixa eletrônico instalado no prédio da reitoria para poder viajar com a família ao terreno que temos em Ferreira Gomes.

Pensando nisso fiquei na fila aguardando a minha vez, enquanto colegas de trabalho, sorridentes, desejavam bom feriadão uns aos outros.download (4)

Ao chegar minha vez fui surpreendido com um objeto frio na nuca antes de colocar o cartão na máquina. Eu me voltei e um sujeito corpulento me empurrou e disse:

– Não me olha, filho da puta. Encosta ali no canto que a gente vai explodir essa porra.

Tive que me deitar no corredor onde a vigilante que minutos antes trocara de turno jazia sobre o balcão de informações com a garganta cortada, ainda em convulsão. Ouvi ruídos e em seguida uma explosão que rebentou toda a máquina. Quatro bandidos apanharam o dinheiro rapidamente e saíram correndo para um carro que os esperava. Atiraram na cabeça do vigilante instalado na guarita do portão de entrada e feriram, atirando a esmo, dois estudantes que chegavam para o turno da noite. Fugiram na direção de Fazendinha pela Rodovia JK, perseguidos pelo carro do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar que havia sido informada do roubo e das mortes.

Mais tarde, quando depunha na Delegacia de Roubos e Furtos, ainda surdo com o barulho da explosão, soube pelo plantão da TV que na fuga desesperada eles foram atropelados e esmagados por uma carreta da AMCEL carregada de eucalipto, lá em Santana. Os cinco bandidos morreram na hora. Viraram farelo dentro de uma lata. Segundo o repórter, um deles era de Mazagão e os outros vieram do sul do Pará.

Mesmo refeito do susto eu não quis mais ir para o terreno da família. Mas no domingo… No domingo não resisti e fui ao bar do Abreu. download (8)Bebi pra caralho e vibrei com a vitória do Flamengo sobre o Vasco, coisa que os assaltantes filhos de uma égua não iriam assistir nem no inferno. Égua! Mas o barulho de cada foguete explodindo lá fora me lembrava da porra do assalto. E o campari no copo era igual ao sangue esvaído da vigilante estrebuchando ao meu lado.

Às vezes, é preciso “botar quente” – crônica escrita por conta de uma história de bar

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Fernando Canto, Fernando Bedran (centro) e eu – Bar da Euda – 2012.

Se tinha uma coisa que eu adorava quando bebia no Bar da Euda, era escutar as histórias do meu amigo Fernando Bedran. Fernandinho é um sábio malandro, no bom sentido, claro. Por conta de seus causos, devaneios e pontos de vista paid’éguas, meu irmão, Emerson Tavares, diz que o Bedran “é melhor que tira-gosto de charque para tomar umas cervas”.

Ver_o_Peso_antesDurante uma de nossas conversas regadas a cerveja, Fernandinho, que é contra qualquer tipo de violência, contou que, certa vez, precisou usar a força. Segundo ele, em uma fase de nossas vidas é preciso “botar quente”.

Bedran contou-me que tinha vinte e poucos anos, na década de 80, e trabalhava no Ver-o-Peso, velho centro comercial de Belém (PA), e estudava à noite. Por causa de suas atribuições profissionais, faltava muito às aulas.

Por conta disso, um professor começou a perseguir o nobre amigo, mesmo após explicar a situação ao educWHIPLASH - 2014 FILM STILL - JK Simmons as Fletcher - Photo Credit: Photo Credit: Daniel McFadden Courtesy of Sony Pictures Classicsador, que se manteve irredutível. Para completar, o tal docente da escola que Bedran estudava o ridi

 

cularizava na frente dos colegas de classe. Comportamento que, segundo Fernandinho, era comum com todos os alunos, mas acentuado em relação ao Fernando.

“O cara era um “pentelho escrotal arruinado, um verdadeiro cri-cri”, desabafou Fernandinhgoverno-opressoro.

Passados alguns meses naquela patinhagem, Bedran se aporrinhou com a maquinagem pesônica do professor em relação a ele. E foi indagar o educador, que logo lhe disse: “quer saber, você não assistirá mais minhas aulas. Fora daqui!”.

Fernando disse que tentou e tentou, sem sucesso, resolver a situação. A reprovação era certa, já que ele não frequentava mais as aulas do nojento professor. Foi quando ele foi meditar no boteco, depois de um dia de trabalho, e decidiu cancelar sua matrícula.macaranduba-claudio-manoel---vou-dar-porrada-1382737334672_956x500

Ao adentrar na escola, rumo à secretaria, Fernando Bedran passou pela sua turma e lá estava o dito cujo dando aula. Ao olhar para o professor, o debochado abriu um cínico sorriso, com um estranho ar de vitória e superioridade.

Foi quando Fernando Bedran explodiu e disse:

“Grande corno filho da puta e desconfio que és pederasta. Mete a cara que eu vou te dá-lhe é porrada!”.

Aí ele fez a merda:

“Elton, dei uma minafrangolino_cachorro de porrada no filho da puta. E tu pensas que a galera apartou? Porra nenhuma! O pessoal vibrou com a surra que dei no frescão”, vibrou Fernandinho (e eu também!).

Resultado: Bedran foi expulso da escola, mas com a alma lavada. É, como elEueFernandoBedran-300x231e mesmo disse no início da história: “é preciso “botar quente”. Boto fé!

Essa foi só uma das inúmeras aventuras do Fernandinho, figuraça que alegra nossas noites quentes, assim como as cervejas geladas.

Vida longa ao espirituoso Bedran, dono de um dos melhores papos que conheço, principalmente nos botecos da cidade.

Elton Tavares

Insuportável Mundo Novo – Conto de Ronaldo Rodrigues

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Conto de Ronaldo Rodrigues

Estou sentado no banco dos réus enquanto se desenrola o meu julgamento. O juiz anuncia o veredito: estou condenado a assistir a vários trechos de filmes, para que eu possa compreender o meu país.

Sou colocado numa cadeira, em que fico totalmente preso. Algumas pinças mantêm meus olhos abertos, enquanto alguém pinga colírio (creio que seja colírio) a intervalos regulares. Quem já assistiu ao filme Laranja Mecânica pode fazer ideia do que estou dizendo.

As luzes se apagam e um projetor passa a ser acionado. Vejo o primeiro trecho de filme. Nele, o presidente da Comissão de D12939258_10201478429920239_1151002693_nireitos Humanos da Câmara dos Deputados aparece dizendo que os africanos são seres amaldiçoados. Em outro trecho, esse mesmo homem revela sua aversão a homossexuais. Continuo achando absurdo que o presidente de uma Comissão de Direitos Humanos tenha tais opiniões. Se a intenção dos meus carrascos é me fazer compreender os acontecimentos recentes do meu país, não está funcionando. Estou ainda mais confuso.

Outro filme passa. Desta vez, vejo o presidente da Câmara dos Deputados metido até o pescoço em transações fraudulentas e sendo aclamado como o baluarte da ética, da moral, da honestidade.

Em outro trecho de filme, uma autoridade incita o povo a pedir a volta da Ditadura, com uma grande parcela disposta a segui-lo. Eu olho assustado para os meus carrascos pensando até onde eles irão nessa tentativa de me fazer compreender esse poço sem fundo para o qual a política nacional está caminhando.

Finalmente, depois de tantos filmes passarem por meus olhos atônitos, pergunto timidamente:12980551_1114935811892782_1623297675_n
– Qual a causa da minha condenação? Esses filmes, esses episódios e esses personagens têm algo a ver com o fato de eu estar aqui, preso e obrigado a assistir a tudo isso?

Depois de longo silêncio, o juiz que preside a minha sentença responde, saboreando cada palavra:
– Sim. Todas essas cenas estão ligadas à sua condenação. Você acha abomináveis essas situações. Você não concorda com nada disso. Você torce contra esses senhores que apareceram nos filmes a que você está assistindo.
– Então… É por isso?

O juiz arregala os olhos enfurecidos e grita:
– Cale-se! Você im-jpg-1024x606não tem direito a se manifestar!

Eu penso (só penso, já que falar irritaria ainda mais o juiz): “Puxa vida! Acho que já estamos na Ditadura novamente… E agora?”.

O juiz continua sua gritaria:
– Eu nem sei por que estou aqui respondendo às suas perguntas, seu moleque! Só estou esclarecendo as suas dúvidas porque sou muito magnânimo! Pois eu vou lhe dizer qual o motivo principal, o grande pretexto, a causa imediata da sua condenação!

O suspense me sufoca. Receio não conseguir ouvir até o fim. E o juiz continua:
– Você foi condenado graças ao fato de…

Torço para ele falar logo e acabar com aquela tensão:impeachment
– Graças ao fato de você nunca ter conseguido pronunciar corretamente a palavra impeachment!

Fico mais confuso ainda. Que motivo mais fútil! Que loucura! Mais um absurdo destes novos tempos, que parecem tão velhos. Tomando fôlego, o juiz continua:
– Então, repita! Impeachment! Impeachment! Impeachment!

Os oito carrascos ao lado do juiz repetem aquela cantilena, formando um coro de altíssimo volume:
– Impeachment! Impeachment! Impeachment!

Ainda tento argumentar que não sou o único a não conseguir pronunciar corretamente essa palavra, mas sinto que estaria perdendo tempo. Repito à exaustão a palavra e espero que esta lavagem cerebral tenha algum efeito e eu possa, finalmente, entender alguma coisa.

Hoje tem espetáculo (Conto de Ronaldo Rodrigues)

Hoje de noite, no circo.

 

A faca descreve um desenho no ar, indo cravar-se na tábua, a poucos centímetros da têmpora esquerda de Alexandra.
Aplausos.
 
A plateia exulta a cada arremesso. Parece que as facas nasceram juntas com Mustaphá, tal a destreza que ele demonstra com elas. E lá vai mais uma cravar-se próxima ao pescoço de Alexandra.
 
Aplausos. 

 

Mas o que vejo? Mustaphá vacila por alguns segundos, como se não soubesse o que fazer. Isso não acontece com Mustaphá. Suas mãos tremem, seu cenho está franzido. A plateia nada percebe, hipnotizada pelo espetáculo. A impávida Alexandra também nada percebe. Fico aflito, pressentido um terrível acidente, quando vejo a faca voar para o alvo do qual Alexandra é o centro. Mas o trajeto repete o das outras facas e o ponto atingido é aquele que deixa Alexandra fora de qualquer perigo, a única pessoa a salvo neste circo.
 
Aplausos.
 
Continuo observando Mustaphá e noto sua expressão de aborrecimento. Pensando no que pode estar irritando Mustaphá, uma das pessoas mais tranquilas que já conheci, volto ao momento em que estive com Alexandra, hoje de manhã, no rio.
*** *** ***

 

Hoje de manhã, no rio.
 
Ao chegar a qualquer cidade, o circo sempre se aloja perto de um rio, onde as roupas são lavadas e os animais bebem água. É perto do rio que mais gosto de ficar, jogando pedrinhas na água, vendo os círculos se abrirem. Existe outro motivo: é aqui que Alexandra lava suas roupas e as de Mustaphá. Ficar perto de Alexandra é sempre muito bom.
Tomo coragem para me aproximar. Ela está distraída e toma um susto quando chego perto. Dá uma bronca, de brincadeira. Pego uma pedrinha, faço alguns malabarismos e termino o número com um truque barato de mágica, transformando a pedrinha numa flor. Alexandra sorri e fala:
 
– Você é o palhaço mais sem graça deste circo, mas pode ficar aí, se quiser.
Claro que quero ficar perto dela. Alexandra é uma doçura. Fico olhando para ela e falando algumas bobagens, sem conseguir dizer o que realmente quero.
 
Mustaphá chega no momento em que rimos de uma piada do meu surrado repertório. Ele faz uma cara de reprovação e, enquanto leva Alexandra para o trailler, me lança um olhar irado. É a primeira vez que vejo Mustaphá demonstrando ciúme.
 
A bela Alexandra é assediada por todos no circo. O trapezista se joga do alto por ela, o domador daria uma perna ao leão por ela, mas Mustaphá sente ciúme de mim, que não tenho a mínima chance de uma relação com Alexandra além da amizade. O que é uma pena…
*** *** ***

 

Hoje de noite, no circo.
 
O olhar de Mustaphá de hoje de manhã se repete agora na hora de seu espetáculo. Está visivelmente incomodado com o fato de ter visto Alexandra conversando comigo. Bobagem!
Mustaphá limpa o suor da testa e lança a faca, que vai cravar-se a dois centímetros da cintura de Alexandra.
 
Aplausos.
 
Restam apenas duas facas para que Mustaphá termine seu número. Desta vez, a faca arremessada surpreende a plateia, indo cravar-se no ponto exato em que se encontra o coração de Alexandra.

 

Silêncio.
 
Após alguns segundos de total silêncio, entramos em pânico. Correria e gritos lotam o circo. Corro para socorrer Alexandra e vejo Mustaphá arremessar sua última faca. Na minha direção.
 
Silêncio.
 
Escuridão.

No manicômio (devaneio de Ronaldo Rodrigues)

 

 
De repente, ouviu-se um barulho ensurdecedor. Era a tarde que caía.
 
O diabo do filho do vizinho passou com sua banda, fazendo um barulho dos infernos.
 
O silêncio que imperava pegou sua coroa e saiu de mansinho, já caindo no chão, morto de vergonha.
 
Sentiu-se um forte cheiro de tinta. Era a meninada pintando o sete.
 
Com uma enorme colher, a empregada alimentava a vã esperança de que tudo se ajeitasse.
 
As pessoas atiravam em todas as direções, tentando matar o tempo.
 
Ouviu-se uma pancada e um berro desafinado. O relógio tinha batido a hora errada.
 
O cheiro de comida veio da cozinha armado até os dentes de alho e invadiu a sala prometendo matar todo mundo… de vontade de comer.
 
Ronaldo Rodrigues

CONVERSA FORA – Miniconto de Fernando Canto

vomitar-palavras

Miniconto de Fernando Canto

Todos os dias, no final da tarde, quando sentavam em frente às suas casas, os vizinhos daquele bairro jogavam conversa fora. E tanto falavam, falavam, que as palavras foram tomando conta das ruas e avolumando em monturos de lixo viciados, pois eram palavras feias, chulas, fesceninas, pornofônicas e grossas como os moradores. Ninguém ali tinha uma palavra amorosa, uma frase doce ou um sussurro carinhoso. Eram palavras de ódio que a pobreza e a riqueza dos homens e mulheres de todas as idades usavam contra si e contra tudo. E tanto foram as conversas despejadas pelas bocas sujas das pessoas que elas também foram se afundando num lodaçal indefinível que a enxurrada de escombros palavrais trouxe, sem que elas percebessem. As palavras precisavam ser lavadas, mas ninguém sabia o que era isso e então todos pereceram no esgoto medonho, onde mora a monstruosa língua viva que se alimenta da comunicação entre os seres humanos.